Nos meses de
Março, Abril e Maio, Portugal, e concretamente Lisboa, é uma cidade muito
iluminada. Não porque noutras estações do ano falte luz ou energia eléctrica
como aqui (Angola). Não. É o sol que se prolonga, para além do raiar que é
madrugador. E quando o sol não se põe ao Atlântico, o angolano ou africano
recém-chegado às terras de Vaz de Camões tem dificuldades em buscar a quentura
dos colchões e lençóis que o aguardam no hotel ou noutra albergaria.
No centro da cidade
de Lisboa, o El corte Inglês, a Praça de Espanha, a Fundação Gulbenkian e
outras paragens que incluem restaurantes, bares e tascas para “frascos”
(imperiais e pomadas) e cafés são referências quase que obrigatórias para
visitas periódicas e diárias.
Há porém quem
pretenda viver um feriado, visitando os enormes centros de compras ou mesmo,
vestido à paisana, enfrentar a enchente na Praça do Relógio (uma espécie de
Roque Santeiro organizado). Só que não tarda, a repetição mata o espanto e a
preferência começa a ser a cidade subterrânea, o metropolitano de Lisboa, com a
sua grandiosidade crescente, que nos remete há alguns séculos de atraso se não
corrermos a bom passo e com qualidade.
Aqui, no metrô,
surge então a importância do mapa de Lisboa, ou seja, dos transportes públicos
da cidade. O Metrô, com as suas quatro linhas: a vermelha-Alameda/Oriente; a
verde -Cais do Sodré/Telheiras; a azul -Baixa-Chiado/Amadora Este e a linha
Amarela que vai do Rato a Odivelas é meio de transporte público mais procurado,
quer por nacionais quer pelos turistas, levando-os aos mais recônditos sítios
da capital lusa, às vezes, com os préstimos do comboio de superfície, das
carreiras, do táxi e até de amigos. É para tal que existem os amigos, quanto
mais não seja para pôr a "fofoca" em dia.
- Comué na banda,
tá-se? - Pergunta o Pedro, 20 anos na tuga e sem meios ainda para regressar.
Finge um sotaque lisboeta mas nota-se no encadeamento das palavras a fraqueza
do vocabulário e a mistura entre português lusitano e um calão já arcaico
deixado no auge da sua criação em Luanda.
- Yá! vive-se. Há
crescimento. - Responde-lhe o amigo João
Manuel, turista de ocasião que frequenta uma formação profissional de duração
intermédia.
E o teu regresso?
– Ataca João Manuel, procurando encontrar uma resposta convincente sobre a sua
estada na antiga metrópole, numa altura que até os tugas se colocam na fila da
frente para atacar as terras deixadas em 1975.
- A minha volta?
Daqui há nada. É só tempo de reunir uns farrapos e completar a mobília. –
Justifica-se, enroladamente, Pedro que, ao que se diz, já dormita debaixo duma
ponte quando não é a sobra da estátua dos heróis que o abrigam em tardes de sol
abrasador.
São essas as
conversas nos cafés e noutras andanças entre os que vão a Portugal em missão
turística, estudos ou de trabalho e os que lá ainda estão nas bumbas precárias,
nas pedreiras ou nos bares.
Pedro, um jovem
nascido no Cazenga e que nas refregas de 1992 entendeu vender à socapa a cubata
da mãe e emigrar para a tuga, que na altura “batia” é um dos que, envergonhados
por nada terem amealhado durante o tempo de vacas gordas por lá e balázios por
cá, enterraram a vida na copofonia para enfrentar o frio. Erguem hoje terras
alheias a troco de migalhas, que dizem ser bem maiores do que aquilo que nos
vai ao prato aqui no país, algo que até o pior dos cegos já vê e desmente.
Ainda na Tuga, é
no metropolitano de Lisboa que a África se casa com a Europa civilizada. Em
cada paragem, o modo poético de estar europeu é sempre cortado ou pela brutalidade
de um homem do leste europeu que ignora a leitura dum jornal, preferindo a
fala, ou pela harmónica de um pedinte qualquer. E os pedintes que aumentam dia
após dia, são homens de todas as idades e sexos.
Na linha azul do
metropolitano, por exemplo, é presença obrigatória a de um cão kabiri,
aparentando apenas dez semanas, viajando em ombro forte dum rapaz também nos
seus dez anitos que chama a atenção de quem é atento a essas coisas. O silêncio
corta até os murmúrios dos africanos sempre dispostos a debates. O rapaz faz
chorar a harmónica com o farfalho de seus dedos. Não tarda, chovem moedas no
copo descartável amarrado ao instrumento musical. A cena se transfere para a
carruagem seguinte, e a pobreza ruma até à morte.
Os africanos
mudam de linha mas a estória continua. A peça seguinte é executada por dois
adultos de grande compleição física. Dir-se-iam, no nosso linguajar, “caenches”
de primeira hora. Um leva no colo uma guitarra e o outro uma harmónica. Soa um
fado e os portugueses são os primeiros a aliena-los com moedas. De repente,
irrompe uma voz incómoda entre os africanos.
- Não há por cá
subsídio de desemprego?
À pergunta se
segue o silêncio e só as moedas falam no copo. A moda antiga de dar pão ao
pobre ou uma sopa morreu. Era uma vez. Passou à história. Ao menino que se
devia dar uma escola, pois o pepino ainda pode ser torcido, dão-se moedas e
todos aderem até os Padres que se fazem transportar na carruagem. A formação
profissional é negada aos jovens desempregados a troco de um fado barato e
ainda dizem que problemas como estes só estão em África. Todos vêem, mas fingem
não estar atentos ao que lhes queima a barba, porque só o Marburg em Angola é
preocupação, só a Dengue em Timor ou cólera em São Tomé matam. Ninguém quer
ver. E lá se vai o metropolitano com uma estória que já virou história.
Todos os dias em
todas as paragens, o mesmo cão no ombro do mesmo rapaz, o mesmo fado na mesma
carruagem e o mesmo dinheiro.
NB: Crónica (ainda
actual) escrita em Lisboa, a 4 de Maio 2005. Versão publicada a 18 de Abril de 2015 no Semanário Angolense.
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