Translate (tradução)

sexta-feira, março 29, 2019

LÁGRIMAS DE VIÚVA

 
Na minha terra nunca foram de crocodilo. Explico as de crocodilo. Mesmo que uma dor ou saudade lhe arranque lágrimas, jamais serão vistas, pois ele vive na água e o fluido lacrimal é, imediatamente, arrastado pela corrente. Por isso, se costuma dizer, aos inimigos que fingem chorar ou aqueles que simulam um comportamento inespontâneo, que "soltam lágrimas de ngandu".
No Kwanza-ao-Sul não! Uma viúva que é, de facto, viúva, que tenha coabitado e produzido frutos amorosos com o seu de cujos, chora e verte lágrimas espontâneas dias sem fim, até que o rasto delas seja de todos visível como um leito de um rio intermitente, ora seco mas com riscos a marcar a passagem de água, ora inundado.
A senhora que tenha perdido o cônjuge, chora, evocando aos que partiram antes que o recebam na graça. Enumera os seus entes queridos partidos e aos quais distribui preces e recados. Mas é o seu amor finado a causa de todos os prantos. E chora em cada alvorada, cada aurora e quando a saudade bater.
- Pai do fulano (assim se dirige uma mulher ao marido), cumprimenta o meu pai. Quando encontrares o mano sicrano dá-lhe também meus cumprimentos e não esquece avisar o tio Beltrano que a kasule dele já tem "chucha" e está quase a ser pedida em casamento. - Recomenda no seu choro cantado e acompanhado, sempre, de fartas lágrimas.
Quem se deleita com esse choro permanente, manhã e entardecer, é a criançada inocente, que marca as horas do "canto da viúva" , e se pergunta:
- Porquê desse esforço e agenda de choro da "kabulungu"?
Mas ela, acompanhada de uma idosa ou em solilóquio, até a última visita abandonar a residência, já dias avançados ao komba ditôkwa (varrer as cinzas das fogueiras diurnas e nocturnas, para dar por encerrado o óbito) chora com fartura. Lava a boca, mas não o rosto. Lava o corpo, mas não a cabeça. E, até ao último dia, em que a viúva é "solta" para com as de sua intimidade ir ao rio, ir à lavra, à faina e a outras tarefas, ela mantém aquele leito seco no seu rosto deixado pelas lágrimas.
- Mana fulana chorou bem o seu marido.
- Mana fulana nem vimos as lágrimas (em favor) do marido.
- Mana beltrana eram só gritos de kapuka. Lágrima que é lágrima nada!
São os comentários que se ouvem depois do óbito terminar.
Mas, afinal, sentimento está nas lágrimas? Quem não tem "kinduli" (rasto de lágrimas sobre o rosto) não chorou? Não sente saudade e ausência? Não é viúva digna desse nome?
Minha mãe chorou meu pai até se "cavar um rio" sobre seu rosto. É parte de nossos hábitos e costumes, já em desuso. Até hoje, ela ainda se recorda de seu António como se tivesse partido há poucas semanas, quando já lá se vão perto de quarenta anos.
Só não sei e nunca consigo entender o porquê daquelas lágrimas!
 
Publicado pelo Jornal Nova Gazeta de 24.01.19

sexta-feira, março 22, 2019

ANDANDO ESTRADA A BAIXO

"Walkind down the street/Distants memories are buried on the past/for ever"!.. é trecho da letra de Brian Adams, aqui trazida para retratar o que tem sido minha ocupação nos últimos dias.
Tal como a minha cidade do Zango V, a cidade que me acolhe temporariamente tem condições para caminhar. Passeios com alguma ordem e uniformização, trânsito bem regulado e sol de enegrecer. Espreitando o boletim do Ministério da Administração Interna e Migração li que é visão do o...rganismo "Registar a população e gerir a migração de acordo aos melhores rácios mundiais", sendo missão "gerir o registo da população nacional e facilitar a migração legal".
 
Já que entrei de forma legal, meti-me a fazer contas, enquanto caminhava e reflectia sobre o que me aparecia à leitura. Vejamos:
Angola com seus 1246700 km2 possui uma população de ±30 milhões de habitantes, uma densidade média de 24,06 hab/km2. Parece pouco n'ê?!
O antigo Sudoeste Africano com seus 825418 km2 e uma população de ±2500 assume uma densidade média de 2,2 hab/km2. Nestes termos, a Namíbia tem menos de 10% da população angolana, embora o seu território seja maior do que a metade de Angola. É a inexistência de pressão demográfica sobre a sua capital (e território todo) que justifica a paz social aqui verificada e que a torna um destino temporário ou mesmo definitivo para muitos angolanos cansados de "lenga-lenga" de Luanda.


