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terça-feira, junho 29, 2021

NÂMBUA: A GUERRILHA, A REGIÃO E AS ESTRADAS

Tá maluka, avô chegou, kaleluia são designativos da mota de três rodas (coexistem também as de seis rodas adaptadas para cisternas de transporte de água). A esses nomes, oriundos da rica invencionice angolana, junta-se outro, por ironia coincidente com a designação de uma municipalidade aonde os carros chegam a custo. Nâmbua. Isso mesmo. Diminutivo de Nâmbuangongo que fica na província do Bengo.

Não sei por que "carga d'água", as kaleluia no Bié, Huambo e Benguela ou tá maluka no corredor leste/tucokwe foram rebaptizadas de Nâmbua, depois de conhecidas, entre os povos ambundu das cidades, por "avô chegou", alusão à capacidade de transporte de imbamba que só mesmo as avós (avô de mulher) têm paciência e amor para tal.
As primeiras vezes que ouvi falar sobre Nambuangongo ou Nâmbua e sua árvore ande se confeccionavam luandos (muxi-a-lwandu) era sobre a tenacidade e coragem dos guerrilheiros do MPLA que ali montaram, sem nunca fraquejar, a Primeira Região Político-Militar.
Soube, contado pelos livros e pela oralidade dos adyakime, que "não foi fácil manter o povo organizado e combativo nas matas da região, arreigado na luta contra o colono kaputu e, outras vezes, nos reencontros com os irmãos da UPA".
Os rapazes que cantam "deixa de falar na minha amiga é yabará, kiwaya ou kilapi" também trouxeram o Nâmbua ao live da televisão que diz "somos todos nós" e mostraram a riqueza cultural da região ao país e ao mundo. Mas sobre o Nâmbua do futuro, que devia ser já presente, pouco relataram nas canções.
Já na Angola recente, com as estradas a chegarem mais distante, ecoam gritos sobre o estado "lastimável" das picadas. Vozes bem audíveis reclamam "porquê que estando Muxialuando (a sede do Nâmbua) bem perto de Luanda, a poucos quilômetros de Kaxito, não tem estrada asfaltada".
Vieram promessas, até mesmo adjudicação de obras para que os carros de todas as cilindradas, tamanhos, bolsos e gostos chegassem por lá.
Em conversa, um amigo natural de Muxi-a-luandu (como ele gosta de diferenciar na pronúncia do topônimo) que foi pioneiro na guerrilha, conferiu, a brincar, que "muitos que por lá fizeram a tropa de guerrilha e da salvaguarda da independência subiram na vida e também têm seus carros que gostariam de mostrar os tios e avós que ficaram na banda".
- Como é possível que a minha mãe, para ver o meu carro, tem de vir a Luanda por cima de uma Nâmbua e eu não posso ir mostrar os frutos da participação na guerrilha, formação e trabalho árduo? - Questionava-se o sexagenário., acrescentando "é por isso que temos de gritar até sermos ouvidos".
Via noticiários soube que o Nambuangongo terá já estrada asfaltada e o meu amigo poderá ir, sem enfrentar buracos no período de cacimbo ou lama no tempo chuvoso. As Nâmbuas vão deixar de fazer viagens longas e cingir-se ao transporte de banana e mandioca da lavra à vila. Afinal, o Nambuangongo é berço da nossa luta, parte da nossa pátria e da nossa História e merece o melhor que outros já têm.
PS: Publicado pelo Jornal de Angola de 08.08.2021

