Nem a mulher nua, lindamente esculpida em bronze, enfeitando com os seus seios-laranja o famigerado “Largo da Pouca Vergonha”, afugentou os bienos mais conservadores que foram assistir a publicação do romance "O Relógio do Velho Trinta" e a premiação da corrida de atletismo alusiva ao 89º aniversário da cidade do Kuito. Todas as idades estiveram no largo, agora rebaptizado, pelo menos oficialmente, por Espelho d´Água.
Os jovens perdedores da corrida xingaram a organização pelo fraquejar de suas próprias pernas enquanto os vencedores nas distintas categorias tiveram felicidade a dobrar: o prémio foi pecuniário e, aí mesmo, perante “O Relógio do Velho Trinta”, não tiveram como não fazer gosto à leitura. Acederam ao convite formulado por Álvaro Alves, jovem poeta do Bié que lera o romance de véspera, e fizeram uma fila para o livro e a dedicatória.
- Soberano Canhanga traz a vida nas nossas embalas, nas vilas e nas cidades. Retrata a dureza da vida na tropa e nas cidades fustigadas pela guerra, como foi a nossa. Escreve sobre o ‘salve-se quem puder’ que assolou e assola ainda a nossa sociedade. Reporta-nos sobre o negócio com os mortos ou a alegria com suporte em tristezas alheias... O nosso autor convidado às festas do Bié, traz-nos também a realização de dois: o primeiro é o seu que consiste em homenagear um colega finado. O segundo é do personagem Clovis que sonha, escreve e publica um livro… Espero que leiam e sigam o conselho de Clovis que nos apela no fim da obra em presença que “Álcool só na ferida!” - Concluiu o também director provincial da Cultura, na presença do vice-governador para a esfera política e social, Carlos Ulombe da Silva.
- Wiñi wo Vye kalungi! - Saudei ao que em coro a multidão respondeu:
- Kuku!
- Vim cumprir o que prometi aos bienos e ao governo da província que co-patrocinou o meu livro. Ele reporta, de forma ficcionada, tudo aquilo que acabou de dizer o amigo Alves. Tem muito mais. Tem também ideias, experiências e conselhos para que possamos fazer mais do que aquilo que estão a fazer hoje os nossos mais velhos. Temos de ler muito. Ler livros académicos, lúdicos, filosóficos, religiosos, etc. Quem lê transfigura-se. Aprende sempre alguma coisa e isso fá-lo tornar-se pessoa diferente.
Mais do que vender livros vim fazer amizades e fazer novos leitores. Muito obrigado ao governo, muito obrigado aos bienos. Ndapandula Ciwa! – Despedi-me para atender os potenciais leitores, já fartos da manhã de sol ardente.
Perto de cinco dezenas de assinaturas e dedicatórias, entre vendas e ofertas. Antes de arrumar as caixas, o director da cultura faz outro apelo.
- O camarada escritor tem de estar presente, à tarde, no recinto de festas onde montamos já um espaço para expor o livro. Quem não pôde comprar agora vai ter a oportunidade de faze-lo durante os dias de festa. – Apelou o homem da cultura.
O espaço novo, construído à saída da cidade, entre a unidade penitenciária e o mercado do Cisindo, apresenta acessos asfaltados. O largo, também asfaltado, comporta marcações para dois campos para desportos de sala. À volta, foram montadas tendas e barracas em que se vendem produtos predominantemente agro-pecuários e artesanais, notando-se ainda exposições de veículos automóveis e equipamentos agrícolas mecanizados, o que enche de alegria os habitantes do Kuito que vêm a sua cidade a crescer.
A rádio local não quis ficar atrás e juntou-se à “festa do Relógio”. No estúdio improvisado, fizemos um pequeno concurso. Maria de Fátima teve de apanhar dois kupapatas para receber das mãos do autor o livro que já estava autografado. Ganhou ainda a promessa de receber outros títulos do autor à medida que fosse trocando impressões sobre o livro lido.
Quando o sol de sábado, 17 de Agosto, se despedia, Álvaro de Boa Vida Neto chegou ao local de festas e tratou de visitar todos os expositores.
