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sexta-feira, novembro 26, 2021

KITUMBULU E OS EMPREENDEDORES SEM CONTINUADORES

Sem energia e com os estridentes gritos do neto e da filha derradeira, puxei a fita e comecei a "vê-la", desde os tempos de menino, quando ganhei lucidez para juntar estórias à História dos que me rodeia(ra)m.
Tive pouco tempo de convívio com o meu avô paterno que morreu no "Ano da agricultura"¹. Quatro anos mais tarde, quando eu contava apenas oito, seguiu-se-lhe o meu progenitor. Todo o roteiro de capítulos gravados foi-me narrado pela minha mãe, uma nora que se esmerava em conhecer os caminhos e a genealogia do marido.
Conta-se que o Velho Kaphuku² (Ngana Muryangu) tem a sua origem na região de Karyangu³, de onde saíra em busca de sol e sorte, a mesma sorte que dizem "persegue os audazes".
O rio Longa passa por Karyangu e embranha-se por pequenas planícies e zonas escarpadas, até se afogar num estuário, junto ao Atlântico.
Seguindo o Longa abaixo, Ngana Muryangu atingiu a região de Ndala Kaxibu, antes de atravessar o rio, na região de Kuteka⁴, e se instalar em Kitumbulu⁵ onde plantou café, mandou povoar um riacho e fez vida, atraindo ou juntando-se a outros makulu⁶ avisados do seu tempo.
Alguns, ao que a História vai desvendando, terão se instalado em Kitumbulu, zona escondida entre montanhas, por causa da perseguição colonial aos esclarecidos de então, depois dos acontecimentos de 1961.
O café, monocultura que dava dinheiro ao Estado colonial português, era uma boa escapatória ao autóctene que se queria ver distante dos exploradores e dava a possibilidade de agregar ao refúgio o lado empreendedor.
Ora, todos eles, e todos meus parentes pelo lado paterno e materno Ngang'Embombo (Matabicho), João dos Santos (João Kitumbulu), Kyuma Albano e Kaphuku (Ngana Muryangu), ninguém teve continuador no seu empreendimento cafeícola. A cafeicultura era um refúgio mas também um "funeral" de tudo quanto tinham amealhado e podiam colectar naquele momento. Valeu-lhes apenas a liberdade de não irem ao pseudo-contrato, estarem empenhados nas suas tarefas coordenativas da comunidade e apoio à revolução, ganhando alguns trocados para pagar impostos e "comprar sal".
As terras que lavraram e cultivaram estão aí. Intactas. Todos, em Kuteka, sabem de quem são e a mensagem vai passando de geração em geração, mesmo com os descendentes directos ausentes e, nalguns casos incógnitos. As frutas das árvores que persistem às intempéries vão sendo colhidas e comidas. E os recados chegam.
- Colhi um balde de laranjas na fazenda do velho Kanyanga (meu avô materno).
Quem, porém, vai fazer a poda das plantas resilientes ao tempo e às intempéries e ampliar os campos? Nem nossos pais, nem nós fomos talhados para a agricultura longe do asfalto.
Sem guerra, eventualmente mantivéssemos o contacto e os afectos. A guerra e as escolas afastaram Kitumbulu e criaram em nós outras ocupações, outras formas de trabalhar e de empreender!
Por essa via, outros "Kitumbulu" podem estar a nascer nas cidades e a correrem o risco d enão terem continuadores. Veja-se, a título de exemplo, um investimento (de todo o suor) em uma "farmácia", sem que um dos herdeiros tenha paixão pela saúde. Talvez alguém esteja a construir um edifício comercial, podendo deixá-lo por concluir, sem que um dos herdeiros tenha vocação para a construção e ou para o comércio!
Vendê-lo-ão à primeira oferta, sem uma mínimo prospecção do mercado imobiliário. Será mero descaso para eles (herdeiros) e um desperdício para quem podia desfrutar do fruto do seu suor em vez de empreender. Terá sido o caso Kitumbulu!
Quanto a mim, ficou apenas no sangue o gosto pelas plantas e pelos animais domésticos que levei até à grande cidade.
=
¹ Ano de 1978.
² Fernando Ndambi, tb conhecido por Ngana Muryangu.
³ Leste de Kibala.
⁴ Regedoria da comuna de Munenga.
⁵ Área proxima da aldeia de Mbangu- Kuteka.
⁶ Mais velhos. Para além de Ngana Muryangu, apontavam-se João dos Santos (João Kitumbulu), saído da região de Kindongo, e Matabicho, de Mbangu-Kuteka.

