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domingo, dezembro 29, 2019

VOLTA-E-MEIA: TÍTULOS NA GAVETA, APENAS MUSSUNDA!

Parte dos Mussund'Amigos
A conversa, uma de muitas que eles mantêm quando se encontram, começou assim:

- Ó Ceita, aceitas ser o padrinho do KR?
Havia quase fila para abraçar a Celi que é madrinha do KR. O afilhado,  nos seus quase dois metros e corpo de imbondeiro bem enxuto, estava colado a ela e de olhos nos que se aproximavam dela.
- Não. Só vim mesmo cumprimentar e nada mais. - Respondeu  o Ceita, depois de receber um olhar fixo e determinante do KR.
Possas, na vida, afinal, há dessas coisas. A Celi é uma moça, já senhora na casa dos 40 anitos, que conserva uma "boniteza" que não quer ir embora, acrescida de naturais e bem prendados glúteos. "Monumental, parece obra de arte"! - Ouvia-se aos murmúrios.
- Mas ó Ceita, - continuou o PCA Star - só querias mesmo cumprimentar a Celi, nem abraçar nem nada?
- Porra! Com aquelas toneladas de fibra do KR a proteger a Celi, querias mais o quê? Sabes lá se têm contrato de não aproximação?
O Ceita estava já a "dar costas" ao casal de colegas, quando o PCA Star foi ter com ele.
- Epá, isso vai sair na crónica!
- Possas, queres que saia? Então que saia, pá. Tu vês, nê? É que quando a madrinha é boa, todos querem dar um abraço. Às vezes, na rua, vemos mulheres de silhueta incomum e da boca nem brota o simples atrevimento de uma saudação.

Mas aqui a colega é nossa. El'ê nossa kamba, nossa Mussund'amiga de todos nós e de todos os tempos. Só mesmo aquela corpulência de pugilista do KR é que aos tímidos desencoraja o abraço.
Os Mussunda, como eles se tratam, já levam, para todos os efeitos, mais 26 anos. São ex-colegas do Curso Médio de Jornalismo ministrado no IMEL e que mantêm os vínculos de amizade que chega à irmandade.
Não se constituindo em uma organização formal, com registo cartorial, são tão organizados e unidos que
PCA Star e Amilcar
metem inveja a muitas ONG e similares.  Quando decidem reencontrar-se, não medem distâncias nem circunstâncias e transformam o local do encontro numa grande maratona festiva com manjares, muitos falares e frascos moderados. Foi assim, mais uma vez, no último sábado de 2019.
Capitaneados pelo Star (o gajo tem a mania de ser PCA) e Jack Nicholson, o administrador "ejonera" que põe ordem no grupo, os Mussunda aproveitaram juntar à fome a vontade de comer.
Um seu correligionário (JPCL ou Kamba João) acabara de ser nomeado ao posto de Secretário de Estado.
Às lembranças de tempos vividos no IMEL juntou-se o Sílvio Costa, professor de Língua Portuguesa, na nona classe daquele tempo.
- Como é prof°, ainda se lembra da sua primeira aula? - Indagou o Kamba Jõao.
- Eu não. Só me lembro que fui bem acolhido como professor e hoje como vosso amigo. Isso sim. Fizemos família! - Respondeu o irmão de Don Kikas (músico) e ex-seminarista.
Kamba João, o historiador do grupo, fez gala à sua memória e descreveu o primeiro exercício dado pelo professor Sílvio na sua primeira aula, em Janeiro de 1994.
...
Profº Sílvio


Todos recuaram, 25, 26, 27 e 28 anos para os "mais antigos combatentes". Mas a procissão ainda não chegara ao adro. O assunto do dia, já comentado durante semanas, era a declaração no Armandinho à Lalê.
- Sabes, Lalê, quando não te vejo, o meu coração troveja à mesma velocidade que meus olhos chovem lágrimas fecundas. - Atirou ele, seguido por aplausos. Era tudo na galhofa.
E a Lalê, que fez olhos de boneca perdida, fingiu que se entregava desalmada ao seu cumprido e corpo de pouca força, quando, na verdade, era ao "segurança da madrinha" que empreendera atenção nos tempos de "amor platônico".
- Posso declarar?
- Pode! - Responderam todos.
- Posso escolher? - Voltou a gritar a Lalê (eram tantas vozes e tantas conversas periféricas que só os gritos permitiam se impor).
- Escolhe. - Voltaram a vozeirar os que estavam atentos ao assunto.
Olho no Armandinho e mente no KR, Lalê anunciou a segunda opção.
Ouviram-se palmas e gritos.
O último evento, último mesmo, foi a reedição do trabalho final, também despedida de jovens e adolescentes, hoje formados e prendados, recitando, sob a batuta de Maninho e Kimbito, o poema Renúncia Impossível de Agostinho Neto.
Caíram lágrimas de emoção, bateram-se rajadas de palmas e, em uníssono, estalaram o último "tchim-tchim".
Como os Mussunda, já os galos estavam roucos de tanto cantar!

