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segunda-feira, abril 29, 2019

PESSOA MONA A DYALA Ô A MUHATU?

Conta-se, geralmente entre os mais velhos, iminentes bibliotecas vivas, que: Certa vez, ao tempo em que as autoridades tradicionais eram obrigadas a recrutar, entre os seus, pessoal activo (jovens e adolescentes de ambos sexos) para os levar ao posto colonial (administração), de onde os fazendeiros e serviços públicos iriam escolher "mão-de-obra" semi-escrava (pesudo-contratos) para as suas empreitadas, um soba, cumprindo a orientação que recebera do Posto levou os seus (filhos e sobrinhos incluídos) ao administrador comunal para evitar represálias. Chegado ao local, o administrador, um semi-analfabeto, barbudo e barrigundo, vira-se ao régulo e pergunta:
- Ove lá, ó preto! Quantas pessoas trouxeste?
Atónito, velho Kikundu, olhos apenas na palmatória com se se esborrachava as mãos dos sobas faltosos, nem mais atenção prestou á pergunta. Pensando ele que "Pessoa" fosse nome de alguém, e que se lhe tivessem perguntado onde estava o Pessoa, meteu-se aos prantos, temendo pela reprimenda.
- Pessoa nãe. Mona a dyala ô mona a muhatu? (Quem é Pessoa? É homem ou mulher?) - Indagou entre os seus, sem que resposta alguma lhe fosse também dada .
Bangão e maldoso, lá veio, de novo, o chefe de Posto.
- Ove lá ó preto! Não me consegues dizer quantos patrícios trouxeste sem que o verdugo do capataz te suba às costas?
E não se fez demorar o "grito" da palmatória para o choro inocente daquele homo angolensis.
Velho Kikundu foi devolvido à sua aldeia com as mãos inflamadas, enquanto os desafortunados aldeões levados à renda dos que já lá sofriam ano e meio seriam recolhidos para uma "tonga" onde o chicote assobiava de hora em hora em costas nuas, onde a sede se escondia medrosa no suor do labor e onde o peixe e fuba podres eram luxo na hora da fome.
Noutro dia, já na tonga, a empreitada era escavar uma montanha para nela fazer passar o tractor. Homens "destratados" foram mobilizados. A fila chegava a meio quilômetro. Maior mobilização, para uma só tarefa não havia, registo. Sete dias era o tempo expectado pelo patrão-aldrabão. Fuba: um saco. Feijão, meio saco. Peixe seco do Tômbwa: Meia caixa.
Capataz recebeu sem reclamar. No terreno, dia e meio, racção minguou. Quem vai pedir reforço?
- Vai o capataz. - Disseram todos.
- Nem que me matem. - Retorquiu ele receoso da brutamontisse daquele colono branco.
Um jovem, dezanove anos na imaginação do narrador. Saiu do fundo e colocou-se a diante.
- Ki kapataji ketele, eme ngyako (se o capataz não quer eu vou falar com o branco)!
- Eye, wiñana iki (você, um simples macaco no entendimento do branco?)
- Ngyako.- Insistiu disposto.
Uns já afiavam catanas e flechas para suprir a carência com recolecção. Vida humana emprestada a meros viventes, abaixo de javali.
Katako, de sua graça, lá se meteu a caminho da residência senhoril.
- Ses(s)a, phatalá! Nzangi yeli eji njila ijikuka mas subha é pocu!
(Dê-me licença patrão. A malta mandou transmitir que o caminho será aberto mais a fuba é pouca).
O patrão, nem uma nem duas. ficou-se pelo "diga-lá/repita-lá".
Katako, letra a letra, a mesma mensagem com a mesma entoação e vigor.
- Ó criado?! - Chamou Costa Curta ao doméstico embrenhado em tarefas domiciliares para interpretar e traduzir no seu "Pretuguês".
- Faló assi: caminho estó abrir, mas fuba co pexi nú chegó.
Hora depois, voltava Katako acompanhado de um serviçal, carregando reforço alimentar. Foi, ali mesmo e sem mais anuência do patrão, elevado à categoria de capataz. O medrica teve de se entregar à fúria dos jacarés no rio Longa.


