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quinta-feira, agosto 22, 2024

O KAMBWIJI DE 10 KG E OS 250 ANOS DA VELHA ROSÁRIA

A idosa na primeira foto é a minha mana Maluvu-a-Kyoko ou Rosária Albano. Calculadamente, deve ter 80 ou mais uns anitos. Porém, diz que "se eu (narrador) tenho 50, ela não pode ter menos de 250 anos" e justifica que me viu a nascer quando ela já era mãe de uma kalumba.

Chamou-me com urgência, no dia 01 de Agosto, e explicou a razão:
_ Lembrei-me de uma cena ocorrida quando tinhas 5 ou 6 anos.
_ O que se passou, mana?
_ Um dia, saí da Munenga e fui ao Rimbe visitar-vos. Mal cheguei, apareceu o mano António (eu tratava por mano o teu pai, porque o pai dele era também meu tio) a carregar dois kambwiji pequenos e tu carregavas um portentoso kambwiji. Então perguntei: mano António, como é que você, enquanto pai, leva dois animais pequenos de pouco peso e o filho é que carrega o animal mais pesado?
_ Ó mana, isso aconteceu?! E o que foi que ele te respondeu?
_ Não foi ele que respondeu. A criança que eu estava a acudir é que respondeu altiva e resmungona.
_ Que eu te respondi, mana?
_ Disseste, num linguajar Kibala bem afinado, "wathithi kwamunzembe, Ndonga-a- Ngulu wandongile!"¹
_ Oh! Foi mesmo, mana?
_ Disseste e põe também essa cena no teu livro. E olha: o livro que me deste, onde eu estou, o teu sobrinho Segunda Januário "Kabengo" levou. No próximo que vais escrever me põe lá de novo.
Levei a mão à cabeça, a pensar, a matutar. Como é que uma velha iletrada valoriza tanto um livro ao ponto de tê-lo todos os dias sobre a cabeceira "junto da Bíblia", segundo me contou?
_ Não tem problema, mana! Olha, na semana passada fui à Kibala e dentre as coisas que escrevi, lembrei-me da frase "wathithi kwamuzembe" e meti na crónica que já saiu no Jornal do Kwanza-Sul e Benguela (Jornal Litoral). Quando eu publicar outro livro, essa parte dos kambwiji vai entrar e vou escrever que foi a mana quem me contou a cena. Quanto ao livro que o Segunda "Kabengo" levou, vamos já resolver.
_ Mas, vais resolver quando, ó Luciano? Eu tinha sempre o meu livro ao lado da Bíblia e quando mandasse alguém ler a Bíblia para mim, também lia o livro, naquela parte que entra o meu nome e a lavra no Kanzangiri.
Fui revistar o carro e, por sorte, havia três livros: um para o Augusto, jovem que foi meu aluno primário e que declarou coisas de me alegrar o coração, e outro para a mana Rosária "Maluvu" Albano que continuou com as estórias. E contou ainda:
_ Olha a nossa mãe Kyoko Ky'Eteta (Mariana) era oleira. Produziu panelas de barro e com estas comprou um cabrito e com o cabrito comprou uma fazenda junto ao rio Mukonga.
_ Ai é?! Não é que a irmã dela Kilombo Ky'Etinu "Maria Canhanga" também fabricava panelas de barro? Mas, no dia em que lhe recordei disso e perguntei "por que é que agora, que a mãe já é idosa e podia retomar a fabricação de panelas e outros artefactos de argila, já não o faz", sabe o que me respondeu?
_ Weli eji ki?²
_ Respondeu que era a pobreza que a impelia a fazer moringues e panelas de barro.
_ Mas, agora a mãe está cega como é que ia triturar a argila, fazer os rolos, formar as panelas, alisar e cozer?
_ Sim, mana Rosária. Eu abordei-a antes de perder a visão. Às vezes ficamos a falar do passado e do presente.
_ Continua a fazer isso, mano. Nós já temos muita idade, mais de 250 anos. Daqui a nada vamos vos deixar e vocês é que vão continuar a contar as coisas. Foi por isso mesmo que te chamei, não havia outro problema, meu irmão. Era somente esse.
Feito o mahezo³, começou a minha vez de trazer à memória alguns tópicos de sua vida.
_ Ó mana, lembro que na sua fazenda, na Mukonga, a mana trepava (com verga) às palmeiras para cortar desdém...
_ Sim. Quando eu era jovem, há homens que não torravam farinha comigo. Eu trepava mesmo como os homens.
_ Mas também se conta que um dia a mana quase caiu...
_ Quem foi que te disse? Você afinal é um pouco mais velho. O que aconteceu é que, ao cortar o cacho, vi uma cobra que estava a olhar para mim. Com medo de que ela fosse cuspideira, perdi força e larguei a verga, caindo. A minha sorte foi o facto de a altura ter sido pequena. Dali em diante nunca mais trepei em palmeiras.
= Genealogia =
Maluvu-a-Kyoko "Rosária" é filha de Kyoko Ky'Eteta. Kyoko é filha de Kiteta. Kiteta é filho de Kyole Muryanga.
Eu sou filho de Kilombo Ky'Etinu⁴. Kilombo é filha de Kitinu, irmão mais velho de Kiteta, ambos filhos de Kyole Muryanga. Logo, temos bisavó comum, Kyole Muryanga.
= Notas =
1- Não desprezes o homem de baixa estatura. Quem é alto nunca toca aos céus. Ndonga-a-Ngulu (baixinho) venceu-me uma vez.
2- O que foi que te disse?
3- Introdução ao tema da conversa.
4- A antroponímia tradicional é matrilinear, ou seja, o filho (a) recebe o apelido da mãe (Maluvu filha de Kyoko). Apenas nos casos el que o progenitor é notável (rei, soba, ou destacado membro da corte) é que o filho adopta o apelido paterno (KilomboKy'Etinu).

1 comentário:

Soberano Kanyanga disse...

Texto publicado no Jornal de Angola de 18.08.24