Embora
não se saiba quando, precisamente, aconteceu essa estória do tramankanso dos
dodós, o “fala que fala” apimentado à moda angolense já leva tempo. Ano e meio,
mais ou menos.
A
cena deu-se entre dois homens e duas senhoras que desenvolveram uma amizade
quase parental. Os homens tratam-se por pai e filho, mesmo vivendo, o mais
velho, kota Agê, na Tuga e o mais novo, ndenge Dimuka, originário e residente
nas terras de Ngola, junto ao maior ribeiro que empresta o nome ao papel moeda.
As senhoras, uma, a Kaxinda, diz-se filha de Dimuka, embora se tenham conhecido
virtualmente e nunca se tenham avistado "caralmente" como diz o
pretenso mas assumido pai. A outra, Dina, também conhecida como “tia dos
dodós”, é tuguesa que faz vai e vem, levando umas imbambas trocadas entre o
também tuguês Agê, o filho Dimuka e a neta Kaxinda.
Certo
dia, Dimuka precisou de livros e pediu-os ao pai que os custeou e os enviou por
correio da Tuga às terras de Ngola. Embora sobrevivendo da reforma, Agê, na sua
mania da geração dos valores e desprimor às moedas, acabaria por relutar em
passar a factura ao filho.
-
Olha filho, já tens os dois volumes no correio. Pena é que o custo da
transportação é tão alto quanto o da aquisição, mas vais gostar. _ Agê recomendou a atenção de Dimuka ao post box
nos dias subsequentes.
-
E quanto te devo, ó pai? É preciso que as contas batam certo para que me possas
voltar a ajudar, apelou o filho mesmo sabendo que só muito dificilmente
receberia a factura com todos os cêntimos.
-
Ó filho, não te preocupes com o dinheiro. Já tive algum e fugiu todo. Os meus
amigos e os filhos, biológicos e afectivos, é que me dão a graça de viver,
mesmo sem as coroas doutro tempo. _ Escapou Agê.
Dimuka,
sabendo do custo dos dois livros, multiplicou-o por dois e cuidou de arranjar
os dodós equivalentes na moeda tuguesa. E quase conseguia fazer a operação de
envio digital se não fosse o aperto que os banqueiros afinaram às remessas para
fora. A crise do ouro negro tinha transformado os dodós em moeda rara quer nas
terras de Ngola quer nas de Camões e arredores. Dimuka teve de procurar por
Dina dos dodós, que estava de malas aviadas para a antiga metrópole, a fim de
levar as apetecíveis verdinhas embrulhadas num lencito de seda perfumado a
preceito e as entregar ao seu benquisto pai.
-
Coisa que vai à estranja tem de chegar bem cheirosinha. _ Disse para si mesmo
Dimuka, antes de entregar a encomenda.
-
Podes confiar, Sô Tor., Tão logo baixe o pé no Figo Maduro (nome aeroporto) eu
ligo ao teu papai a informar e a combinar o encontro. _ Disse a mulher banhada
de satisfação.
Trocaram
cortesia e sorrisos. Tudo caminhava a preceito. No dia seguinte, Dimuka recebeu
uma chamada a confirmar que Dina tinha chegado bem e falado já com Agê. Dimuka
esfregou as mãos de contente. Mais ainda quando recebeu os agradecimentos do
pai, embora tivesse terminado com a sua célebre frase, já canção, "o
dinheiro faz pouco na minha vida". Tanto de um lado quanto do outro reinou
a sensação de confiança.
-
O infante é de palavra. Meninos assim é que dava para adotar na juventude. _
Terá desabafado Agê ao desenrolar o lencito de seda carregando umas folhinhas
que valem ouro.
-
Esse kota é mesmo um tuga mwangolizado. Quem me dera que tivesse ficado
connosco quando se deram as vundas do tunda mindele? _ Desabafou Dimuka que me
contou presencialmente a sua versao dos factos.
Mas
não era tudo. Kaxinda, candidata a escritora, tinha contas por pagar numa
editora livreira da estranja e debatia-se com a carência de folhas verdes
decoradas com bandeira do tio Sam. Já o tinha comunicado ao pai adoptivo Dimuka
e ao vovô Agê que prometeram "ajudar na medida do possível", mas num
tempo que não se encurtava.
Numa
altura em que Kaxinda desesperava, Agê deu ar de sua Graça. Ligou à Dina
pedindo-lhe se podia levar os dodós de volta às terras de Ngola e, desta vez,
os entregar à Kaxinda. Conseguido o agrément, telefonou à neta:
-
Ove lá, minha neta, teu pai pagou-me os livros mas vou te enviar o dinheiro
para ajudar no teu livro. São três folhinhas que valem pouco mas que ja dão um
pequeno impulso. Guarda sigilo e não lhe digas nada, está bem? Boa sorte. Uma
dona, a Dina, mulher linda séria e inteligente, vai te contactar quando chegar
por aí. _ Segredou Agê, ao que mantiveram, neta e avô, a conversa longe de
Dimuka que continuou a sua vida e a sua
interação ora com o pai na estranja ora com a filha incógnita que reside a
1200km de distância.
Terminada
a transumância invernal, Dina regressou ao antigo ultramar onde decidiu juntar
patacas, sendo surpreendida, ao que se conta, com a subida vertiginosa do custo
de vida e cada vez mais difícil acesso às verdinhas.
-
Estou nas margens do Kwanza onde é esse rio quem todas as contas paga, vou
levar à neta do Agê alguns litros dessa água milagrosa e fico com as folhas
verdes, verdinhas como o café ribeirinho do Kwanza. _ Filosofou Dina dos dodós.
Na
manhã do dia seguinte, Kaxinda, que já sonhara com os dodós vindos da Tuga,
receberia os litros do Kwanza.
-
Ei-los, filha. Foi teu avô q'os mandou p’ros netos, os teus filhos. _ Atirou
Dina esboçando um sorriso matreiro.
-
Kwaaanzas, mô Deuju?! E os môs dodós que o vovô me segredou? Ai wé, Ngana
Nzambi, me tramankaram mbora môs dodós do livro na Tuga...
E
foi esse o grito que se ouviu de Kabinda ao Kunene e da Matamba a Galiza. Já
correu muito tempo mas o “conta que conta” vai avivando a cena e com novos
detalhes ajindungados.
Nota Prévia: tramankar é um termo do calão luandense do séc. XX que equivale a furto ou apossar-se de algo alheio sem que haja contacto com a vítima. Texto publicado pelo Semanário Angolense a 09.05.2015.
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