 

sexta-feira, novembro 19, 2021

A ÁGUA E O MAGRINHO

Vila do Ebo, 13 de Novembro. O ano é esse mesmo.

A cadeia montanhosa e pedregosa que abraça a região, faz com que haja um microclima com nuvens a encobrir o topo das elevações que se vestem de branco quase todos os dias. Tal faz com que a água, em gotículas finas, grossas ou até acompanhadas de granizo caia ao acordar, ao almoçar e ao jantar.

Esse clima, com água e lama, faz as crianças se sujarem durante as suas brincadeiras e tarefas confiadas à idade. Dentre os petizes conhecidos está Magrinho. É slim, de pouca fala e educado a não mentir. Bem, Magrinho tem outro nome, o da escola como dizem, e a data de nascimento que só a mãe e o professor conhecem.
Quando se lhe pergunta em que ano nasceu, Magrinho diz que foi em Novembro!
Na visita ao Ebo, vi magrinho brincar com outros irmãos. Quando perguntado "quem havia sujado o carro, Magrinho teve a coragem de apontar o irmão e denunciar-se.
- Foi o João e eu, tio!
Tomámos boa nota da sua verticalidade e fizemo-nos amigos. Passou a ser Magrinho pr'aqui e Magrinho pr'ali. Durante os três dias, ele foi a mascote da casa, fazendo-nos esquecer, por curtos instantes, o momento lúgubre que nos levou ao Ebo.
Mas a melhor do Magrinho, que não sabia dizer quantos anos tem, variando entre dois e 12, quando o irmão mais velho tem nove, foi quando o tio Beto Spina, vendo-o sujo e prestes a ir dormir, o ordenou a lavar o corpo.
- Magrinho!
- Tio!
-Vai tomar banho.
- Não, tio. Hoje não vou tomar banho.
- Vai lá, pá! Tens medo do frio?
- Não, tio. A água está a levar as pessoas!

A resposta derradeira de Magrinho parecia cómica, risível. Mas levou-nos a mergulhar no assunto que nos levara ao Ebo. Nossa mãe Mariana Almeida, a avô materna do Magrinho, fora arrastada, quatro dias antes, por uma corrente de água ao atravessar um riacho pelo que passou variadíssimas vezes ao longo dos seus sessenta e três anos.
Ficámos a reflectir na inteligência do Magrinho que passou a detestar a água, por lhe ter arrancado a avó.
- Não, tio. A água está a levar as pessoas! - Tem razão o Magrinho.

sexta-feira, novembro 12, 2021

NGASAKIDILA, MALANJI!

Depois de termos sido convidados pelo Governo Provincial para presidir ao Júris do Prémio Provincial de Jornalismo de Malanje 2019, eis que surgiu novo convite para integrar a equipa avaliadora em 2021.

Melhor do que em 2019, o Presidente foi eleito entre os pares, missão que Marcos Gabriel, Ema Massunga Da Silva, Adelino Ngunza e Isidoro Natalicio Isidoro acabaram por me atribuir. O Ngunza foi vice e o Natalício secretário.

Foram intensas reuniões e viagens, cansativas de Luanda a Malanje, entre os dias 30 e 31 de Outubro e 10 e 11 de Novembro, para além de intenso trabalho de casa, debates e troca de argumentos técnicos, usando vias virtuais.

