Quem viveu ou vive numa comunidade rural, entre Lubolu e Kibala, já terá ouvido a associação da fotografia e da carta aos actos de "phanda", ou seja, de infidelidade conjugal.
No tempo em que vivi na comunidade rural, diga-se, não havia telefones. Isso é verdade.
Tambem, nas aldeias rurais, dada a coesão social e extensão familiar, os passos e os contactos presenciais são muito "vigiados", ou seja, a noção de segredo quase inexiste. Os caminhos são poucos e os mesmos. Os lugares (para cuidar da higiene, acarretar água, cultivo, pesca, etc.) são comuns, fazendo com que um cidadão contemporâneo e urbano se sinta "vigiado" pela comunidade. Tal, evita contactos mais ousados entre pessoas de sexo oposto que não sejam cônjuges ou que (pelo menos a mulher) não esteja à disposição de poder ser galanteada.
Apesar desse "big brother" involuntário e imposto pela própria organização social, casos de "jiphanda" ocorrem na versão consumada ou tentada por via de um "intermediário comunicativo". Surge aqui a eufemística "foto e a carta".
- A fulana lhe apanharam (foi encontrada) com foto do fulano e, por isso, o marido (ou ex-marido de quem a separação ainda não transitou em julgamento e dada a união como dissolvida) pediu reunião com o soba para cobrar "phanda".
- O sicrano mandou carta na (à) fulana que foi interceptada e o marido está a pedir "phanda" (multa).
"Foto e Carta" numa comunidade fechada... Sem que o indivíduo tenha ainda o discernimento necessário para as correctas leituras, se pode inferir tratarem-se de objectos/veículos de comunicação. Apenas isso. Assim ainda estarão alguns a pensar, pois assim também pensava eu na infância, sempre que me chegassem ao ouvido relatos dessa natureza.
Mas que utilidade teria uma foto alheia (de homem alheio), numa comunidade em que as pessoas se vêem todos os dias sempre que queiram e onde muitos nem bilhete de identidade têm?
Que utilidade e que mensagem teria uma "carta" remetida por um analfabeto a uma analfabeta, sendo eles moradores de uma aldeia onde o canal de comunicação mais eficaz é o oral?
Carta ou foto é forma metafórica ou eufemística de designar um acto que constringe a comunidade e que, se menos percebido pelos neófitos, melhor será para a preservação dos bons costumes.
A foto ou a carta não são mais do que o adultério na sua forma materializada e comprovada! Note-se que até a expressão menos eufemística para designar adultério no Kimbundu do Kwanza-Sul é "usuñina", literalmente seroar ou permanecer em serão (acordado, conversando até altas horas).
Em casos de adultério, acto repudiado pela comunidade, regra geral, é punido o homem envolvido com uma multa ao ofendido, retornando a mulher ao cônjuge. Tratando-se de uma relação em que a mulher não tenha ainda devolvido (simbólica ou totalmente o alembamento à família do marido de quem se separou ou finado) a multa é paga ao marido ou sua família, tornando-se ela livre para amancebar-se com o autor da "delícia" da qual foi flagrada ou acusada, podendo ainda adquirir apenas a condição de "mulher livre/legalmente separada" e puder partir para outra gida conjugal.
As multas variam de aldeia em aldeia e de família em família, podendo envolver pecúnia, animais vivos, alimentos, bebidas alcoólicas e, algumas vezes, algumas palmatória ao ofensor. O ofendido ou sua família (se distante ou finado), o soba e a comunidade beneficiam-se, em porções distintas, dos bens pagos pelo "beneficiário da flagrante delícia".
Publicado no Jornal de Angola de 03.11.2019
No tempo em que vivi na comunidade rural, diga-se, não havia telefones. Isso é verdade.
Tambem, nas aldeias rurais, dada a coesão social e extensão familiar, os passos e os contactos presenciais são muito "vigiados", ou seja, a noção de segredo quase inexiste. Os caminhos são poucos e os mesmos. Os lugares (para cuidar da higiene, acarretar água, cultivo, pesca, etc.) são comuns, fazendo com que um cidadão contemporâneo e urbano se sinta "vigiado" pela comunidade. Tal, evita contactos mais ousados entre pessoas de sexo oposto que não sejam cônjuges ou que (pelo menos a mulher) não esteja à disposição de poder ser galanteada.
Apesar desse "big brother" involuntário e imposto pela própria organização social, casos de "jiphanda" ocorrem na versão consumada ou tentada por via de um "intermediário comunicativo". Surge aqui a eufemística "foto e a carta".
- A fulana lhe apanharam (foi encontrada) com foto do fulano e, por isso, o marido (ou ex-marido de quem a separação ainda não transitou em julgamento e dada a união como dissolvida) pediu reunião com o soba para cobrar "phanda".
- O sicrano mandou carta na (à) fulana que foi interceptada e o marido está a pedir "phanda" (multa).
"Foto e Carta" numa comunidade fechada... Sem que o indivíduo tenha ainda o discernimento necessário para as correctas leituras, se pode inferir tratarem-se de objectos/veículos de comunicação. Apenas isso. Assim ainda estarão alguns a pensar, pois assim também pensava eu na infância, sempre que me chegassem ao ouvido relatos dessa natureza.
Mas que utilidade teria uma foto alheia (de homem alheio), numa comunidade em que as pessoas se vêem todos os dias sempre que queiram e onde muitos nem bilhete de identidade têm?
Que utilidade e que mensagem teria uma "carta" remetida por um analfabeto a uma analfabeta, sendo eles moradores de uma aldeia onde o canal de comunicação mais eficaz é o oral?
Carta ou foto é forma metafórica ou eufemística de designar um acto que constringe a comunidade e que, se menos percebido pelos neófitos, melhor será para a preservação dos bons costumes.
A foto ou a carta não são mais do que o adultério na sua forma materializada e comprovada! Note-se que até a expressão menos eufemística para designar adultério no Kimbundu do Kwanza-Sul é "usuñina", literalmente seroar ou permanecer em serão (acordado, conversando até altas horas).
Em casos de adultério, acto repudiado pela comunidade, regra geral, é punido o homem envolvido com uma multa ao ofendido, retornando a mulher ao cônjuge. Tratando-se de uma relação em que a mulher não tenha ainda devolvido (simbólica ou totalmente o alembamento à família do marido de quem se separou ou finado) a multa é paga ao marido ou sua família, tornando-se ela livre para amancebar-se com o autor da "delícia" da qual foi flagrada ou acusada, podendo ainda adquirir apenas a condição de "mulher livre/legalmente separada" e puder partir para outra gida conjugal.
As multas variam de aldeia em aldeia e de família em família, podendo envolver pecúnia, animais vivos, alimentos, bebidas alcoólicas e, algumas vezes, algumas palmatória ao ofensor. O ofendido ou sua família (se distante ou finado), o soba e a comunidade beneficiam-se, em porções distintas, dos bens pagos pelo "beneficiário da flagrante delícia".
Publicado no Jornal de Angola de 03.11.2019
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