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segunda-feira, junho 24, 2024

HOMENAGEM ÀS MULEMBAS

Nzuzi nasceu em Alfândega, um pequeno vilarejo do norte de Angola. Chegado a Luanda em meados dos anos noventa do seculo finado, ainda criança, viu o mundo da escola fugir-se dele por não lhe terem dado a oportunidade de deslizar persistentemente o lápis sobre o papel até dar forma as figuras geométricas, letras e números passa hoje grande parte do seu tempo sobre a sombra duma mulemba, numa das ruas da zona urbana de Luanda onde faz da lavagem de carros o seu ganha-pão.

Xavitu, de Namacunde, abandonou sua terra forçado pela guerra. Os ovambos, embora tenham a vocação natural de pastores e gostem de fazer transumância do seu gado, não são muito dados a emigrar para terras distantes e desconhecidas, ainda mais sem gado. Mas Xavitu, aconselhado por um parente do exército que pesquisara o "salve-se quem puder" na grande cidade acabou aceitando a ideia de em Luanda tudo é possível. Meteu-se em cima dum camião de carga procedente da Damaralândia e aportou na cidade dos sonhos. Dias depois, escolheu a rua que liga a antiga escola de oficiais do Gika à Maianga, abundante em mulembas, vivendo das propinas que cobra aos afoitos em encontrar lugar para estacionar suas viaturas. Tal como Nzuzi, faz-se dono de um parque público, lava carros, cobra dinheiro pelo uso do pedaço de estrada morta, rouba aos incautos, danifica viaturas de quem não pague o que não deve e faz das mulembas da Martal o seu refúgio solar, seu restaurante, seu contentor de lixo e, pior ainda, também seu lugar para urinar e defecar.

- Kota, aqui é só mesmo se desenrascar. Quando cheguei, era ainda um "camenino" e comecei mesmo a viver no elevador estragado dum prédio e a lavar carros e carregar as coisas dos chefes. Quando tenho vontade de tirar água ou comida da barriga vou mesmo debaixo das mulembeiras. É mesmo já nosso hábito. Não temos outros lugares. Numas só ficamos lá para apanhar sombra, noutras é que fazemos já o que o kota está a ver. - Narrou Xavitu, solícito.

Lembinha é zungueira. Na sua bacia transporta "magoga" (sandes de frango frito), "paracuca" (ginguba/amendoim açucarado), kisângua (refrigerante caseiro) e outros "mata fome" bastante solicitados por funcionários públicos e outros frequentadores da cidade em negócios de rua ou trabalho formal. Apesar de a condição feminina não ajudar muito para a frequência das mulembas, vezes tantas Lembinha teve de imitar os colegas masculinos das ruas de Luanda para aliviar-se debaixo da mulemba.

- A pessoa se amarra um pano e faz só já debaixo da árvore. Não temos sítios para fazer as "centinas" e quando você bate porta do quintal para pedir licença na casa de banho ninguém te aceita. - Argumentou com uma ponta de vergonha e tristeza.

Lembinha que é de Tunda Sanji, tem consciência do mal que provoca às mulembas e à sanidade urbana, pois reconhece que "não devia ser assim, porque a cidade cheira mal e muitas árvores acabam por secar, mas também se justifica sarcástica que "quando, na barriga ou na bexiga, a revolução chega não há como travá-la", informa a vendedeira.

Na Petrangol, as mulembas que ladeavam a estrada que nos leva a Cacuaco e que desenhavam um "túnel" verde não resistiram à força do machado, mas ainda resta a Mulemba Waxa Ngola. Apesar de local histórico, de veneração e culto ao soberano Ngola Kilwanji Kya Samba, a árvore vai recebendo lixo e detritos vários. Nga Ximinha que vende bombó assado com jinguba torrada refugia-se sobre a árvore secular, não se coibindo de oferecer-lhe, vezes tantas, alguns litros de urina e adubá-la com os restos do seu comércio de rua. Ximinha é também testemunha de outras cenas que se desenvolvem sobre mulemba mais famosa da Petrangol.

- Aqui quando é noite, os moços vêm cá namorar e se encostam mesmo na árvore. Já encontramos aqui latex usado na pouca-vergonha desses meninos do bairro. Outros, quando o xixi lhes aperta, não se escondem mais. É mesmo aqui que descarregam o seu kimbombo e kapuka que cheira como cheira. - Desabafa Ximinha, entre um misto de culpa pelo que também faz contra a árvore e algum desgosto pela imundície à volta.

Quando se lhe pergunta por que faz ela parte dos que jogam lixo na mulemba, Ximinha coça a cabeça e balbucia:

- É mesmo falta de educação e respeito pelas coisas sagradas. Uma árvore dessas devia ser mais bem tratada. - Reconhece a senhora, nos seus aparentes quarenta e picos anos de idade.

Assim segue a vida das mulembas e daqueles que na cidade ganham a vida debaixo das árvores, não sendo poupada nenhuma espécie que se mostre à rua: acácias, coqueiros, tamarineiros, espinheiras, macieiras da Índia, imbondeiros, etc.