O Regulamento do Prémio, a "doutrina", a experiência e a consciência de cada um dos integrantes foram elementos balizadores da actuação do Júris que concluiu o seu trabalho a faltarem minutos da gala de premiação, 11.11.2021, no auditório da Rádio Malanje.

E não nos ficámos pela análise minuciosa e anúncio dos melhores em cada categoria. Fizemos recomendações aos jornalistas para que mesmo não havendo comunicação de concurso, cada escriba se esmerasse em preparar uma reportagem (sem pressa) que seria da agenda seting, obedecendo à planificação, listagem de fontes (documentais e pessoais), busca de informação in situ, cruzamento de informações, redacção/edição/montagem e difusão. Foi ainda recomendada a abstenção ao uso indevido de propriedade intelectual alheia (plágio).

À entidade promotora e às direcções dos medias de Malanje foi sugerida a formação contínua (por medida) dos jornalistas para que possam reportar melhor Malanje e participar em outros concursos como o Prémio Nacional de Jornalismo ou mesmo o da SADC.

Fazemos vênia ao Governador mwata Kwata Kanawa, que no final da actividade, nos chamou para dizer que "tinha gostado das recomendações e sugestões".
Obrigado, Malanje e meus pares, pela oportunidade!

segunda-feira, novembro 08, 2021

LAMBIJI E CONDUTO

 - Ombelela nyê?!- Perguntava o tio Vinte e Cinco à mulher, sempre que chegasse da tonga¹.

- Lambiji kihi, Elombo?! - Indagava, igualmente, o meu pai, antes dos amicíssimos juntarem as jantas, uma noite em casa do tio Vinte e Cinco e outra em nossa. Era assim religiosamente.

Porém, o vizinho Cacebola, um ovimbundu que tinha estudado um pouco mais e que era capataz (ajudante do gerente), preferia pronunciar o termo conduto para se referir ao que acompanhava o pirão.
Era fuba de milho, feijão e peixe seco amarelado ou acastanhado que o "patrão-Estado" continuava a distribuir aos camponeses da fazenda. Estávamos a finalizar a década de setenta do séc. XX.