- Vou ler e depois lhe faço chegar os comentários. Não pare de escrever e sempre que precisar da nossa ajuda nos contacte. – Despediu-se o governador do Bié, deixando o meu coração aos pulos.
Já com “O Relógio do Velho Trinta” exposto até 31 de Agosto no recinto de festas do Bié, decidi voltar ao Largo Espelho d´Água. Havia água límpida nos repuxos, mas o espelho que mais atraia as crianças, jovens e idosos de todos os sexos era mesmo a estátua da linda que “retirou a roupa de forma desavergonhada”, dando o nome ao espaço.
Foi bom ter visto jovens e adultos sem vergonha de leitura, dando-me certeza de que com mais campanhas e palestras nas escolas e universidades o Bié terá mais leitores e mais conhecimentos.
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Sobre o livro
A literatura não é apenas um exercício lúdico. É também uma das vias de registo histórico, pois os escritores, partindo da realidade tangível e imaginável do seu tempo, criam e recriam cenários e personagens verosímeis que podem ajudar as gerações vindoura a compreender e estrutura social, política e psíquica do tempo descrito. É o que os meus leitores de amanhã e alguns de hoje encontrarão em “O Relógio do Velho Trinta”.
E como o sujeito narrador é o mesmo nas obras de Soberano Canhanga, os leitores mais atentos descobrirão uma espécie de continuidade entre o romance de estreia “O Sonho de Kaúia”, onde o personagem principal, Kaúia, pretendia ser jornalista e “O relógio do Velho Trinta” cujo sonho de um dos personagens é o de ser escritor, ou seja, escrever e publicar um livro. Será que chega lá? Esperemos que, no mínimo, Clovis se esforce e chegue ao próximo livro.
O que peço aos leitores de “O Relógio do Velho Trinta” é que cheguem ao fim do livro, juntando e separando as várias estórias que o tornam rico em vivências e memórias ainda recentes.
"O Relógio do Velho Trinta" é também um “termómetro” que mede e nos apresenta “temperaturas” sociais e situacionais dum território que se assemelha com o nosso país, Angola, e com suas gentes. É uma narrativa sobre reencontros e desencontros…
Soberano Canhanga
Kuito, 16 de Agosto 2014.
Os jovens perdedores da corrida xingaram a organização pelo fraquejar de suas próprias pernas enquanto os vencedores nas distintas categorias tiveram felicidade a dobrar: o prémio foi pecuniário e, aí mesmo, perante “O Relógio do Velho Trinta”, não tiveram como não fazer gosto à leitura. Acederam ao convite formulado por Álvaro Alves, jovem poeta do Bié que lera o romance de véspera, e fizeram uma fila para o livro e a dedicatória.
- Soberano Canhanga traz a vida nas nossas embalas, nas vilas e nas cidades. Retrata a dureza da vida na tropa e nas cidades fustigadas pela guerra, como foi a nossa. Escreve sobre o ‘salve-se quem puder’ que assolou e assola ainda a nossa sociedade. Reporta-nos sobre o negócio com os mortos ou a alegria com suporte em tristezas alheias... O nosso autor convidado às festas do Bié, traz-nos também a realização de dois: o primeiro é o seu que consiste em homenagear um colega finado. O segundo é do personagem Clovis que sonha, escreve e publica um livro… Espero que leiam e sigam o conselho de Clovis que nos apela no fim da obra em presença que “Álcool só na ferida!” - Concluiu o também director provincial da Cultura, na presença do vice-governador para a esfera política e social, Carlos Ulombe da Silva.
- Wiñi wo Vye kalungi! - Saudei ao que em coro a multidão respondeu:
- Kuku!
- Vim cumprir o que prometi aos bienos e ao governo da província que co-patrocinou o meu livro. Ele reporta, de forma ficcionada, tudo aquilo que acabou de dizer o amigo Alves. Tem muito mais. Tem também ideias, experiências e conselhos para que possamos fazer mais do que aquilo que estão a fazer hoje os nossos mais velhos. Temos de ler muito. Ler livros académicos, lúdicos, filosóficos, religiosos, etc. Quem lê transfigura-se. Aprende sempre alguma coisa e isso fá-lo tornar-se pessoa diferente.
