Sobrinho Victor, apenas quarenta e três anos no corpo alto e esguio. Na boca muitas estigas e anedotas de fazer todos rir. Disseram que até na igreja e no trabalho era assim. Homem que recebesse uma tampa de uma dengosa menina a abanar o xarope acabava esquecendo a desfeita. Mulher sengada se esquecia de ter voltado à casa da mãe e a viver no "quarto do quintal" cantado por uma artista de Luanda. Victor bazou. Deixou-nos assim, sem poder mais fazer rir até lacrimejar com as fortes e picantes cenas que só ele e Zunga Laka, o Poupa-a-Língua, sabiam apimentar.
Ainda continuamos a chorá-lo, ja sem lagrimas que ele ajudou a verter com as estigas e piadas do seu passado vivo.
- Ó meu sobrinho, Zunga Laka, ainda bem que te encontrei. Sabes que lá no Kuteka tu és herdeiro do trono real, nê? Prepara-te. Nesses tempos de enfrentar o comissário e dizer-lhe, olho-no-olho, ó chefe, as coisas que você anda a pensar não se coadunam com as nossas necessidades, é pessoa como o sobrinho que tem de tomar o poder. Saimos todos da mesma beixiga, Kitinu, teu avô, e Gabriel, meu pai e substituto do teu avô. O Kuteka é teu e todos somos teu povo. - Atirou Zé Gabriel, o principe.
Homem sério nas palavras. Coitado, Zé Gabriel não bebe nem fuma.
- Mas ó sobrinho, kenhêsse que está sentado aí sem abrir a boca, cabelo preto tipo carvão, mas com idade de mwaryakime?
- É o tio Zé Kinhemdu, irmão mais velho da mãe do finado Victor, tio. - Respondeu-lhe Zunga Laka.
-Xê?! O Zé Bangão que engraxava os sapatos de cinco a cinco metros? Coitado, ficou velho e até a banga bazou! Quantos filhos conseguiu produzir? Olha, eu te dei muitos primos e primas. Vais lhes conhecer...
- Tio Zé Gabriel, o filho dele é aquele que está ali. O Kawisu é único, desde que ele saiu do mato. Nunca mais arranjou mulher ou alguma mukherbo tenha arranjado. Kawisu! Vem para te apresentar o tio Zé Gabriel, filho do avô Kañane de kuteka.
Lavado por muitas canecas e saquetas, o Kawisu estava em estado de quase overdose. Era um barril de pólvora caso uma fonte incadescente dele se abeirasse.
- Poupa Língua, te ouvi a falar do papá. Como é que vocês dão confiança a um tropa que deita fora a arma em pleno combate? - Atirou Kawisu, em jeito de provocação ao progenitor.
Ao que se diz, o incorformismo de ele ser filho único e ter de lutar sozinho em todas as frentes perante um pai que se ausentou da aldeia quando apenas tinha poucos dias de vida faz dele uma fábrica de lamentações.
Ao que se diz, o incorformismo de ele ser filho único e ter de lutar sozinho em todas as frentes perante um pai que se ausentou da aldeia quando apenas tinha poucos dias de vida faz dele uma fábrica de lamentações.
- Kawisu repete. É o quê mesmo que o meu primo fez? - Indagou Zé Gabriel, de olhos postos no seu primo Zé António que se contorcia para ajeitar os atacadores dos sapatos já gastos e envelhecidos.
- Yá, tio. Papá uta wembilaxi (o papá desfez-se da arma).
- Mas qual arma ou rapaz? - Atirou Zé Gabriel curioso e brincalhão.
- Ó tio, você tem quantos filhos? Eu, pelo menos, já fiz catorze. Sete são meus, outros sete fiz na conta dele. Mas também só me ficaram quatro. O feitiço na banda é demais! E teu primo não me deixou eu sozinho? Assim fez o quê? Não é arma que deixou perder na guerra?
As conversas, sempre a mudar de temas e de rumos continuaram noite adentro. Ora recordando recortes de pesca no caudaloso Longa, ora sobre a caça por armadilhas, flexas e tiro. Foi nessa última modalidade em que Kawisu desvendou a sua pérola.
- Ó primo Poupa Língua, eu, na mira, ninguém torra farinha comigo. O macaco pode estar escondido numa árvore no Rocha Pinto, se largae a cauda e eu vir, tiro certeiro.
- Comué que você abate macaco da Frescangol ao Rocha? É com missil? - Perguntou Kalitozu.
Kawisu é assim. Em tudo quanto narra há uma dose de hipérbole. E continuou a elevar o tom de voz, os frascos e saquetas até cair e virar mero objecto de tropeço para outros alcoolizados. Cada um dos parentes ainda chora o Victor como pode. Aconteceu há dois dias.
Texto publicado pelo Jornal de Angola de 22.12.19
Texto publicado pelo Jornal de Angola de 22.12.19
Sem comentários:
Enviar um comentário