www.mozindico.blogspot.com faz referência a conduto (Angola) como "iguaria" acompanhante, sobretudo para o pirão/funji e outros alimentos.
Na meu consciente, o termo entra por volta de 1978, quando a minha família se mudou de Kitumbulu (fazenda de meu avô Fernando Ndambi) à fazenda Israel (comuna da Munenga).
Os trabalhadores ovimbundu da fazenda (rebaptizada Hoji-ya-Henda) usavam termos como pirão em vez de funji e conduto para a iguaria acompanhante.
Até então, o termo familiar, no "nosso Kimbundu de Kuteka", era lambiji².
Se calhar, por ser um povo ribeirinho (Longa), o peixe tenha sido o principal conduto de sua dieta, fora os vegetais que, senso geral, recebiam a designação de lambiji.
Genericamente, lambiji/ mbiji podia ser peixe, verduras, insectos (grilos, cigarras, térmitas/salalé, gafanhotos) ou carne.
- Lelo, lambiji kihi?³
- Lambiji xiwe!⁴
Ombelela era/é outra expressão usada pelos ovimbundu com quem privei na infância para se referirem à iguaria acompanhante do pirão.
O termo conduto vem ganhando força e "expansão nacional", impondo-se no léxico da Língua Veicular (Pt). Porém, é mister assinalar e registar as particularidades de cada região e povo, no que diz respeito às suas particularidades sociológicas e linguísticas, pois a construção do todo nacional passa, indubitavelmente, pelo "eu" de cada comunidade.
O angolano Carlos Figueiredo, professor e investigador de História e Linguística do Libolo, diz que "conduto é termo português, bastante usado no norte de Portugal, sendo que o seu uso em Angola terá a ver com as fases da colonização das diferentes áreas da então colónia, pois o termo era comum no Português da Idade Média. Note-se que a colonização de Benguela Nova (actual Benguela) e Planalto Central, ou seja das zonas Ovimbundu, dá-se a partir do início do séc. XVII, ou seja, quando ainda se falava o Português do período clássico. Esta ocupação é muito anterior à colonização do interior do Cuanza-Sul, que vai acontecer apenas no final do século XIX, quando já se fala o Português moderno. Portanto, no Libolo, a palavra “conduto” foi usada também para definir a a ração dada pelos colonos aos trabalhadores."
Fernanda Bandos, portuguesa, acrescenta que "conduto é um termo usado pelos meus avós portugueses, mas que tem sido substituído pelo termo acompanhamento em muitos restaurantes em Lisboa."
Por seu turno, o quissongoense (Libolo) Artur Cussendala recorda que, na sua aldeia, "todo o acompanhante é tratado genericamente por mbiji (peixe)".
O escritor e pesquisador social Gociante Patissa, quando solicitado a debitar sobre a expressão mbelela/ombelela, explica que "conforme as variantes do umbundu, mbelela ou ombelala podem referir-se exclusivamente ao conduto que tenha a ver com carne (de animal), passando o resto a integrar a categoria de "lombo", o que abarca também peixe e feijão. [É assim] na região de Benguela, os considerados vacisanji e vassale (estes últimos mais próximos do Kwanza-Sul)".
No leste/nordeste de Angola, onde predomina a língua Ucokwe, ikasa é o designativo do acompanhante de xima⁵. O poeta e jornalista João De Figueiredo Wassamba confirma que tal designação genérica "aplica-se a carne, peixe verduras, insectos e demais acompanhantes".

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¹- Empreitada. Parte distribuída, na fazenda, como empreitada diária.
² Acompanhante.
³ Hoje, qual será o acompanhante/conduto?
⁴ Será (carne de) paca.
⁵ O mesmo que funji para os ambundu. Os tucokwe comem, preferencialmente, pasta feita de farinha de mandioca (fuba de bombô).

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Publicado no Jornal Litoral de 9 de Março de 2023

segunda-feira, novembro 01, 2021

LONGESO

Desde que o "Jornal de Sábado" foi ao Wambu fazer e transmitir as notícias daquele dia, a partir de Mbalundu, que o longeso¹ passou a ser assunto de comentários e "interesse nacional", sobretudo por parte dos adyakime².

Quando pequeno, nas hortas do Limbe³ e, mais tarde, de Kalulu, sempre que desbravasse a terra, surgiam pequenos tubérculos saídos quase que do nada. Pequenos, comparados a grãos de jinguba⁴, nunca tinham desperto a nossa atenção, salvo raras excepções de alguns mais velhos que, à escondida os lavavam e experimentavam, sempre longe de nossos olhares.
Foi depois da RNA ter, em crónica, anunciado que "Mbalundu era o único município do país onde se podia encontrar os [super-afrodisíacos] longeso" que comecei a rebobinar a minha longa metragem de recordações até chegar a ele.
Bem atrás de minha casa, em Viana, está a centenária Lagoa de Terembembe, aonde os homens canalizam, hoje, todas as águas pluviais e urbanas de Viana. Onde haja água e terra há longeso!
Quem quiser comprar, pode procurar-me para ganhar a capacidade metralhadora e de "produção gemelar". Tenho uma honga⁵ de longeso.
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¹ tubérculo de uma herbácea cujas folhas se podem confundir com as de alheiro, presente nas zonas baixas e ribeirinhas.
² Mais velhos (Kimbundu).
³ Aldeia (extinta) da comuna da Munenga, ficava a dois Km da actual Pedra Escrita, na EN120.
⁴ Amendoim.
⁵ Lavra em terreno plano e ou baixo. Horta.