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quinta-feira, dezembro 19, 2019

A MIRA DO KAWISU

Sobrinho Victor, apenas quarenta e três anos no corpo alto e esguio. Na boca muitas estigas e anedotas de fazer todos rir. Disseram que até na igreja e no trabalho era assim. Homem que recebesse uma tampa de uma dengosa menina a abanar o xarope acabava esquecendo a desfeita. Mulher sengada se esquecia de ter voltado à casa da mãe e a viver no "quarto do quintal" cantado por uma artista de Luanda. Victor bazou. Deixou-nos assim, sem poder mais fazer rir até lacrimejar com as fortes e picantes cenas que só ele e Zunga Laka, o Poupa-a-Língua, sabiam apimentar.
Ainda continuamos a chorá-lo, ja sem lagrimas que ele ajudou a verter com as estigas e piadas do seu passado vivo.
- Ó meu sobrinho, Zunga Laka, ainda bem que te encontrei. Sabes que lá no Kuteka tu és herdeiro do trono real, nê? Prepara-te. Nesses tempos de enfrentar o comissário e dizer-lhe, olho-no-olho, ó chefe, as coisas que você anda a pensar não se coadunam com as nossas necessidades, é pessoa como o sobrinho que tem de tomar o poder. Saimos todos da mesma beixiga, Kitinu, teu avô, e Gabriel, meu pai e substituto do teu avô. O Kuteka é teu e todos somos teu povo. - Atirou Zé Gabriel, o principe.
Homem sério nas palavras. Coitado, Zé Gabriel não bebe nem fuma.
- Mas ó sobrinho, kenhêsse que está sentado aí sem abrir a boca, cabelo preto tipo carvão, mas com idade de mwaryakime?
- É o tio Zé Kinhemdu, irmão mais velho da mãe do finado Victor, tio. - Respondeu-lhe Zunga Laka.
-Xê?! O Zé Bangão que engraxava os sapatos de cinco a cinco metros? Coitado, ficou velho e até a banga bazou! Quantos filhos conseguiu produzir? Olha, eu te dei muitos primos e primas. Vais lhes conhecer...
- Tio Zé Gabriel, o filho dele é aquele que está ali. O Kawisu é único, desde que ele saiu do mato. Nunca mais arranjou mulher ou alguma mukherbo tenha arranjado. Kawisu! Vem para te apresentar o tio Zé Gabriel, filho do avô Kañane de kuteka.
Lavado por muitas canecas e saquetas, o Kawisu estava em estado de quase overdose. Era um barril de pólvora caso uma fonte incadescente dele se abeirasse.
- Poupa Língua, te ouvi a falar do papá. Como é que vocês dão confiança a um tropa que deita fora a arma em pleno combate? - Atirou Kawisu, em jeito de provocação ao progenitor.
Ao que se diz, o incorformismo de ele ser filho único e ter de lutar sozinho em todas as frentes perante um pai que se ausentou da aldeia quando apenas tinha poucos dias de vida faz dele uma fábrica de lamentações.
- Kawisu repete. É o quê mesmo que o meu primo fez? - Indagou Zé Gabriel, de olhos postos no seu primo Zé António que se contorcia para ajeitar os atacadores dos sapatos já gastos e envelhecidos.
- Yá, tio. Papá uta wembilaxi (o papá desfez-se da arma).
- Mas qual arma ou rapaz? - Atirou Zé Gabriel curioso e brincalhão.
- Ó tio, você tem quantos filhos? Eu, pelo menos, já fiz catorze. Sete são meus, outros sete fiz na conta dele. Mas também só me ficaram quatro. O feitiço na banda é demais! E teu primo não me deixou eu sozinho? Assim fez o quê? Não é arma que deixou perder na guerra?
As conversas, sempre a mudar de temas e de rumos continuaram noite adentro. Ora recordando recortes de pesca no caudaloso Longa, ora sobre a caça por armadilhas, flexas e tiro. Foi nessa última modalidade em que Kawisu desvendou a sua pérola.
- Ó primo Poupa Língua, eu, na mira, ninguém torra farinha comigo. O macaco pode estar escondido numa árvore no Rocha Pinto, se largae a cauda e eu vir, tiro certeiro.
- Comué que você abate macaco da Frescangol ao Rocha? É com missil? - Perguntou Kalitozu.
Kawisu é assim. Em tudo quanto narra há uma dose de hipérbole. E continuou a elevar o tom de voz, os frascos e saquetas até cair e virar mero objecto de tropeço para outros alcoolizados. Cada um dos parentes ainda chora o Victor como pode. Aconteceu há dois dias.

Texto publicado pelo Jornal de Angola de 22.12.19

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