Publicado pelo jornal Nova Gazeta a 17.01.19

segunda-feira, abril 22, 2019

O MILHO E O 'MILHONÁRIO'

 
Corria o ano de 2013. Uma agência internacional anunciava que "Angola era o sexto país com mais milionários em África", somando quase cinco mil indivíduos que juntavam, cada um deles, o valor líquido e imóvel (excepto a residência oficial) de mais de um milhão de dólares americanos.
Mangodinho, quando ouviu falar sobre o assunto, "se" bateu no peito.
- Não pode! Disseram que o meu nome não "encosta". Eu também devo estar lá nessa lista de "milhonários"! - Disse vociferando. 
- Como assim, Mangodinho, você que só dorme e sonha porque Deus dá sonho de favor? - Perguntou Sembe, Sebastião nome dele da escola.
- Eu sou "milhonário" e ponto final, não me estraguem o dia. Aqui, nessa Aldeia, milheralmente falando, quem torra farinha comigo? - Questionou Mangodinho, de mãos e braços abertos, como que a mostrar o "mundo todo" de que ele se sentia dono e senhor. - Quenhê que torra farinha comigo, me diz só. Quenhê?!
Sembe e outros rapazes, todos na "mangação" do Kota Mangodinho.
- Esse Mangodinho deve estar a ficar xonê. Só pode ser. Você, casa de verdade não tem, comida é milho desde manhã até à noite. Jihuwa (mandíbulas) tipo filho de boi que perdeu a mãe e não está a mamar. Assim, tôs milhões é de quê, Mangodinho, nos mostra ainda com ele.
-  Então vocês mesmo não disseram? Eu produzo o quê? Eu como o quê? O outro milionário não disse "ele caga milhões"? E eu que semeio, cuido, colho, vendo e me alimento preferencialmente de milho sou quê, sôs burros?! Sou "milhonário", fiquem já a saber e avisem os gajos que vão actualizar a lista, no ano que vem, para não se esquecerem de pôr o meu nome na lista!
Eu sou "milhonário. Tenho milho que basta para dar e vender!

Publicado no Jornal de Angola de 30.01.19

segunda-feira, abril 15, 2019

É SOCIALISMO, CAMARADA!

Algures em Duque de Bragança ou Kalandula, para os nativos que nunca se aportuguesaram, conta-se que num pequeno rio com pequena represa natural, antecedida por uma transposição artificial, crianças, jovens e adultos faziam da água mansa daquele trecho elemento imprescindível para correr com as imundícies do corpo e para relaxe.
Todos, sem excepção, "banhavam" prazerosamente. Os mais idosos e cheios de posses e pudor faziam-no mais a baixo, junto à barreira natural que elevava o volume de água reprimida. Os jovens, com "força de ngufu", ocupavam o centro da "lagoa", servindo de intermediários entre os makota, à jusante, e os tundenge à montante. Esses últimos, a partir do ponteco, jogavam-se rio adentro, expelindo a energia carregada e exercitando todos os músculos, como só a natação permite. Se frquejassem na tentativa, os jovens pelo meio do trajecto, acudiam e reprimiam veementemente o atrevimento. Mas quem não aprende tentando? E se o fracasso acontecesse entre o meio e a meta, lá estavam os papás com o seu socorro e lições de vida.