Imagine que, para uma densidade populacional paritária com Angola, o país ao sul teria uma população de 20 milhões de seres, ao contrário dos seus 2.5milhoes. Pouca gente nê?!
Sim. Andando sem pressa e sem destino certo. Apenais marcar passos até não mais cidade houver pela frente, atingindo um dos várias montes que circundam a cidade, completei o percurso norte-sul do plateau. Cinco mil passos a norte e outros cinco mil a sul, numa distância aproximada de 9km. Falta percorrer a horizontal, nascente-"morrente". Mande-me Ndemufayo é a Avenida que corta longitudinalmente Whindoek.

Publicado no Jornal de Angola de 10.03.19

segunda-feira, março 18, 2019

O CANTO E A POESIA ENTRE OS METODISTAS

"O metodismo nasceu a cantar", atesta Emílio de Carvalho, no seu prefácio ao hinário Povo Catai!, da Igreja Metodista Unida em Angola, 1ª edição, 1982. Concordo com o bispo e acrescento que os metodistas crescem a recitar. Tal exercício de declamar textos bíblicos e artísticos nas "classes e igrejas" acontece desde pequenos e influencia a trajectória dos indivíduos no que concerne ao "encarar a floresta em vez da árvore", na hora da exposição oral.
De uma turma de LP que ministro em um Centro de Formação, os menos tímidos são aqueles que exercita(ra)m a recitação ou o canto em igrejas, destacando-se os da IMUA.
Lembro-me do dia e mês em que cheguei pela primeira vez a Luanda: 18 de Maio de 1984, fugido de refregas entre militares antagonistas. Meus tios, anfitriões, eram crentes Metodistas, na altura única em Angola, frequentando, porém, cargos (congregações) diferentes. Ele na Calemba e ela na Moisés, então recém-emancipada da primeira.
Fui, inicialmente, com o tio à Calemba, próximo do "cemitério novo" ou Sant'ana. Este cargo possuía próximo de casa, no Rangel, a classe João Baptista, no México. Era lá que conheci o velho João Kambundu, de feliz memória, sendo guia o velho Pedro, pai de Keth e Gia Mateus Pedro (meus contemporâneos). Encontrei ainda a família Catumbila, sendo meus coetâneos o Toy e o seu "puto" Jojó Catumbila. O Jeremias, a Fatinha e o Isaías eram já makwenze.
Tendo chegado a Luanda em Maio, a frequência da classe João Baptista não podia ser ainda vésperas de natal,  altura em que os meninos e meninas da metodista ensaiam nas classes o programa de Natal, com cânticos e poesia que nos levavam a "escorregar" pelo corredor ao púlpito. Era característica marcante, e sempre presente nos templos metodistas, o ensino do canto, da poesia e dos jogos orais, quer fosse ou não época de natal, páscoa, EBF ou outra data, como foram os ensaios na Central e Bethel, quando do centenário (1985). Os meninos eram chamados a "seguir a Jesus" como evoca o hino 90 do HPC da IMUA.
Esses ensinemos transformaram positivamente gerações, incluindo a minha. A escrita, a recitação e a música tornaram-se pontos fortes do "povo metodista", quer continue ou não frequentando os templos.
E, 35 anos depois, ainda "oiço" vozes de meninos como a Gia Pedro, Toy Catumbila (Calemba) ou Xico Kitembo e Lurdes (da Moisés aonde me transferi meses depois) cantando na Escola Bíblica de Férias ou nos cultos semanais da classe o "vinde meninos, vinde a Jesus..!"

Publicado pelo jornal Nova Gazeta a 21 de Março de 2019

sexta-feira, março 15, 2019

PERDENDO ARTISTAS E GANHANDO IGNORANTES

Em menos de um mês perdemos os escritores António Panguila e Frederico Ningui, exímios escultores da palavra, notabilizando-se entre finais da década de oitenta e início da década de noventa do século passado. Perdemo-los, num abri e fechar de olhos, sem que nos dessem tempo para um adeus! 

