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sexta-feira, março 08, 2019

AQUILO QUE NÃO ERA QUILO


A presente narrativa tem enquadramento nos anos oitenta do século XX, em Luanda. O bairro é Rangel, ao Kaputu, rua de Ambaka,congregando catetenses, há muito instalados; Kwanza-sulinos, novos e antigos no bairro; malanjinos e kwanza-nortenses contados a dedos. Nortenses do Uije e Zaire não havia. Se houve, eram muito insignificantes.

A actividade principal das senhoras era ser "dona de casa", algumas com registo no Bilhete de Identidade como profissão, e revender géneros alimentícios adquiridos em primeira instância nas "lojas do povo" ou na kandonga dos desviadores de "géneros do povo".
 
E nós, crianças desse tempo, vivíamos a nossa época do melhor jeito que ela permitia: corridas de jante e de pneus, jogar e caçar castanhas de caju, caça de "gaffas" junto à linha férrea, recolha de cereais perdidos pelo comboio do Mbungu-Kikolu para alimentar os pombos e apanha de metades terminais de cana vinda de Malanje e outras paragens desconhecidas. Não preciso de citar, dentre os deveres, a escola obrigatória, a explicação para alguns e enfrentar as filas dos "supermercados", depósitos de pão, talhos, peixarias, lojas do gás, entre outros serviços delegados pelas mães, que se ocupavam da venda, e pelos papás que trabalhavam na baixa e noutras paragens para garantir o cartão de abastecimento mensal (era amarelinho, com os doze meses registados e uma lista de bens perecíveis, não perecíveis e os electrodomésticos que nunca vinham).
 
É na venda e revenda, entre lojas e bancadas, que surgia aquilo que não era quilo.

A balança calibrada e fiscalizada tinha ficado encerrada na cantina do colono expulso. O que surgia "era tudo do povo". O povo mandava e desmanchava. O povo era quem mais ordenava e as coisas (algumas do tempo da senhora expulsa) estavam sendo ignoradas, pois algures se dizia que "o homem novo traria coisas novas". Daí que as lojas tinham balanças para o povo ver e nos mercados e bancadas fazia-se a vida com latas e kandimbas para o povo medir.
 
É assim: nas lojas, as balanças faziam o "faz de contas". Os ensacáveis como arroz, açúcar, sal, feijão e outros cereais, quando os houvesse, era encontrados já nas montras com a indicação de xis quilos. Muitas vezes não correspondiam, mas eram os quilos declarados e levados pelo comprador. Era a loja do povo e ponto final.
Um pouco mais realistas eram as mamãs das kitandas e das bancadas à porta. A lata de óleo vegetal, alta e mais estreita; a lata de margarina, mais curta e mais larga; a quadriculada de azeitonas ou a circular de chouriços tanto serviam para "aviar" o cliente de fuba (milho, bombô ou trigo), sal, açúcar, feijão, jinguba, feijão, arroz, etc. Todas essas canecas/latas tinham apenas algo de comum. A designação. As quantidades que podiam carregar eram variáveis, embora comummente se tratasse aquela quantidade variável por "quilo". Assim comprávamos o "quilo" de arroz ou de sal medido em lata de 900 gramas de onde se tinha consumido a margarina.
Mais exacta, pelo menos em termos de volume, pois o peso varia sempre em função da densidade, era a kandimba. Essa sim. A kandimba era a lata de leite moça. Quando fosse para se usar a unidade imediatamente inferior àquilo que não era quilo, usava-se a kandimba ou ainda a latinha de massa-tomate. A kandimba, unidade de peso para os que menos podiam comprar ou menos precisassem naquele dia, era exacta. Medida única em todos os mercados e bancadas. Menos na loja. Desapareceu (in)felizmente.

 - Ó tia, quanto é a kandimba de arroz, avia bem, faxavor, mama disse é sua comadre!

Publicado no Jornal de Angola de 7 de Abril 2019

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