Nzuzi nasceu em Alfândega, um pequeno vilarejo do norte de Angola. Chegado a Luanda em meados dos anos noventa do seculo finado, ainda criança, viu o mundo da escola fugir-se dele por não lhe terem dado a oportunidade de deslizar persistentemente o lápis sobre o papel até dar forma as figuras geométricas, letras e números passa hoje grande parte do seu tempo sobre a sombra duma mulemba, numa das ruas da zona urbana de Luanda onde faz da lavagem de carros o seu ganha-pão.
Xavitu, de Namacunde,
abandonou sua terra forçado pela guerra. Os ovambos, embora tenham a vocação
natural de pastores e gostem de fazer transumância do seu gado, não são muito
dados a emigrar para terras distantes e desconhecidas, ainda mais sem gado. Mas
Xavitu, aconselhado por um parente do exército que pesquisara o "salve-se
quem puder" na grande cidade acabou aceitando a ideia de em Luanda tudo é
possível. Meteu-se em cima dum camião de carga procedente da Damaralândia e
aportou na cidade dos sonhos. Dias depois, escolheu a rua que liga a antiga
escola de oficiais do Gika à Maianga, abundante em mulembas, vivendo das
propinas que cobra aos afoitos em encontrar lugar para estacionar suas
viaturas. Tal como Nzuzi, faz-se dono de um parque público, lava carros, cobra
dinheiro pelo uso do pedaço de estrada morta, rouba aos incautos, danifica
viaturas de quem não pague o que não deve e faz das mulembas da Martal o seu
refúgio solar, seu restaurante, seu contentor de lixo e, pior ainda, também seu
lugar para urinar e defecar.
- Kota, aqui é só mesmo
se desenrascar. Quando cheguei, era ainda um "camenino" e comecei
mesmo a viver no elevador estragado dum prédio e a lavar carros e carregar as
coisas dos chefes. Quando tenho vontade de tirar água ou comida da barriga vou
mesmo debaixo das mulembeiras. É mesmo já nosso hábito. Não temos outros
lugares. Numas só ficamos lá para apanhar sombra, noutras é que fazemos já o
que o kota está a ver. - Narrou Xavitu, solícito.
Lembinha é zungueira. Na
sua bacia transporta "magoga" (sandes de frango frito),
"paracuca" (ginguba/amendoim açucarado), kisângua (refrigerante
caseiro) e outros "mata fome" bastante solicitados por funcionários
públicos e outros frequentadores da cidade em negócios de rua ou trabalho
formal. Apesar de a condição feminina não ajudar muito para a frequência das mulembas,
vezes tantas Lembinha teve de imitar os colegas masculinos das ruas de Luanda
para aliviar-se debaixo da mulemba.
- A pessoa se amarra um
pano e faz só já debaixo da árvore. Não temos sítios para fazer as
"centinas" e quando você bate porta do quintal para pedir licença na
casa de banho ninguém te aceita. - Argumentou com uma ponta de vergonha e
tristeza.
Lembinha que é de Tunda
Sanji, tem consciência do mal que provoca às mulembas e à sanidade urbana, pois
reconhece que "não devia ser assim, porque a cidade cheira mal e muitas
árvores acabam por secar, mas também se justifica sarcástica que "quando,
na barriga ou na bexiga, a revolução chega não há como travá-la", informa
a vendedeira.
Na Petrangol, as mulembas
que ladeavam a estrada que nos leva a Cacuaco e que desenhavam um
"túnel" verde não resistiram à força do machado, mas ainda resta a
Mulemba Waxa Ngola. Apesar de local histórico, de veneração e culto ao soberano
Ngola Kilwanji Kya Samba, a árvore vai recebendo lixo e detritos vários. Nga
Ximinha que vende bombó assado com jinguba torrada refugia-se sobre a árvore
secular, não se coibindo de oferecer-lhe, vezes tantas, alguns litros de urina
e adubá-la com os restos do seu comércio de rua. Ximinha é também testemunha de
outras cenas que se desenvolvem sobre mulemba mais famosa da Petrangol.
- Aqui quando é noite, os
moços vêm cá namorar e se encostam mesmo na árvore. Já encontramos aqui latex
usado na pouca-vergonha desses meninos do bairro. Outros, quando o xixi lhes
aperta, não se escondem mais. É mesmo aqui que descarregam o seu kimbombo e
kapuka que cheira como cheira. - Desabafa Ximinha, entre um misto de culpa pelo
que também faz contra a árvore e algum desgosto pela imundície à volta.
Quando se lhe pergunta
por que faz ela parte dos que jogam lixo na mulemba, Ximinha coça a cabeça e
balbucia:
- É mesmo falta de
educação e respeito pelas coisas sagradas. Uma árvore dessas devia ser mais bem
tratada. - Reconhece a senhora, nos seus aparentes quarenta e picos anos de
idade.
Assim segue a vida das
mulembas e daqueles que na cidade ganham a vida debaixo das árvores, não sendo
poupada nenhuma espécie que se mostre à rua: acácias, coqueiros, tamarineiros,
espinheiras, macieiras da Índia, imbondeiros, etc.
Resilientes, mesmo
maltratadas, sempre dispostas a transformar hidrogênio em oxigênio puro para
respiração humana. Mesmo sendo insistentemente regadas a mijo humano e adubadas
com dejetos, lá estão elas, enfeitando calçadas, ladeando as ruas e avenidas da
nossa capital, lançando ainda o seu perfume que só a barbaridade de quem se
esperava pensante elimina com o fedor de suas descargas biológicas.
As nossas mulembas de
Luanda são símbolos de resistência contra o mal, sem falecer. Continuam hirtas,
desempenhando seu papel social e vital.
Plantemos mulembas e
reguemo-las com água e lágrimas de louvor!