Maior do que a tristeza de já não ter os meus inspiradores (enquanto leitor e frequentador, nos anos 90, dos debates semanais na UEA) é saber que os jovens de hoje pouco ou nada sabem sobre aqueles que deviam ser os seus "modelos inspiradores".
Passei pela Kibala, terra de "Pangila", falei com muitos jovens, alguns a terminarem o ensino médio... Evoquei o nome de António Pangila, que já liderou a ANA Kibala (Associação dos naturais e amigos da Kibala).
- Pangila wamwinjya?
(Conheces Pangila?) 
- Xô! Pangila nyi?
(Não. Quem é Pangila?) 
- Pangila mesene yo sonika. Wahi semana yapiti. Kumwinji?
(Pangila é mestre da escrita. Morreu a semana passada. Nunca ouviste falar dele?) 
-Xô!
(Não!) 
Fiz a mesma pergunta sobre o Reverendo Gabriel Vinte e Cinco, também ele kibalense, com dedos na escrita e voz na pregação do evangelho de Cristo, pela via Metodista Unida. Expliquei que o "mwali-a-kime" foi superintendente distrital da Igreja no Kwanza-Sul. Falei-lhes sobre a famosa igreja "Boa Esperança" , que fica na aldeia de Kimone, a poucos quilómetros da sede municipal. Informei ainda que, não passa um mês, o mais velho lançou um livro "Kwanza-Sul: Conheça-te e faça-te conhecer".
- Sô pastore "Vindi e Cingu" wamwinjya?
(Conheces o Sr. pastor Vinte-e-Cinco?) 
- Xô!
(Não!) 
Não se conhecendo, em uma vila minúscula, dois vultos da literatura nacional, provincial e local, senti-me inibido em perguntar-lhes sobre escritores "mirins", como é o caso do autor dessa prosa. Limitei-me a oferecer os poucos livros que se achavam em sobra na viatura, esperando que alguém se lembre de os ler e falar aos outros no recreio escolar ou entre fimbas e repousos de um piquenique qualquer. 
Não refeito ainda do susto, porque tamanha ignorância assusta, continuo a perguntar-me:
- 0 que ensinam os professores desses jovens?
- 0 que aprendem esses rapazes e raparigas?
- Que conversas fazem parte de suas tertúlias sabatinas?
- Que noticiários ouvem/lêem/vêem esses (des)continuadores de nossas obras?
Não tenho resposta e calculo que você tenha também outras inquietude sobre o rumo que a sociedade está a tomar ou a nossa mania de exigir que os mais novos saibam algo sobre seu passado e presente, permitindo-os, desta feita, erguer um futuro em rocha-firme como aquela em que assentava o fortim da Kibala. 
 
Texto publicado no Jornal de Angola a 02.12.2018

sexta-feira, março 08, 2019

AQUILO QUE NÃO ERA QUILO


A presente narrativa tem enquadramento nos anos oitenta do século XX, em Luanda. O bairro é Rangel, ao Kaputu, rua de Ambaka,congregando catetenses, há muito instalados; Kwanza-sulinos, novos e antigos no bairro; malanjinos e kwanza-nortenses contados a dedos. Nortenses do Uije e Zaire não havia. Se houve, eram muito insignificantes.

A actividade principal das senhoras era ser "dona de casa", algumas com registo no Bilhete de Identidade como profissão, e revender géneros alimentícios adquiridos em primeira instância nas "lojas do povo" ou na kandonga dos desviadores de "géneros do povo".
 
E nós, crianças desse tempo, vivíamos a nossa época do melhor jeito que ela permitia: corridas de jante e de pneus, jogar e caçar castanhas de caju, caça de "gaffas" junto à linha férrea, recolha de cereais perdidos pelo comboio do Mbungu-Kikolu para alimentar os pombos e apanha de metades terminais de cana vinda de Malanje e outras paragens desconhecidas. Não preciso de citar, dentre os deveres, a escola obrigatória, a explicação para alguns e enfrentar as filas dos "supermercados", depósitos de pão, talhos, peixarias, lojas do gás, entre outros serviços delegados pelas mães, que se ocupavam da venda, e pelos papás que trabalhavam na baixa e noutras paragens para garantir o cartão de abastecimento mensal (era amarelinho, com os doze meses registados e uma lista de bens perecíveis, não perecíveis e os electrodomésticos que nunca vinham).
 
É na venda e revenda, entre lojas e bancadas, que surgia aquilo que não era quilo.

A balança calibrada e fiscalizada tinha ficado encerrada na cantina do colono expulso. O que surgia "era tudo do povo". O povo mandava e desmanchava. O povo era quem mais ordenava e as coisas (algumas do tempo da senhora expulsa) estavam sendo ignoradas, pois algures se dizia que "o homem novo traria coisas novas". Daí que as lojas tinham balanças para o povo ver e nos mercados e bancadas fazia-se a vida com latas e kandimbas para o povo medir.
 