quinta-feira, dezembro 19, 2019

A MIRA DO KAWISU

Sobrinho Victor, apenas quarenta e três anos no corpo alto e esguio. Na boca muitas estigas e anedotas de fazer todos rir. Disseram que até na igreja e no trabalho era assim. Homem que recebesse uma tampa de uma dengosa menina a abanar o xarope acabava esquecendo a desfeita. Mulher sengada se esquecia de ter voltado à casa da mãe e a viver no "quarto do quintal" cantado por uma artista de Luanda. Victor bazou. Deixou-nos assim, sem poder mais fazer rir até lacrimejar com as fortes e picantes cenas que só ele e Zunga Laka, o Poupa-a-Língua, sabiam apimentar.
Ainda continuamos a chorá-lo, ja sem lagrimas que ele ajudou a verter com as estigas e piadas do seu passado vivo.
- Ó meu sobrinho, Zunga Laka, ainda bem que te encontrei. Sabes que lá no Kuteka tu és herdeiro do trono real, nê? Prepara-te. Nesses tempos de enfrentar o comissário e dizer-lhe, olho-no-olho, ó chefe, as coisas que você anda a pensar não se coadunam com as nossas necessidades, é pessoa como o sobrinho que tem de tomar o poder. Saimos todos da mesma beixiga, Kitinu, teu avô, e Gabriel, meu pai e substituto do teu avô. O Kuteka é teu e todos somos teu povo. - Atirou Zé Gabriel, o principe.
Homem sério nas palavras. Coitado, Zé Gabriel não bebe nem fuma.
- Mas ó sobrinho, kenhêsse que está sentado aí sem abrir a boca, cabelo preto tipo carvão, mas com idade de mwaryakime?
- É o tio Zé Kinhemdu, irmão mais velho da mãe do finado Victor, tio. - Respondeu-lhe Zunga Laka.
-Xê?! O Zé Bangão que engraxava os sapatos de cinco a cinco metros? Coitado, ficou velho e até a banga bazou! Quantos filhos conseguiu produzir? Olha, eu te dei muitos primos e primas. Vais lhes conhecer...
- Tio Zé Gabriel, o filho dele é aquele que está ali. O Kawisu é único, desde que ele saiu do mato. Nunca mais arranjou mulher ou alguma mukherbo tenha arranjado. Kawisu! Vem para te apresentar o tio Zé Gabriel, filho do avô Kañane de kuteka.
Lavado por muitas canecas e saquetas, o Kawisu estava em estado de quase overdose. Era um barril de pólvora caso uma fonte incadescente dele se abeirasse.
- Poupa Língua, te ouvi a falar do papá. Como é que vocês dão confiança a um tropa que deita fora a arma em pleno combate? - Atirou Kawisu, em jeito de provocação ao progenitor.
Ao que se diz, o incorformismo de ele ser filho único e ter de lutar sozinho em todas as frentes perante um pai que se ausentou da aldeia quando apenas tinha poucos dias de vida faz dele uma fábrica de lamentações.
- Kawisu repete. É o quê mesmo que o meu primo fez? - Indagou Zé Gabriel, de olhos postos no seu primo Zé António que se contorcia para ajeitar os atacadores dos sapatos já gastos e envelhecidos.
- Yá, tio. Papá uta wembilaxi (o papá desfez-se da arma).
- Mas qual arma ou rapaz? - Atirou Zé Gabriel curioso e brincalhão.
- Ó tio, você tem quantos filhos? Eu, pelo menos, já fiz catorze. Sete são meus, outros sete fiz na conta dele. Mas também só me ficaram quatro. O feitiço na banda é demais! E teu primo não me deixou eu sozinho? Assim fez o quê? Não é arma que deixou perder na guerra?
As conversas, sempre a mudar de temas e de rumos continuaram noite adentro. Ora recordando recortes de pesca no caudaloso Longa, ora sobre a caça por armadilhas, flexas e tiro. Foi nessa última modalidade em que Kawisu desvendou a sua pérola.
- Ó primo Poupa Língua, eu, na mira, ninguém torra farinha comigo. O macaco pode estar escondido numa árvore no Rocha Pinto, se largae a cauda e eu vir, tiro certeiro.
- Comué que você abate macaco da Frescangol ao Rocha? É com missil? - Perguntou Kalitozu.
Kawisu é assim. Em tudo quanto narra há uma dose de hipérbole. E continuou a elevar o tom de voz, os frascos e saquetas até cair e virar mero objecto de tropeço para outros alcoolizados. Cada um dos parentes ainda chora o Victor como pode. Aconteceu há dois dias.