Resilientes, mesmo maltratadas, sempre dispostas a transformar hidrogênio em oxigênio puro para respiração humana. Mesmo sendo insistentemente regadas a mijo humano e adubadas com dejetos, lá estão elas, enfeitando calçadas, ladeando as ruas e avenidas da nossa capital, lançando ainda o seu perfume que só a barbaridade de quem se esperava pensante elimina com o fedor de suas descargas biológicas.

As nossas mulembas de Luanda são símbolos de resistência contra o mal, sem falecer. Continuam hirtas, desempenhando seu papel social e vital.

Plantemos mulembas e reguemo-las com água e lágrimas de louvor!

 

segunda-feira, junho 17, 2024

O DIA EM QUE FUI PROIBIDO DE "SONHAR"

Apesar das kitotas que tinham entrado sorrateiramente e com efeitos drásticos em nossas vidas, o resto parecia correr bem para uma criança do meu tempo. Rotinas conhecidas, até os tungos matinais que a mamã me dava ou o mano Sabalu-a-Soba, quando chamado para "me educar", se tinham convertido no meu normal.
A expressão "educar" valia para a repreensão correctiva, instrutiva, pedagógica e muito mais. O seu significado prático dependia do momento e da situação. Assim é que Sabalu era o meu educador, no sentido de me aconselhar a sonhar com coisas grandes e maravilhosas das cidades, adestrar-me no fabrico de brinquedos (ele fazia para mim e ensinava como fazê-los), gostar de ler e redigir, exercitar a tabuada de somar e multiplicar, punir-me quando tivesse faltado com os meus deveres e, vezes tantas, para tentar corrigir uma acção que também me era involuntária, a enurese noturna.
Assim íamos: ele mentor e eu pupilo que, de quando em vez, quando ele fosse chamado para "educar-me", dava-me uns tungo-zitos que nem chegavam a "ter dor de violência".
_ É teu irmão. Ele só quer o teu bem. _ Diziam-me quando o lado chateado me subia à cabeça.
Mas a vida seguia, cuidar de negócios da mamã, lavar a loiça, abastecer de água os utensílios, ir à padaria (dia sim, dia não), ir à escola e fazer o dever de casa (tarefa), jogar à bola e outras brincadeiras de undenge e urinar nos cantos dos becos em que brincávamos ou numa sucata de Beriliet Tramagal que se achava à entrada do campo do Kilwanji (Rangel).
Para a minha desgraça, os jogos, as brincadeiras e os mijos prolongavam-se até nos sonhos.
Que mais tem uma criança para sonhar, senão com as brincadeiras do dia seguinte, ou com o 1º de Junho, data em que a escola dava brinquedos que os papás mandavam guardar para que não se estragassem?
Pois, e fui sonhando a brincar e a mijar, encostado às sucatas ou num canto qualquer do beco em que jogávamos às castanhas, o que redundava em tungos no dia seguinte, depois de acordado com os calções ensopados.
Um dia, talvez cansado de me tungar, Sabalu-a-Soba veio ter comigo. Melhor, chamou-me naquele seu tom meio amistoso, de quem quer comunicar e corrigir uma acção indevida. Ia eu a caminho de 12 anos, já tardio para aqueles sonhos de bola, corridas, gafas e mijadelas.
_ Vem cá.
Fui trémulo e a tentar justificar que eu não tinha culpa. Estava a ser castigado por algo que não me era voluntário.
_ Hoje não te vou bater. Quero saber por que é que fazes xixi na cama?
Encontrei o meu dia. Pareciam estar comigo todos os santos.
_ Posso explicar, não me vais bater?
_ Hoje não, mas tens que falar a verdade. Tens tido medo de acordar e ir à casa de banho à noite?
_ Não!
_ Então, por que fazes xixi na cama? - Indagou em tom ameaçador, embora mantivesse a promessa de não passar da reprimenda verbal.
_ Eu sonho que estou a brincar ou a jogar no campo com os meus amigos. O campo tem um carro estragado onde temos ido mijar. Até os pais que ficam na bicha do Supermercado Ngola Kilwaji também se encostam lá para se aliviarem.
_ Sim. E o quê que a sucata que está no campo tem a ver com o teu xixi nas calças?
_ Eu fico a sonhar que estou a brincar e depois estou apertado. Sonho que me encosto ao Beriliet estragado para mijar e, quando acordo, fico molhado.
_ Percebi. Tu sonhas a mijar e mijas mesmo. A partir de hoje estás proibido de sonhar. Ou seja, se estiveres a sonhar quer estás no campo a jogar e estás a ter vontade de urinar, acorda. Não mija mais naquela sucata que é o teu colchão. Ouviste? Aliás, nunca mais mija no beco ou em sucatas. Estás apertado, vai à casa de banho. Assim, quer seja de dia ou de noite o teu esforço será encontrar um vaso sanitário. Certo?
- Sim mano. Mas assim a pessoa já não pode sonhar?
_ Sonhar uma ova, pá! Quando começas a sonhar, acorda já para ir mijar. Para sonhos de mijo estás proibido e essa é última conversa.
Não é que a enurese noturna desapareceu daí em diante?!
Num texto sobre "Paternidade, Desenvolvimento Infantil, Família, Maternidade", constado no Blog Quindim, a 16.06.24, Leonardo Ponso explica que "É comum encontrar famílias que passam por isso e precisam de adaptar as suas rotinas por conta da enurese noturna". De acordo com a Sociedade Brasileira de Urologia, cerca de 15% das crianças até os 5 anos de idade são afetadas pela enurese noturna.
A dificuldade em controlar a urina durante o sono pode ter variadas origens e afligem crianças de diferentes idades. Dessa maneira, as soluções também podem ser diversas.
Se você ainda não sabe o que é enurese noturna, as causas e como tratar, saiba mais sobre esse tema.
De maneira mais directa e popular, a enurese noturna é o tão conhecido “xixi na cama”, em que a criança urina involuntariamente durante o sono. Essa condição é incontrolável para os pequenos, então isso pode acontecer até mesmo em locais ou momentos inapropriados.
Apesar de ser desconfortável e até mesmo parecer constrangedor em alguns momentos, embora não o seja, já que a criança não tem culpa disso, a situação não oferece riscos à saúde física.
Além disso, a enurese noturna pode perdurar até a fase adulta, o que tem um impacto emocional e até social nas crianças e em suas famílias.
Dados partilhados pelo portal PEBMED apontam que:
"Cerca de 15% das crianças até os 5 anos sofrem com enurese noturna;
A cada ano de vida, 15% desses casos se resolvem;
Aproximadamente 8% dos meninos 4% das meninas permanecem com o problema aos 12 anos; desse total, apenas de 1% a 3% continuam com a condição após essa idade".
Você conhece alguém que passou ou tem uma criança com enurese nocturna? Estão, está mais informado sobre o tema.
Todas as reaç