É assim: nas lojas, as balanças faziam o "faz de contas". Os ensacáveis como arroz, açúcar, sal, feijão e outros cereais, quando os houvesse, era encontrados já nas montras com a indicação de xis quilos. Muitas vezes não correspondiam, mas eram os quilos declarados e levados pelo comprador. Era a loja do povo e ponto final.
Um pouco mais realistas eram as mamãs das kitandas e das bancadas à porta. A lata de óleo vegetal, alta e mais estreita; a lata de margarina, mais curta e mais larga; a quadriculada de azeitonas ou a circular de chouriços tanto serviam para "aviar" o cliente de fuba (milho, bombô ou trigo), sal, açúcar, feijão, jinguba, feijão, arroz, etc. Todas essas canecas/latas tinham apenas algo de comum. A designação. As quantidades que podiam carregar eram variáveis, embora comummente se tratasse aquela quantidade variável por "quilo". Assim comprávamos o "quilo" de arroz ou de sal medido em lata de 900 gramas de onde se tinha consumido a margarina.
Mais exacta, pelo menos em termos de volume, pois o peso varia sempre em função da densidade, era a kandimba. Essa sim. A kandimba era a lata de leite moça. Quando fosse para se usar a unidade imediatamente inferior àquilo que não era quilo, usava-se a kandimba ou ainda a latinha de massa-tomate. A kandimba, unidade de peso para os que menos podiam comprar ou menos precisassem naquele dia, era exacta. Medida única em todos os mercados e bancadas. Menos na loja. Desapareceu (in)felizmente.

 - Ó tia, quanto é a kandimba de arroz, avia bem, faxavor, mama disse é sua comadre!

Publicado no Jornal de Angola de 7 de Abril 2019

sexta-feira, março 01, 2019

BALABANDI

Em tempos fui a uma instituição pública tratar uma demanda de ordem jurídica. Olhando de soslaio, atento ao que me estava à volta, mas sem pretender que fosse descoberto, verifiquei que os processos, muitos já acastanhados e carcomidos, eram perfurados e amarrados com uma linha que seguia uma agulha também grossa.
Desde que abandonei o interior e o Roque Santeiro foi extinto que já não via nem a linha nem aquela agulha que na fazenda servia para atar os sacos de café... ou de macroeira. Veio-me à mente a palavra, "balabandi". O termo, pronunciado no meu Kimbundu materno, já leva mais de quarenta anos de distância. Era ouvido na infância e sempre acorrentado a estórias e crendices que apontavam para manufacturas ou engenhos movidos a braços e por forças ocultas repousando em duas caveiras de "mbalundu" decapitados por brancos impiedosos, para fazer as máquinas funcionar.
E tais máquinas, nas zonas de Ngulungu, Lwati, Kimbirima, etc. não processavam outra coisa que não fosse o balabandi que, mais tarde, cheguei a saber que não era mais senão o sisal. Havia no território do Lubolu, em tempos idos, "infindáveis" campos de sisal, cuja corda, levada ao beneficiamento, resultava em tapeçaria, sacaria para acomodar o café dos terreiros, cordas e linhas diversas para fins incontáveis, utensílios domésticos e outras benfeitorias.
O balabandi para fins industriais, no Lubolu, é hoje cultivado apenas na memória dos vovós que regaram os campos e as fabriquetas de fiação com o suor de sua juventude e poucos quarentões, crianças de então, que frequentaram o njangu onde as estórias desfilavam no meio da história contada de boca em boca. Fora disso, são apenas raríssimas plantas que resistem ao fogo de todos os anos e alguns rebentos que se colocam à beira das lavras para impedir a intrusão de javalis, pacas e outros impostores.
Se há uns vinte anos ainda se fiavam manual e artesanalmente algumas cordas para as pequenas armadilhas, hoje que a "caça pequena" e a recolecção deixaram de fazer parte do dia-a-dia do homem rural, para que mais serve o balabandi?
Sumiram as fábricas de fiação nas pequenas e grandes cidades. O café pouco reclama a ausência do saco confeccionado com fios de sisal. Os tapetes vêm da China. As cordas também. Os campos, sem quem receba a matéria-prima, deixaram de produzir sisal.
Os dólares que o balabandi poupava, quando não tínhamos petro-diamantes, são hoje exportados para coisas menores: linhas, esfregonas, cortinas, agulhas e botões para camisas. Que tal poupá-los para replantar balabandi (sisal) que pode ressuscitar a indústria de ficção e sacaria?
São apenas cogitações leigas!


Publicado pelo jornal Nova Gazeta de 8.11.2018