Texto publicado pelo Jornal de Angola de 22.12.19

domingo, dezembro 15, 2019

MANGODINHO NO KALIFADO

O passo lento de quem demonstra cansaço e sonos adiados contrasta com as ideias que lhe correm como rajadas de tornados que derrubam árvores, barcos e agitam mares. O aeroporto do  kalifado ficava a meia hora.

 - Viagem longa e distante faz-se madrugando pelo caminho. Diz sempre que viaja. Por isso cumpriu.

Mangodinho, sacola às costas, mala grande à direita e a menos pesada à esquerda. Na cabeça, um mar de pensamentos.

- Aquela dama, toda totosa deve ser moçambicana! Disse ao amigo com quem caminhava.

- Aié? Então ataca. Quem sabe tenha o mesmo destino que nós e nos faça serventia? - Afiançou Niva, ao que Mangodinho atendeu.

- Boa dia senhora dona oriunda dos mares indico-africanos de Mosa Al Bike. - Atirou como pescador lazerento que joga despreocupado o anzol ao rio, esperando que alguma viv'alma, não interessando o nome, lhe morda a isca. Desconfiada ou não, da senhora, Mangodinho apenas obteve silêncio.

Feito o check in, Mangodinho, ainda com os olhos na kindoza que não se desfizera do seu horizonte visual, voltou a magicar outras ideias, recitando uma música dos anos 80 do seu século:
-Ai se te pego Maria!..

- Oh Mangodinho, veja bem. A "tua" moçambicana deve ser francófona. Quem sabe, em francês ela te responda? - Incitou novamente Niva.

E foi a passar por ela, "negra, recortada como cadeias montanhosas que se espraiam à beira-mar", aos olhos torpes do galanteador-mor, que se ouviu a segunda recitação:
- Bonjour madame!

Mangodinho e seu anzol, desta vez ainda mais carregado de humor e vontade de pescar, voltaram a levantar silêncio.

Desanimado e como se a ausência de respostas lhe tivesse aumentado a fadiga, Mangodinho meteu os glúteos secos no assento, procurando assentar as ideias e partir para outra investida linguística.

Niva, seu colega de trabalho e de viagem, procurou descontraí-lo e incitá-lo à mais  uma derradeira tentativa para a prossecução do intento paquerístico.

- Avança, Mangodinho, avança. Você é poliglota, se Português e Francês não serviram, fala inglês!

Mangodinho, em toda a sua história, não é homem de fracos fracassos. Abeirou-se do local onde a senhora acomodava as últimas imbambas compradas com as moedas devolvidas pelo taxista. Tentou soltar umas palavras mas se conteve. Ele, normalmente, pensa em Português ou Kimbundu e depois traduz para a língua de reserva.

- You are... - Tentou mas engasgou-se, ficando-se por aí.
- Que foi, Mangodinho? Provocou Niva, meio a gozar.
- Tu sabes, Niva. Tu sabes. Por que insistes?
- Sei o quê, Mangodinho?!
- O Meu inglês. Já alguém  me disse que ele afugenta convidados!


