- Amigo, dá só cem para comprar pão, mumwila tem fome.
O apelo da jovem, alta, esbelta no seu habitat, seios divididos em duas porções, eventualmente, por uma corda ou um cinto que a t-shirt azul escondia, foi "ordem emocional". Olhei-a nos olhos. Eram brilhantes. Os dentes também brilhavam na boca e estavam aguçados, um procedimento cultural. Dizem que "permite cortar melhor a carne", uma estória ainda por pôr a limpo.
- Mana, não tenho dinheiro. Vou ao multicaixa ver se o patrão já pagou.
- Então, vou esperar. Faz favor, mumwila tem fome. Só cem para comprar pão.
Voltei a reparar com mais detalhes. Baixei os olhos. A mulher ela longa. Um metro e oitenta ou mais. Andava descalça e tinha as pernas todas adornadas de metal reluzente em forma heliocêntrica. Mais atento, vislumbrei outras duas companheiras sentadas no lancil, provavelmente cansadas ou aguardando igualmente por um promitente ajudador. Tinham todas garrafas de plástico carregadas de substâncias licorosas. Chamam-nas "óleo mupeke" que as kalwandas gostam para fortificar e fazer crescer a "kindumba".
Aturada a fila, conclui que o ATM não tinha valores. Mal ergui os olhos, estavam as senhoras na mira, distraídas ou falando sobre coisas suas. Mas aguardavam pelos cem kwanzas para comprar pão, pois a "mumwila tem fome".
Vieram-me instantaneamente as fomes que senti, quando era garoto ou jovem procurando pelo primeiro emprego, e sem que muitos se predispusessem em ajudar com uma "magoga" daquele tempo.
Aumentou a minha responsabilidade e pesou a promessa que não fiz.
- Vou-me embora, sem que ela dê conta, ou revisto o carro a ver se encontro uma moeda?
A segunda ideia ganhou forma. Abeirei-me delas e pedi que me acompanhasse à viatura.
- Amiga, multicaixa não tem dinheiro. Não sei se o carro tem moeda. Você me acompanha?
A mulher franziu ligeira e visivelmente o rosto, desconfiado que não conseguiria o intento, depois de um quarto de hora à espera. Mas seguiu-me quase a reclamar.
- Amiga está triste? -,Indaguei para a acalmar.
- Mumwila tem fome. Aquele falou "Xipela". Cem num tem. Amigo também falou "xipela", pão num tem. - Respondeu tímida e suplicante.
Via-se cansaço e fome no rosto dela, mas uma pujante força de viver, mesmo que a vender óleos cosméticos tradicionais ou a pedir pão quando a fome chegasse mais cedo do que as clientes. Senti ainda mais a aflição da senhora. Lembrei-me de umas moedas que a minha filha me havia devolvido. Falei alto e convicto.
- Vamos. Tenho moeda no carro. Só uma.
A jovem mumwila endireitou o rosto. Caminhou com mais vigor, enquanto as amigas se lhe seguiam pachorrentas. Por sorte, eram duas moedas, uma de cem e outra de cinquenta.
- Ndapandula enene. Mumwila vai comer.
Fiquei aliviado. Melhor pedir do que ladroar.
Texto publicado pelo jornal Nova Gazeta a 26/07/18
Sem comentários:
Enviar um comentário