No edifício rosado da vila crescente de Lumbala Ngimbu,
Xavier Martins e Ernesto Del Ponte dividiam o corredor longo e estreito. Duas
salas com portas paralelas se enfiavam ao fundo, ganhando janelas pelas
laterais e pelos fundos, um arrojo da arquitectura daquele tempo oitocentista.
Uma das salas era do administrador do posto e a outra era a do secretário.
Do outro lado estavam os cobradores de imposto indígena, os
cipaios e seus cacetes, os serviçais e os queixosos e queixados. Mais longe,
mas no mesmo quintal engalanado de flores que desbrochavam em todas as épocas,
estavam as casas para as "sentinas": duas para os brancos da
administração e um “covil” que servia a "negralhada" toda, onde
homens e mulheres acossados pelas descargas fisiológicas se revezavam minuto
sim, minuto sempre. Kapita era empregado auxiliar e cuidava de levar e trazer o
que os brancos pedissem.
Certo dia, daqueles em que o céu parecia ter descido à terra,
ameaçando queimar tudo e todos, Xavier na sua sala suava. Del Ponte também de
suor molhava a malha da camisa estampada que quase lhe mordia o corpo torneado.
Os dois se pareciam a nascentes de rios que se alargavam a cada chuva, a cada
gota. Já tinham trocado os lenços pelas toalhas que mesmo assim não bastavam
para se enxugarem. Água nos moringues já não havia.
Kapita, atrás dum monandege traquino, na vista do administrador
se colocou.
- Ei, ó preto, pega uma bacia e traz água. Tens um minuto e
meio. - Ordenou Xavier Martins, o administrador.
Dois passos à frente, outro grito e Kapita ainda sem
descodificar o que lhe fora solicitado.
- Kapita! Outra bacia para mim, uma toalha límpida e um minuto e meio para a empreitada. - A voz de Del
Ponte, um luso de descendência hispânica era inconfundível. O homem era dos
principais queixinhas de Xavier Martins e culpado pelo desterro de muitos
serviçais à roça Camokomoko, autêntica colónia de morte nos tempos da administração
estrangeira no Leste de Angola.
- Coitado. Mbacia chamado por um e por outro, 'deve ser muito
sério o que esse irmão aprontou'. - Kapita assim pensou e meteu-se mangueiras e
laranjeiras abaixo, gritando e procurando por Mbacia.
- Mano Mbacia, ó Mbacia, se estás a te esconder é melhor se
apresentar, porque o branco está a ficar vermelho. Mwata mutolo nyi secretario
já informaram no cipaio e disseram que se o Minuto e Meio não vier contigo, vais mijar água com sangue.
Kapita gritou até fazer-se ouvir por todos os que se tinham
dirigido ao posto administrativo, sem que ninguém o pudesse ajudar. Nem Mbacia,
nem Minuto e Meio se apresentaram.
Desolado, pensando nas palmatoadas que levaria por conta do
fugitivo Mbacia que não pôde encontrar, dirigiu-se aos soluços ao gabinete do
secretário Del Ponte.
- Sô secretario, Mbacia nyi Minuto e Meio ma lunga o ma pwo?
(Bacia e o minuto e meio são homens ou mulheres?) 'Num li vistei casa tudo'. -
Explicou numa mistura entre ucokwe e português.
Del Ponte, furioso, fez-se como flexa ao gabinete do
administrador, informando que Kapita se tinha gozado deles e se recusado a
dar-lhes água.
Xavier Martins, um flexa que já tinha sido capturado nas
guerras de conquista do Leste, pegou, com as próprias mãos em Kapita e o
acorrentou pelo pescoço, juntamente com outros dois empregados que se faziam
passear pelo quintal. Foram mandados à roça Camokomoko desbastar uma montanha
durante as manhãs e cortar lenhas durante as tardes.
Lá ficaram, os três, cinco anos, sempre labutando
acorrentados ao pescoço. Até às "sentinas" sempre juntos: Kapita,
Katonde e Sandumba...
Num Novembro de mangas fartas, sede na hora doze acompanhava
a fome da fuba levada pela chuva. Na frondosa mangueira, habilidosamente, decidiram
subir e desfrutar-se de polpa que cumpriria as duas funções: matar sede e fome
num só trago.
Mangueira acima se fizeram. Lá foram os trigémeos. Uma
formiga brava, entretanto, sangue humano queria sugar e Katonde, o do meio, não
foi poupado.
- Wawé, ndifa! (Ai, morro!) - Exclamou em Umbundu.
Pretendendo desfazer-se do incómodo quebrou o galho. Outro
abaixo acolheu a corrente. Katonde e Sandumba num lado e Kapita noutro
balouçando.
- A suku a tatê, tukutise ño (Deus pai. ajude-nos). - Gritava
Kapita.
- Capatajééé, Tukwase! (Capataz, ajude-nos!) - Replicavam
apelos, em ucokwe, Sandumba e Katonde.
Mukwa Kuxaha, o cipaio, e Mukwahenda, o capataz, meteram-se a caminho. Um com a espingarda e o cacetete e o outro com o chicote.
- Toma a chave, liberta um e depois o da outra ponta. O do
meio desce com a corrente. - Ordenou o cipaio.
O capataz trepou, mas o coração pesou-lhe a alma. Na sombra,
o cipaio arma na mão, pronto a atirar.
- Sô cipaio, “quarente” está complicado desamarrar”. em só me
ajudar. - Iscou o capataz.
- Desce de lá seu sebo e se eu conseguir resgata-los,
coloco-te na condição destes desgraçados. – Ameaçou o cipaio antes de concluir:
- Dou-te a espingarda e atira neles, antes de eu cumprir em ti a minha promessa.
Desce de lá, pá!
Mukwahenda também temendo pela sorte. Livrou-se da árvore.
Fez-se à sombra, caçadeira na mão. O cipaio descalçou as botas, arregaçou as
mangas e ajeitou os calções de caqui. Embravecido agarrou a árvore como quem
lhe pega pela garganta. Confirmou as chaves dos cadeados no bolso. Subiu ao colmo.
Sedento de sangue soltou valente bofetada a Kapita que apenas suspirou antes de
levar o rio de saliva ao rosto do assassino.
- Ai é? É la em baixo que vamos ajustar as contas.- Verberou
alto.
Mukwa Kuxaha, soltou Katonde e voltou ao lado de Kapita que
sangrava na boca. Quando o cipaio se preparava para descer, Mukuahenda, o
capataz, deu-lhe a provar do veneno.
- Tuááá! - A bala certeira de caçadeira abraçou-o de morte.
Fez-se silêncio e depois o eco além savana. O cheiro de pólvora e as aves predadoras fizeram-se anunciar. Era sangue e pedaços espalhados pelo matagal.
Kapita
e o capataz meteram-se mata adentro. Catonde e Sandumba seguiram a caminho do
pantanoso Lunge-Bunge, não se sabendo qual foi a sua
sorte. Outrossim, ficou registado que o corajoso capataz e os seus troféus
entregaram-se ao Movimento.
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