Era um dia de distribuição de peixe "fresco" que, na verdade, era congelado e raro em Kalulu. O ano, que quase se perde na memória, era 1988. Para quem fosse em visita, a vila estava cheia e agitada. Para nós era apenas "dia do peixe fresco" que faria diferença no almoço e na janta durante a semana. A kizaka, a kabwenya e outros condutos vezeiros estariam, por dias, em gozo de férias, dando lugar ao peixe "cozinhado", grelhado e assado, até acabar, pois poucos tinham meios de conservação.
Calhava vez sim, meses nunca, a chegada da câmara frigoríficas com peixe congelado que era distribuído pelas delegações municipais, empresas públicas, empresas privadas reconhecidas pelo governo e destes para as secções e destas aos trabalhadores.
O autor desta prosa vivia com um primo professor primário na escola nº 3, na Banza de Kalulu. Por isso, estando ele a ministrar aulas, orientou o "irmão", que já era conhecido dos colegas, para ir à fila e receber as unidades que lhe eram "de direito". Vivia-se ainda o tempo da igualdade entre os iguais, embora havendo já diferença entre os que se mostravam diferentes do "povo em geral".
Quem vai hoje a Kalulu, encontra, depois da Pensão da Tia Ká uma entrada. Era um largo quintal onde estacionava o camião frigorífico em que eram retiradas as caixas de carapau congelado, distribuído às delegações municipais, administrações comunais e outros organismos públicos e privados. Recebidas as malas, encontravam-se outros espaços para o retalho equitativo pelos
trabalhadores, salvaguardo o estômago largo dos delegados, comissários, chefes de secções e outros que recebiam mais do que a maioria.
Como em todos os tempos, Kalulu já tinha os pequenos "gregos" que andavam com uns artefactos de madeira com um um pico de metal com que "pescavam" nos locais de distribuição. Fazia sol e um pouco de poeira. Um dos grupos que procedia a abertura das malas de peixe congelado e distribuição unitária abrigava-se no passeio, debaixo da consola do edifício que comportava a EDIL (foto), hoje Pensão e restaurante. À frente estava o PCU (Posto Comando Unificado), cujas instalações acolhem o comando municipal da polícia.
Um rapaz desconhecido controlou a desatenção dos distribuidores e receptores de carapau e, sem ser visto, pescou com o seu artefacto um peixe, colocando-se em fuga no meio da multidão.
Um kota, daqueles reguilas que não gostava de perder nenhuma contenda, pôs-se ao encalce do rapaz, desferindo-lhe um veloz pontapé que falhou no menino e acertou no vazio. O sapato, único do dikota, que era funcionário público, voou e encontrou descanso no cimo da laje consola. As horas que se seguiram foram para o mwadyakime encontrar uma escada que lhe permitisse reaver o pé direito do sapato castanho.
A rapaziada "pescadora" ficou dividida entre o olho no peixe e a estiga ao kota que perdera o sapato camossim por causa de um carapau. De lá em diante, os "sapatos de recreio com duas flores", que vinham da Jugoslávia, passaram a ser chamados "carapau".
Obs: publicado pelo Jornal de Angola de 17.04.2022
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