Há dias em que o indivíduo não precisa abrir a boca, nem aprimorar a audição para ouvir "ouvir" coisas.
Acordou cedo, não tanto cedo quanto habituara a sua família, mas os galos ainda se desafiavam no canto.
Abriu a banca e o primeiro documento que lhe apareceu pela frente foi um antigo cartão de visita com mais de 15 anos. Passeou nele os olhos, quase soltou lágrimas de saudade, e recebeu a negação.
- Não és mais editor dessa rádio, faz tempo.
Desconfortado, abriu a segunda gaveta onde normalmente ficavam as esferográficas. A mão foi ter a um crachá.
Puxou-o lento. Evitou lê-lo mas a mensagem já estava descodificada.
- Chefe de...
- Chefe de quê? Eu? Beliscou-se. Quase a perder ânimo, pegou uma velha agenda e meteu-se a caminho da garagem. Qual seu espanto ao abri-la?
Um cartão de visita, de uma empresa falida, apregoava:
- Sócio...
-Não. Não pode ser. Hoje deve ser dia de azar!
Ligou o carro. Quase sem ânimo, ajeitou o cartão no casaco. Os olhos voltaram a anunciar o que menos pretendia ouvir. Era um papel que atestava a quem o carro fora emprestado.
- Director de...
- Director de quê? Não sou mais. O ministério inexiste!..
E agora?!
Meteu-se pensativo pela estrada. A primeira saudação que recebeu de alguém, numa superlotada paragem para táxis, foi "bom dia chefe, uma boleia, se faz favor!"
Imobilizou a viatura dez metros depois para despistar a multidão que julgava ser daqueles nganduleiros desavergonhados.
- Carro do Estado não é para kandonga. Pensou e acabou mesmo por dizer, ao ver viaturas top de gama, eventualmente pertencentes a órgãos da administração ou empresas públicas em serviço ocasional de táxi.
Negou aos outros interessados na viagem a preço e levou a colega.
- Bom dia chefe, mais uma vez. O director é hoje minha tábua de salvação. A chefe está má. Só tolera trinta minutos de atraso. Aquela senhora deve estar a entrar para a menopausa. Está muito ranhosa e eu que também sou outra prefiro cumprir o que ela quer. - Boatou a senhora.
- Bom dia dona Kuri. Grato pela saudação e pela preocupação em atender o que diz a legislação da função pública. Um dia será também chefe. Aliás, já foi chefe de repartição e deve saber como fica o líder com processos pendurados, o chefe imediato a buzinar e os liderados ausentes. Já esteve nessa pele, com certeza!
- É por isso mesmo que já não quero ser chefe de nada. O importante é a minha subida de categoria. Já estou na carreira de técnica superior. A diferença de salário com os chefes não é muita.
- Ainda bem que assim pensa. Influencie positivamente os seus colegas. Não desista nunca de praticar o bem. Basta pensar no que sofre quando vai procurar outros serviços. Isso é que temos de mudar.
- Obrigada meu director. Você é muito boa pessoa. No trabalho e fora dele. Muitos assim, desculpa ainda, Director, são poucos com juízo e capacidade de dar conselhos até às mais velhas. Espero que fique muito tempo connosco e suba na chefia.
-Muito obrigado dona Kuri. É uma pena que o ministério que me contratou foi extinto. Ganha-se pouco financeiramente, mas aprendo muito com as pessoas com quem trabalho e interaja todos os dias. Já não sou director de nada. Sou apenas um técnico comprometido com a coisa pública, com a mesma motivação como se fosse o meu primeiro dia de trabalho.
- Mas os outros que até são do quadro já não estão a trabalhar e esperam por segundas ordens em casa.
- Sim. Noto. Mas eu vim com uma missão. Trabalhar. Não posso ser devolvido aonde fui requisitado com atestado de incompetência ou irresponsabilidade. É isso que chamo Espírito. De missão. Sua preocupação em chegar cedo e "aturar a chefe" é também espírito de missão. É o que dizemos quando saímos de casa: "o papá ou a mamã vai trabalhar". E os filhos orgulham-se disso.
-É verdade, chefe. Com cargo ou sem cargo, aqui ou noutro lugar, você é pessoa que inspira.
Oito e um quarto. Chegaram ligeiramente atrasados. Mas foram os primeiros a transpor o portão do edifício.
Publicado no Jornal de Angola de 28.10.2018
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