1998
A transportadora aérea nacional reiniciou os seus voos civis para a cidade do Kuito, capital do Bié, depois de um longo cerco e combates rua a rua, homem-a-homem, cidade dividida. Foi depois das eleições de 1992.
Do aeroporto à cidade, que eu visitava pela primeira vez, tudo parecia fantasmagórico. Casas todas estropiadas, tropas em todo o lado. Civis também andando e vivendo como militares. Crianças rotas, quase nuas... O PAM (Programa Alimentar Mundial, Órgãos da ONU) parecia ser uma planta divina, comparada ao maná dos tempos de Moisés, no Ermo. Dele "brotavam" o milho, o feijão, a soja e demais mantimentos. Os voos do PAM eram regulares, mas tinham de fazer-se aos céus do Kuito em sistema espiral (várias voltas num raio apertado até atingir a altitude necessária), a aterragem era feita no mesmo sistema. Os ares estavam, até aí vetados aos voos comerciais.
- Ó puto, donde provêm o milho? - Questionei, esperando ouvir "do milheiro". Ledo engano. A resposta do garoto, oito anos, mais ou menos, saiu "é no PAME, mano", guardei o sorriso.
"Aqui, as forças armadas defendem o povo e o povo se autodefende", fomos informados à chegada no aeroporto por um chefe militar, seguido da questão "quem sabe disparar?", ao que alguns dos jornalistas que foram "cobrir" aquele reinício responderam afirmativo. Eu estava entre os que sabiam premir o gatilho e desmontar a culatra de uma kalashenikov.
Postos na cidade, alojados nos anexos da casa do Governador, de onde também era emitida a famigerada "Rádio Kambulukutu" (assim designada porque se diz que o sinal chegava apenas ao bairro Kambulukutu), diviso um clima horrível: canteiros separadores das vias transformados em campas e ao mesmo tempo lavras. Cacimbas que davam água serviam de túmulos. Faltava quase tudo. E o pior, o avião não pôde voltar à procedência, pois tinha registado uma avaria. Como a guerrilha estava a pouca distância, não se podia informar na comunicação social que o aparelho estava na pista, sob risco de bombardearem o aeroporto. E ficamos três dias no Kuito.
No dia de regresso, foi quase festa. Sobretudo, quando a cidade já se via "bonequinhos lá em baixo". Só alegria. Quando voltei ao Kuito, em 2004, já decorria o PERMK (Programa Especial de Reabilitação Mínima do Kuito) dando outra alegria às edificações ao longo das ruas principais. O cemitério monumento já era realidade.
Nota: texto publicado pelo semanário Nova Gazeta a 09.03.2017
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