Publicado pelo Jornal de Angola de 27 Setembro 2019 

domingo, dezembro 08, 2019

NGANZA SEM FIM

- Porra, pá! Boas-vindas desses gajos é assim, bwe de cheiro de tabaco no 4 de Fevereiro deles? Não imagino se fossem malanjinos, pá!
- O quê? "Malanjinos" já não fumam capim. É só sementes e bwe de balázios. Aquilo parece fogo de artifício...
A conversa, assim mesmo iniciada, rolava entre dois colegas e amigos que adentraram Viena....
A cidade, limpa e linda, tem esse senão de seus moradores. Uso ostensivo do tabaco.
E procuramos saber por que sendo eles acérrimos defensores da saúde e da vida, com inscrições das mais inibidoras sobre os maços e volumes de cigarros, se esquecem que "smoking is very dangeroux".
- Aqui os invernos sao muito frios e o cigarro aceso dá uma sensação térmica apreciável e irresistível. Pode haver outros motivos mais atropologicos e ou historicos mas esse é o que me está mais à mão. - Explicou um vienense.
- Mas estamos no verão... - Rotorqui.
- Sim verão quente. Tens razão. - Prosseguiu. - Mas temos de combinar dois factores que fazem com que o cigarro aceso esteja a andar em paralelo, hoje, com o telemóvel. Hábito e vício. O fumo, o cheiro e o ter cigarro aceso na boca ou na ponta dos dedos tornaram-se inseparáveis para alguns. É isso que faz a saída/entrada do aeroporto vienense um "incinerador de tabaco".
Phande e Man Gaspa olharam-se nos olhos e rápido viajaram de volta a Malanji.
- Porra, já imagisnaste isso em Malanji, Man Gaspa?
- Xtou a pensar. Seria nganza de todos os dias, sem fim!

domingo, dezembro 01, 2019

A FOTO CODIFICADA

Quem viveu ou vive numa comunidade rural, entre Lubolu e Kibala, já terá ouvido a associação da fotografia e da carta aos actos de "phanda", ou seja, de infidelidade conjugal.
No tempo em que vivi na comunidade rural, diga-se, não havia telefones. Isso é verdade.
Tambem, nas aldeias rurais, dada a coesão social e extensão familiar, os passos e os contactos presenciais são muito "vigiados", ou seja, a noção de segredo quase inexiste. Os caminhos são poucos e os mesmos. Os lugares (para cuidar da higiene, acarretar água, cultivo, pesca, etc.) são comuns, fazendo com que um cidadão contemporâneo e urbano se sinta "vigiado" pela comunidade. Tal, evita contactos mais ousados entre pessoas de sexo oposto que não sejam cônjuges ou que (pelo menos a mulher) não esteja à disposição de poder ser galanteada.
Apesar desse "big brother" involuntário e imposto pela própria organização social, casos de "jiphanda" ocorrem na versão consumada ou tentada por via de um "intermediário comunicativo". Surge aqui a eufemística "foto e a carta".
- A fulana lhe apanharam (foi encontrada) com foto do fulano e, por isso, o marido (ou ex-marido de quem a separação ainda não transitou em julgamento e dada a união como dissolvida) pediu reunião com o soba para cobrar "phanda".
- O sicrano mandou carta na (à) fulana que foi interceptada e o marido está a pedir "phanda" (multa).
"Foto e Carta" numa comunidade fechada... Sem que o indivíduo tenha ainda o discernimento necessário para as correctas leituras, se pode inferir tratarem-se de objectos/veículos de comunicação. Apenas isso. Assim ainda estarão alguns a pensar, pois assim também pensava eu na infância, sempre que me chegassem ao ouvido relatos dessa natureza.
Mas que utilidade teria uma foto alheia (de homem alheio), numa comunidade em que as pessoas se vêem todos os dias sempre que queiram e onde muitos nem bilhete de identidade têm?
Que utilidade e que mensagem teria uma "carta" remetida por um analfabeto a uma analfabeta, sendo eles moradores de uma aldeia onde o canal de comunicação mais eficaz é o oral?
Carta ou foto é forma metafórica ou eufemística de designar um acto que constringe a comunidade e que, se menos percebido pelos neófitos, melhor será para a preservação dos bons costumes.
A foto ou a carta não são mais do que o adultério na sua forma materializada e comprovada! Note-se que até a expressão menos eufemística para designar adultério no Kimbundu do Kwanza-Sul é "usuñina", literalmente seroar ou permanecer em serão (acordado, conversando até altas horas).
Em casos de adultério, acto repudiado pela comunidade, regra geral, é punido o homem envolvido com uma multa ao ofendido, retornando a mulher ao cônjuge. Tratando-se de uma relação em que a mulher não tenha ainda devolvido (simbólica ou totalmente o alembamento à família do marido de quem se separou ou finado) a multa é paga ao marido ou sua família, tornando-se ela livre para amancebar-se com o autor da "delícia" da qual foi flagrada ou acusada, podendo ainda adquirir apenas a condição de "mulher livre/legalmente separada" e puder partir para outra gida conjugal.
As multas variam de aldeia em aldeia e de família em família, podendo envolver pecúnia, animais vivos, alimentos, bebidas alcoólicas e, algumas vezes, algumas palmatória ao ofensor. O ofendido ou sua família (se distante ou finado), o soba e a comunidade beneficiam-se, em porções distintas, dos bens pagos pelo "beneficiário da flagrante delícia".

Publicado no Jornal de Angola de 03.11.2019