- Kota, tens mais uma máscara?!
- Para quê? - Indaguei surpreso.
- Para tô kasule, mô pai. Sei que se eu não me mascarar, o pai não vai cortar cabelo!
Sem pedir a dedução do valor da máscara ao serviço que me prestaria, fui ao carro e peguei mais duas: uma para a minha reserva e outra para ele.
Hora e vinte depois, quando tinha pedicure feita, cabelo e barba aparados, procurei sair para o carro.
Um rapaz, franzino, meio sujo, cara de quem sofre um sofrimento alheio, pois crianças deviam ser felizes na sua inocência... o rapaz levava uma caixa para engraxar sapatos e aguardava-me junto à porta do carro, se calhar, para pôr-me a ver o meu rosto no sapato limpo.
- Papá, por favor, pode pagar-me uma pomada? - Disse, quase implorando, ao mesmo tempo que mostrava a fome, os ossos que lhe restavam do corpo e a vontade de ganhar seu pão justo.
Travei as lágrimas para puxar a minha fita, dos idos anos de 84-87, e atender-lhe ao pedido.
- Espera aí. Quanto é a graxa? - Questionei para puxar conversa.
- É cem.
- E a pomada?
- É trezentos, pai.
O rapaz parecia começar a perder a paciência. Li-lhe nos olhos que procuravam cliente que desse sapatos a engraxar ou por um patrocinador para a requerida pomada.
- Espera filho. Onde é que vives?
- Na Boa Fé?
- Tu deves ter sete ou oito anos. Me parece...
- Não pai. Tenho 11 anos.
- Com quem vives?
- Vivo com a minha mãe.
Para prender a sua atenção, eu vasculhava o carro, aos olhitos acesos dele, a ver se encontrasse dinheiro.
- Que faz tua mãe? - Voltei a indagar.
- Não faz nada.
- E teu pai?
- Não vivemos com ele.
Não perguntei se tinha irmãos.
Peguei em duas notas de duzentos Kwanzas e pedi que se aproximasse.
- Tens cem?
- Não. Mas vou procurar.
Era a vez dele de vasculhar a caixinha e os bolsos até encontrar uma moeda que me entregou.
- Os trezentos são teus e tens a pomada paga.
- Muito obrigado, papá! Posso limpar poeira nos teus ténis?
- Não precisas. Ainda irei ao campo e voltam a sujar. Mas responde uma coisa.
- Estudas?
- Sim. Estudo à tarde na escola ao lado dos Escorpiões da Boa Fé.
- Muito bom, filho. Ouve. Vou te contar uma verdade. Nos anos oitenta, para ti é já há muito tempo. Havia guerra e eu sai do Libolo com dez anos. Posto em Luanda, também vendia para ajudar a mãe que era viúva e comprar cadernos. Estou aqui hoje, como me vês. Estuda. Está bem? Se estudares, podes ser administrador de Viana, governador de Luanda ou mesmo ministro. Estás a ouvir bem, nê?
- Sim papá!
- Toma os cem Kwanzas que me deste de troco. Pensa sempre no conselho que te dei. Não fica bandido por causa do trabalho ou da estiga dos colegas e amigos. Eu também passei por isso.
O rapaz recebeu a moeda e meteu-se na padaria, que se achava a metros, para comprar pão. Afinal, já tinha dinheiro para a pomada!
Parti em direcção à administração municipal para me encontrar com o chefe da "Brigada kamartelo". Há muito que os fiscais do Zango brincam como javalis na minha lavra.
Nem por voz nem por mensagem o encontrava. Parti para a obra. A entrar para a rotunda do Zango 2, surge um motoqueiro da polícia e outro que me mandam, arrogantemente, retirar o carro da via porque vinha uma coluna de civis que, no pensar deles, "tinham mais direitos do que todos".
Abri o vidro e disse ao polícia:
- Carros deles têm dois eixos como o meu. Também vou trabalhar e ninguém vai ao piquenique.
O jovem polícia mostrou educação mas estava a cumprir ordens. Continuou accionando a sirene e mandando abrir o caminho para os "donos da estrada" passarem.
Os apressados e poderosos lá se foram. Era uma coluna de uma dúzia de jeeps.
- Quem era o todo importante mobilizador de batedores?
A resposta ficou perdida na floresta da arrogância renascente que alguns patriotas de ocasião vão impondo ao povo heroico e sempre generoso para com os passageiros de última carruagem.
Segui atrás do fumo deixado por eles que se perderam no horizonte. Parecia terem ido ao Kalumbu ou proximidades.
De regresso, aborrecido, com os "assaltos" semanais à minha obra por parte dos fiscais de Viana e do Zango, sou novamente apanhado no mesmo local pela mesma coluna.
O primeiro batedor mandou-me retirar o carro. Ignorei-o. Veio o segundo, o mesmo que me abordara em voz. Baixei o vidro e mostrei meu crachá. Mas ele não tinha tempo. Outro polícia de trânsito, que se achava fora daquela patrulha a fiscalizar os candongueiros, fez-me sinal para que eu acostasse, sem no entanto parar. Entendi-lhe a elevação. Parei ao pé dele e disse-lhe em voz doce:
- Meu jovem, também estou a trabalhar. Se eles têm pressa que arranjem boas estradas ou que saiam cedo de casa!..
O jovem polícia aprumou-se e "ofereceu-me" uma continência a que agradeci prontamente.
Salvou o meu dia de um pecado por palavras asquerosas.
Texto publicado no Gazeta: Lavra & Oficina (UEA), ed. Out-Dez. 2021