terça-feira, junho 04, 2024

EU, O NORTUGA E O GUILHERME

Os auriculares eram normais. Tal como os que Zezé usa. Apenas duas diferenças: quando o Zezé está à mesa e usa auriculares para falar ao telefone, discursa baixo, tão baixinho que parece estar a murmurar para que não lhe oiçam e percebam a conversa. A outra diferença é o que dono dos auriculares desta prosa era um nortuga que, de tanto se expor ao sol port'ambwimense, tinha a pele tão queimada, tão vermelha que parecia um russo.

O nortuga, embora ocupando sozinho a mesa em que se achava, estava rodeado de outros frequentadores do Farol, transformando a sua tertúlia íntima num desconforto aos que foram arrastados desprevenida e involuntariamente para aquela conversa que de um lado perguntava se "a praia do Port'Amboim lhe estava a kuyar" e ele respondendo ousado que "lhe bateria os glúteos à chegada".
_ São maneiras?

Ante a fermentação das "bichecas" no sangue do "Sussu", ficou instantaneamente assim conhecido, o bom do Fernando, um rapaz local que serve de "waiter" teve de pedir-lhe, discretamente, para baixar os decibéis que já denunciavam elevadas doses etílicas. Mas, tempo depois, o nortuga, voltou a vozeirar, desta vez falando sobre a limpeza e o azul das "iaguas" port'ambwimenses. Até que enfeitava os nossos ouvidos, entupidos por muita crítica maléfica e rasteira que polui os ventos.
_ A quem não cai bem um elogio?!

Nisso de preconização, faço data vênia ao Fernando e ao Guilherme. O Fernando, jovem que me recebeu à entrada é, como acima enunciado, natural do Port'Amboim. Polido, bem treinado para o trabalho que faz e bom "marketeiro" da empresa em que troca força e inteligência por dinheiro e amizades, acomodou-me, atendeu aos meus pedidos e sugeriu outros, ao contrário de alguns colaboradores em restaurantes que pensam que fazem favores ao cliente. O Fernando que, quando lhe disse que o meu avô respondia pelo mesmo nome, passou a me tratar por "meu neto" apesar de ter a idade do meu filho, soube cativar-me e ganhar a minha simpatia e amizade. Apresentou-me o Guilherme, chefe-de-cozinha que é kilendenses.

Das vezes em que parei no Porto Amboim para atender ao estômago notei que há muitos jovens da Kilenda a trabalhar com galhardia e qualidade na restauração. O Guilherme abandonou o interland, ainda pequeno, com a mãe, e instalaram-se junto ao mar. Comunga, como eu, que o mar é extenso. Tem e leva a muitos caminhos, sendo o importante saber aonde se vai e bregar para se chegar ao destino. "Apenas o pai de Guilherme ficou na Kilenda a cultivar mandioqueiras e caçar xywe". Mãe e filho foram em busca de novos horizontes.
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Crónica publicada pelo Jornal O Litoral de 25.05.24