Entre os petizes, aqueles que iam desprovidos de produtos de higiene e limpeza, quando deles precisassem, tinham a oportunidade de executar pequenos serviços e ganhar um esfregar apressado de sabão ou sabonete pelo cabelo que, depois, espalhavam para o corpo todo. Outros espargiam porções nada abonatórias de sabão em líquido pelo corpo que, depois, distribuíam as espumas pelo "mukutu". Mas havia aqueles que se deslocavam ao rio apenas para umas fimbas. Eram já tidos como grandes nadadores, prontos a integrar, na juventude, o inimaginavel corpo de bombeiros-salvadores que em Duque-Kalandula não havia.
Certo dia, Dimas, menino de lápis e caderno sempre, afamado na vila de "explicador de outros meninos e meninas de pés limpos e tranças permanentemente reparadas", acossado pelo abrasador sol de meio-dia, em período de férias, decidiu buscar por um mergulho. Àquela hora, poucos manos e tios se podiam encontrar no rio dos mergulhos. Apenas um dikota transeunte. Bem podia fazer-lhe um serviço mínimo, se solicitasse, mas...
Dimas subiu ao ponteco. Olhou à direita e à esquerda. À montante, onde poucas raparigas acarretam água, e à jusante, onde apenas um dikota soltava as alparcatas para buscar o bálsamo escondido na frescura da água. Jogou-se rio adentro. Nadou e, num abrir e fechar de olhos, fez-se caralmente ao senhor que saudou.
- Boa tarde camarada tio. Não precisa de ajuda para nada?
- Boa tarde camarada pioneiro. De momento. Nada a peticionar. - Respondeu-lhe o senhor.
O Viandante desatou as alparcatas, os calções, a camisa e soltou a ânsia de mergulhar. Fê-lo sem muitos movimentos. Apenas imergia e emergia no mesmo lugar, passando pelas partes íntimas e depois pela cabeça um pedaço de sabão, cuja espuma, à distância, fazia dele um homem branco.
Dimas deu outra fimba. Como sempre, em um minuto sem inspirar, atingia a barreira habitualmente frequentada pelos mais velhos.
- O camarada tio pode dizer de que aldeia é?
-De Carreira de Tiro, Malanje-capital. Tem lá parente?
- Não camarada. Era apenas para saber. Já agora, o camarada também lê marxismo-leninismo?
-Não, meu pioneiro. Um dia vou ler mas acabei de frequentar o curso de alfabetização que já me permite ler um pequeno bilhete.
Dimas pretendia, na verdade, uma aproximação que o permitisse esbranquiçar também o seu cabelo e sentir a dor do sabão em seus olhos. Mas faltou coragem para pedir e meteu-se água a dentro.
Quando o senhor se preparava para abandonar a água, o menino, sem fazer-se perceber, nadou até ao sabão e, rapidamente, esfregou-o na cabeça e no peito.
Um susto atacou o indivíduo que precisou de segundos para se recompor do susto e agir.
Com algum esforço, alcançou o bracito de Dimas que se preparava para o nado de regresso à parte mais funda daquela represa.
-Quê isso pioneiro? Já não se pede nem nada? É esso "enducação"?
- É socialismo, camarada tio. É distribuição dos meios pela comunidade. Assim, a minha carência também é do camarada tio e suas posses também são minhas, camarada. É isso socialismo!(?)

segunda-feira, abril 08, 2019

VIAJANDO COM O FILHO À DAMARALÂNDIA

Mangodinho, soba de Kuteka, foi à Damaralândia participar de uma reunião com os homólogos de lá. Ao contrário das primeiras vezes em que se fazia acompanhar de um dicionário, bloco de notas e um lápis enfiado no cabelo, para as anotações e consulta de palavras anglofonas desconhecidas, desta vez, fez-se acompanhar do filho que dizia saber falar inglês.
Logo à chegada, o longo papo que tiveram foi sobre civismo. E começava o filho assim:
- Ó papá! Por que é que aqui as ruas e os prédios são todos limpos se também é África e são negros como em Angola que é tudo cheio. De lixo é areia nas estradas?
- Filho, aqui são organizados. Todos consciencializados de que cada um e cada família deve limpar e pintar a sua casa, não jogar o lixo na rua nem destruir os bens públicos.
- O papá não disse que eles (alguns) também andaram em Angola como refugiados? Como é que eles não nos ensinaram a limpar ou como é que não aprenderam a sujar?
- Primeiro, eles viviam em acampamentos de refugiados organizados de acordo com os seus hábitos e costumes. Só iam às cidades para comprar ou vender o que tivessem a mais. Segundo, a questão não pode ser "como é que não aprenderam a sujar". Nos é que precisamos de nos organizar. Devemos fzer lá aquilo que aqui não se faz, ou seja, não jogar lixo do prédio para a rua. Não desperdiçar água, não sujar as paredes, não andar a toa pelas ruas, não atravessar fora das passadeiras, não vender em locais não autorizados, não partir os bens públicos como postes de iluminação, assentos nos jardins, papeleiras, etc.
- Mas o papá diz, sempre que estamos aqui, para poupar água...
- Sim. Aqui chove pouco e não têm rios como nós. Eles fazem permanentemente racionamento de água. É por isso que não se pode gastar muita para que a pouca existente chegue para todos.
- Mas, papá, como é que naquela rua em que passámos ontem havia uma conduta rota e água a correr pela rua?
- Rupturas acontecem em todo o lado. O importante é que sejam reparadas para que não se estraguem os passeis nem as estradas. Voltaremos a passar por lá amanhã para ver.
- A EPAL daqui também demora reparar?
- Não sei, filho. Amanhã vamos confirmar.
- Se demorarem arranjar o papá vai fazer participação?
- Vou fazer nota, filho. Ainda não sei onde fica a empresa deles que cuida da água ou das reparações das condutas danificadas.
- Papá, a nossa energia foi (cortada) mas não vi os homens da ENDE deles...
- Aqui a energia é pré-paga, como se põe saldo no telefone. Quando a quantidade comprada acaba, ninguém precisa de desligar os cabos. Um dia, isso também vai acontecer connosco e precisamos já de nos habituarmos a poupar energia.
- E como é que se poupa energia se ela não se vê, não se pega, nem sai de um cano como a água?
- É fácil. Muito fácil poupar energia. Basta não ligar equipamentos electrónicos que não estejam em uso. Por exemplo, quando não estás no teu quarto, não precisas de ter o aparelho de AC ligado. Se não estás a assistir à televisão, não precisas de ter o monitor ligado. Arca e geleira vazias não precisam estar ligadas. As lâmpadas devem estar desligadas durante o dia. É deste jeito que se poupa energia.
- Vou passar também a proceder assim, papá.
- Pois é. Assim deve ser. E cada um que tenha aprendido deve ensinar os outros e insistir com eles para mudarem de mentalidade. Só assim estaremos ao nível desses nossos vizinhos.

