Era procedente do planalto angolano. Não se sabia se do
Huambo ou Bié porque nunca o perguntamos e ele também nunca nos explicou, talvez
porque se julgasse irrelevante. Angola não é dos angolanos? Que importa o local de nascimento se nestes 1246700km2 cabemos todos nós e mais uns tantos "chinocas" que já nos dão sobrinhos?
O tio Domingos
Mortelado não tinha um dos pés, perdido na guerra (calcula-se que tenha sido a
guerra pela independência), em sitio e circunstancias que só ele sabia. Vivia
da sua lavra e do esforço de sua mulher e filhos. Era único na aldeia a usar
muletas embora fizesse quase tudo. Cortava lenhas, capinava e também tomava o
seu copo com os outros homens da aldeia. Apenas não podia trabalhar na fazenda
onde a labuta era mais agreste.
Uma arma destruidora bastante usada na guerra civil |
Todos os miúdos e miúdas da aldeia contígua à fazenda Israel
(Libolo) hoje reagrupada e denominada por Pedra Escrita, tratavam-no por tio
Domingos Mortelado. Até parecia que Mortelado fosse seu apelido. Nunca alguém
questionou porque era mutilado e porque era assim tratado.
Perguntar? A quem? Havia espaço para tal?
- Podia ser entendido como uma discriminação o que era impensável
naqueles tempos.
E a vida corria bem. Ti Domingos Mortelado p´ra cá, ti
Domingos Mortelado para lá. Sem que ele se importasse do cognome.
Hoje já não vive. Mas fica na saudade de muitos miúdos e miúdas
do meu tempo que só mais tarde se aperceberam que Mortelado não era seu nome,
mas a condição que a guerra lhe tinha imposto. Na verdade ele era o tio
Domingos, o mutilado.
Sem comentários:
Enviar um comentário