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sábado, abril 01, 2023

O MOMENTO FILANTRÓPICO DO KOTA KALAMAVU

A garrafa, que mora na garrafeira há já ano e meio, ganhou o nome de Kalamavu. É, na verdade, uma desconstrução ou corruptela do nome verdadeiro do cavalheiro que a ofereceu ao zelador de coisas ímpares.
Encontraram-se na Marginal do Dondo, aonde o feriadão alusivo ao dia dos heróis do Kwitu Kwanavale os empurrara para espairecer numa tarde de sol intenso e suor a molhar-lhes as vestes. Aliás, o Dondo é assim: o sol se parece a labaredas que provocam um calor de assar ikusu e xitu de caça.
O kota Kalamavu é "Kisamista" e o narrador é lubolense, dos lados da fronteira com a Kisama. Encontraram-se ali, de forma inesperada, embora carreguem mais de duas décadas conhecendo-se à relativa distância.
Kalamavu já vice-governou e Sanda Mwenyu jornalisticou numa FM de Lwanda. Foi nesse tempo que se conheceram e criaram afectos (mais o mais novo pelo dikota). Outros episódios profissionais estiveram próximos de os colocar em mesma equipa, mas apenas escaparam ser colegas. Quando Kalamavu estava a sair, Sanda Mwenyu estava a entrar.
Ao se rencontrarem na Marginal do Dondo, primeiro trocaram olhares, como fazem os canídeos a marcar terreno e a se certificarem se já tinham estado naquele lugar.
- Será, não será?! - Ter-se-á interrogado no seu íntimo.
Sanda Mwenyu pegou coragem. Aquele atrevimento dos mizangala educados. Levantou-se e foi ter com o Mwadyakime. Se fosse reconhecido e se ficasse por aquele acento e conversa de bar, xinini, como se não visse o mais velho, na tradição deles seria problema. Equivale ao que os nortenses do Wiji chamam "pocalizar" o mais velho. Por isso, endireitou o colarinho e foi ter com ele.
- Com licença. Boa tarde, mais velho! Calculo que seja o papá da Vadinha!
- Sou eu, sim. Também és daqui?
- Não papá. Sou do Lubolu, mas os meus avós são kisamistas.
- Kisamistas de Kandanji, Mumbondu, Kixinje ou d'aonde? - Interrogou o sexagenário interessado.
- São da região de Kindongo. Depois foram ao Lubolu plantar café.
- Somos todos de casa, meu jovem. - Preludiou.
Estavam em mesas vizinhas. Cada com seu agregado familiar e suas conversas de fazer o tempo correr e esperar pelos assados ajindungados.
O mais velho Kalamavu, que fora visitar a sua terrinha umbilical, entregou-se à acção filantrópica. Primeiro apareceu uma vendedeira de calções, com todo o charme e marketing que lhe estava na cabeça para sair dali com os dois mil na algibeira.
Kalamavu pagou os calções mandou-a oferecer ao marido.
- Quero que tenhas algo para o jantar de hoje para os teus filhos. Vai em paz, filha.
- E os calções levo de novo?! - Estava incrédula a jovem, perante a acção incomum.
Ganhou o dia e terá ido, eventualmente, zungar noutra "freguesia".
Duas coisas tinha já garantidas: o dinheiro da janta e a possibilidade de agradar ao esposo com os calções ou revendê-los.
Depois, apareceu a mana do peixe escalado e defumado. Ikusu nyi jingwingi que, só de ver, faziam as glândulas salivares entrarem em actividade.
O kota Kalamavu comprou tudo e mandou pôr no seu carro, fazendo mais uma senhora feliz.
Sanda Mwenyu ia assistindo a tudo com elevada satisfação e dizia para si mesmo:
- Quando eu crescer também quererei agir assim.
Não tardou, chegou a sua vez. Uma voz, não muito distante, pronunciava o seu sobrenome. Levantou a cabeça e era o kota Kalamavu que estava com a vendedora de Folha Larga ao lado quem o chamava.
- Sanda Mwenyu, essa garrafa é para ti, meu mais novo. É o que a praça tem, infelizmente!
- Muito obrigado, Mwadyakime! Recebo-a com as duas mãos e faço preces para que onde saiu essa haja mais proventos!
O mais velho soltou um curto sorriso. O mais novo acompanhou-o no gesto. Soltaram-se outras conversas, nas duas mesas e famílias. Depois, o kota Kalamavu partiu, despedindo-se. Não se sabendo se voltou para a sua Kisama umbilical ou para o ninho permanente na grande cidade.
- Não abrirei essa garrafa. Vai ficar em casa e a conservar o valor simbólico que encerra. - Disse Sanda Mwenyu aos parentes que se preparavam para entorná-la goela abaixo.
É por isso que a Folha Larga está deitada na garrafeira, há mais de ano e meio, e até as empregadas já sabem que aquela não é uma garrafa qualquer que se calcula o valor pelo preço da loja. É pelo simbolismo que encerra que é das mais bem protegidas da garrafeira!

Dondo, Kambambi, 25.03.23
Publicado pelo Jornal de Angola a 09.04.23

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