Publicado pelo jornal Nova Gazeta a 18.04.19

segunda-feira, abril 01, 2019

PÃO COM CONDUTO

O Sol daquele dia era diferente. Único entre os já muitos sóis e noites vividos. Parecia que a bola vermelha e quente cairia sobre a terra para queimar tudo e acabar com todos. Mesmo assim, chovia a pingos preguiçosos que secavam em tempo apressado. A sede então, ah! Essa era tanta. Parecia que os caudais dos rios secariam. As pessoas, em todos os atalhos que levam às lavras, nas estradas que ligam terras distantes e cidades em que impera a banga, o bom vestir e o bem falar, estavam todas ora com a garrafa de água na boca, ora com a boca no caudal do rio, sorvendo a mistura de hidrogénio e oxigénio (H2O).
 
Mas não era só sol, chuva miúda, sede e cansaço. Era também fome. Será que andar debaixo do sol também aumenta a fome?
As viagens, de véspera e do momento, ao volante, tinham sido longas e extenuantes, embora tivessem sido mais sobre estradas do que em picadas; mais asfalto do que buracos; mais luz do que noite. Só que os quilómetros não eram poucos e as paragens, para pegar isso e deixar aquilo ou atender o estômago resmungão tinham roubado bastante tempo.
Depois de CADÁ (é mesmo assim que se pronuncia), cidade que assiste impávida todo seu recheio de tempos áureos a cair (1,2,3… até nada mais haver) chegámos, de volta à vila de Kibala, Kwanza-Sul, por onde havíamos passado na noite anterior.
 
O ingrato estômago teve de nos levar a uma roulote, estrategicamente implantada na bifurcação entre dois caminhos que juntam aldeias periféricas do vilarejo. Próximo do que foi a moageira CAIMA. É também lugar de encontros e reencontros da moçada local e de galanteio.
 Um jovem estava encostado à roulote. Vi-o e não me contaram. Ao seu encontro ia uma mana vestindo blusa verde floreada, panos à cintura e um lencito à cabeça.  Diziam, a contar pela denunciante pronúncia, ser duma terra do centro da noss'Angola.
O mano, calças jeans muito largas na parte superior, a fazer desaparecer o mataku e demais condimentos, e uns chinelos “avaziana”, isso mesmo “avaziana”, era kibalense. Na cara dele lia-se muita esperteza, mas na boca e na cabeça pouca inteligência.
Os dois pararam, antes da saudação, ao "se darem encontro" no atalho que liga as duas aldeias periféricas da "cidade" (como chamam o vilarejo), próximo da roullote.
- Caró, saudade que te estou a ouvir é mbastante, tipo água no rio Kakungulu. Desde anteontem sem te ver. Será que não gostaste do que “se” falámos?
- Yá, João. Também senti lá vontade. Falei mesmo vou “le” procurar para se descontar lá um kabukadu. Ó João, também trouxe fome, tó te falar! Me paga lá ainda um pão com conduto lá dentro, tipo aquele que provámos na casa do teu amigo Nito…
A conversa prosseguiu com pícaros de “sarcasmo” ao meu ouvido. Era só rir a toda a largura da boca. Juro mesmo, funji ou pirão com conduto já ouvi e já comi. Pão com conduto (hambúrguer) foi primeiríssima vez.

Publicado pelo jornal Nova gazeta a 06.12.18