Sem energia e com os estridentes gritos do neto e da filha derradeira, puxei a fita e comecei a "vê-la", desde os tempos de menino, quando ganhei lucidez para juntar estórias à História dos que me rodeia(ra)m.
Tive pouco tempo de convívio com o meu avô paterno que morreu no "Ano da agricultura"¹. Quatro anos mais tarde, quando eu contava apenas oito, seguiu-se-lhe o meu progenitor. Todo o roteiro de capítulos gravados foi-me narrado pela minha mãe, uma nora que se esmerava em conhecer os caminhos e a genealogia do marido.
Conta-se que o Velho Kaphuku² (Ngana Muryangu) tem a sua origem na região de Karyangu³, de onde saíra em busca de sol e sorte, a mesma sorte que dizem "persegue os audazes".
O rio Longa passa por Karyangu e embranha-se por pequenas planícies e zonas escarpadas, até se afogar num estuário, junto ao Atlântico.
Seguindo o Longa abaixo, Ngana Muryangu atingiu a região de Ndala Kaxibu, antes de atravessar o rio, na região de Kuteka⁴, e se instalar em Kitumbulu⁵ onde plantou café, mandou povoar um riacho e fez vida, atraindo ou juntando-se a outros makulu⁶ avisados do seu tempo.
Alguns, ao que a História vai desvendando, terão se instalado em Kitumbulu, zona escondida entre montanhas, por causa da perseguição colonial aos esclarecidos de então, depois dos acontecimentos de 1961.
O café, monocultura que dava dinheiro ao Estado colonial português, era uma boa escapatória ao autóctene que se queria ver distante dos exploradores e dava a possibilidade de agregar ao refúgio o lado empreendedor.
Ora, todos eles, e todos meus parentes pelo lado paterno e materno Ngang'Embombo (Matabicho), João dos Santos (João Kitumbulu), Kyuma Albano e Kaphuku (Ngana Muryangu), ninguém teve continuador no seu empreendimento cafeícola. A cafeicultura era um refúgio mas também um "funeral" de tudo quanto tinham amealhado e podiam colectar naquele momento. Valeu-lhes apenas a liberdade de não irem ao pseudo-contrato, estarem empenhados nas suas tarefas coordenativas da comunidade e apoio à revolução, ganhando alguns trocados para pagar impostos e "comprar sal".
As terras que lavraram e cultivaram estão aí. Intactas. Todos, em Kuteka, sabem de quem são e a mensagem vai passando de geração em geração, mesmo com os descendentes directos ausentes e, nalguns casos incógnitos. As frutas das árvores que persistem às intempéries vão sendo colhidas e comidas. E os recados chegam.
- Colhi um balde de laranjas na fazenda do velho Kanyanga (meu avô materno).
Quem, porém, vai fazer a poda das plantas resilientes ao tempo e às intempéries e ampliar os campos? Nem nossos pais, nem nós fomos talhados para a agricultura longe do asfalto.
Sem guerra, eventualmente mantivéssemos o contacto e os afectos. A guerra e as escolas afastaram Kitumbulu e criaram em nós outras ocupações, outras formas de trabalhar e de empreender!
Por essa via, outros "Kitumbulu" podem estar a nascer nas cidades e a correrem o risco d enão terem continuadores. Veja-se, a título de exemplo, um investimento (de todo o suor) em uma "farmácia", sem que um dos herdeiros tenha paixão pela saúde. Talvez alguém esteja a construir um edifício comercial, podendo deixá-lo por concluir, sem que um dos herdeiros tenha vocação para a construção e ou para o comércio!
Vendê-lo-ão à primeira oferta, sem uma mínimo prospecção do mercado imobiliário. Será mero descaso para eles (herdeiros) e um desperdício para quem podia desfrutar do fruto do seu suor em vez de empreender. Terá sido o caso Kitumbulu!
Quanto a mim, ficou apenas no sangue o gosto pelas plantas e pelos animais domésticos que levei até à grande cidade.
=
¹ Ano de 1978.
² Fernando Ndambi, tb conhecido por Ngana Muryangu.
³ Leste de Kibala.
⁴ Regedoria da comuna de Munenga.
⁵ Área proxima da aldeia de Mbangu- Kuteka.
⁶ Mais velhos. Para além de Ngana Muryangu, apontavam-se João dos Santos (João Kitumbulu), saído da região de Kindongo, e Matabicho, de Mbangu-Kuteka.