Mais do que vender livros vim fazer amizades e fazer novos leitores. Muito obrigado ao governo, muito obrigado aos bienos. Ndapandula Ciwa! – Despedi-me para atender os potenciais leitores, já fartos da manhã de sol ardente.
Perto de cinco dezenas de assinaturas e dedicatórias, entre vendas e ofertas. Antes de arrumar as caixas, o director da cultura faz outro apelo.
- O camarada escritor tem de estar presente, à tarde, no recinto de festas onde montamos já um espaço para expor o livro. Quem não pôde comprar agora vai ter a oportunidade de faze-lo durante os dias de festa. – Apelou o homem da cultura.
O espaço novo, construído à saída da cidade, entre a unidade penitenciária e o mercado do Cisindo, apresenta acessos asfaltados. O largo, também asfaltado, comporta marcações para dois campos para desportos de sala. À volta, foram montadas tendas e barracas em que se vendem produtos predominantemente agro-pecuários e artesanais, notando-se ainda exposições de veículos automóveis e equipamentos agrícolas mecanizados, o que enche de alegria os habitantes do Kuito que vêm a sua cidade a crescer.
A rádio local não quis ficar atrás e juntou-se à “festa do Relógio”. No estúdio improvisado, fizemos um pequeno concurso. Maria de Fátima teve de apanhar dois kupapatas para receber das mãos do autor o livro que já estava autografado. Ganhou ainda a promessa de receber outros títulos do autor à medida que fosse trocando impressões sobre o livro lido.
Quando o sol de sábado, 17 de Agosto, se despedia, Álvaro de Boa Vida Neto chegou ao local de festas e tratou de visitar todos os expositores.
- Vou ler e depois lhe faço chegar os comentários. Não pare de escrever e sempre que precisar da nossa ajuda nos contacte. – Despediu-se o governador do Bié, deixando o meu coração aos pulos.
Já com “O Relógio do Velho Trinta” exposto até 31 de Agosto no recinto de festas do Bié, decidi voltar ao Largo Espelho d´Água. Havia água límpida nos repuxos, mas o espelho que mais atraia as crianças, jovens e idosos de todos os sexos era mesmo a estátua da linda que “retirou a roupa de forma desavergonhada”, dando o nome ao espaço.
Foi bom ter visto jovens e adultos sem vergonha de leitura, dando-me certeza de que com mais campanhas e palestras nas escolas e universidades o Bié terá mais leitores e mais conhecimentos.
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Sobre o livro
A literatura não é apenas um exercício lúdico. É também uma das vias de registo histórico, pois os escritores, partindo da realidade tangível e imaginável do seu tempo, criam e recriam cenários e personagens verosímeis que podem ajudar as gerações vindoura a compreender e estrutura social, política e psíquica do tempo descrito. É o que os meus leitores de amanhã e alguns de hoje encontrarão em “O Relógio do Velho Trinta”.
E como o sujeito narrador é o mesmo nas obras de Soberano Canhanga, os leitores mais atentos descobrirão uma espécie de continuidade entre o romance de estreia “O Sonho de Kaúia”, onde o personagem principal, Kaúia, pretendia ser jornalista e “O relógio do Velho Trinta” cujo sonho de um dos personagens é o de ser escritor, ou seja, escrever e publicar um livro. Será que chega lá? Esperemos que, no mínimo, Clovis se esforce e chegue ao próximo livro.
O que peço aos leitores de “O Relógio do Velho Trinta” é que cheguem ao fim do livro, juntando e separando as várias estórias que o tornam rico em vivências e memórias ainda recentes.
"O Relógio do Velho Trinta" é também um “termómetro” que mede e nos apresenta “temperaturas” sociais e situacionais dum território que se assemelha com o nosso país, Angola, e com suas gentes. É uma narrativa sobre reencontros e desencontros…
Soberano Canhanga
Kuito, 16 de Agosto 2014.
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