terça-feira, junho 22, 2021

WAKYUKILA KWAMAMÔ

A expressão eufemística em título é, às vezes, substituída por way kwamamô, utilizadas para diminuir o impacto nefasto de uma perda humana.
Wakyukila equivale a regressou e way é o mesmo que foi, em Português, sendo mamô, mãe (Kimbundu kibalense).
Essa prosa surge em virtude do passamento físico do mais velho Martins Sabonete Mambo, nosso pai, vizinho e amigo na Classe Jeremias do Cargo Moisés (Igreja Metodista Unida em Angola) e no bairro Rangel.
Conheci-o em 1984, quando vim a Luanda fugindo a guerra no meu Libolo.
Na Classe, eram seus contemporâneos os velhos João Kambundu, Joaquim Artur (Kumbu) e António Magalhães. Havia outros papás como José Morais que eram mais novos. Recordo-me de algumas conversas dele com seus amigos, cuja despreocupação, ante a minha presença, permitia dar trabalho aos meus ouvidos.
- Eye a Mambo, kumbi pi wekelaxi usupeta¹?
Ele simplesmente ria de lado e colocava na conversa um outro tema, despistando os amigos de um tema que criava irritantes no seio dos membros em relação à observância do "livro da disciplina metodista".
Às vezes, para nos afastar de suas prosas íntimas, os papás mandavam-nos colocar petróleo nos candeeiros de que éramos guardiões.
- Vai pôr pitalolo no candiero. Amanhã tem outro culto.
É nós, cumpridores e expeditos, executávamos com pressa e perícia aguardando, já meio distanciados dos mais velhos que glosavam um Kimbundu refinando e um português arrazoado, uma possível nova orientação ou o "fecha a porta e vamos".
Já no bairro, o Velho Mambo sabia pôr disciplina e/ou fazer a miudagem rir até colocar a descoberto o último molar.
Lembro-me dos elogios que fazia ao seu antigo mecânico de nome Mateus. Ele, Velho Mambo, tinha um Renault 4 antigo que havia comprado por abate na Sonangol, onde trabalhara. O senhor Mateus (pai da Sambita e outros meninos que foram meus alunos) era mecânico automóvel na FAPA/DAA².
Nos elogios ao mecânico, com alguma sátira pelo meio, o mais velho Mambo disparou certa vez.
- Mateuju ra é mbo macânico. Ruviá pára no ar, Mateuju ranja³.
Porém, no dia em que o Renault o deixou na rua, depois de sair das mãos do mecânico Mateus, o ancião não deixou de desabafar o seu descontentamento:
- Esse ngaju ndu Mateuju, mboca mbe cumbilhitu palece mbuneco ndu lua Cêsamo!
Pai de meus amigos, o Velho Mambo era um exemplo de progenitor dedicado e que tudo procurava fazer em prol dos filhos, defendendo a sua filha Luzia com o porrinho que ele chamava de Humbi.
Só os jovens bem educados e que se destacavam nos estudos mereciam o respeito dele e podiam ir pedir autorização para que a filha pudesse ir com eles ao cinema, à praia ou (mais tarde) ao dancing.
- Velho Mambo, vim só pedir para autorizar a Gia ir connosco à praia no dia xis. Vamos fulano, sicrano e beltrano. Pretendemos partir à hora xis e regressar à hora K. - Era assim, quer fosse para o cinema ou para o dancing.
- Amanhã volta para te dar resposta. - Respondia, para dar tempo de chamar uma das pessoas citadas e averiguar se o destino e as pessoas enumeradas eram certas.
- No dia aprazado para a resposta, fazia umas recomendações sobre os procedimentos a observar e concluía com uma citação que, para mim, era já música.
- Se cuidem e se vigiem. Têm que andar sempre juntos para ninguém se extraviar. Ouviu bem?
- Sim, velho Mambo. Muito obrigado!
===
¹ Ó Mambo, quando é que deixas de "bebiscar"?
²- Forças Armadas Populares de Angola/Defesa Anti-Aérea.
³- Avião em vôo pará no ar e o Mateus repara a avaria.

terça-feira, junho 15, 2021

ESTÓRIAS À MARGEM DO CUEBE

O Cuebe rasga, misturando vagar e pressa, a capital do Kwandu nyi Kuvangu (infelizmente grafado oficialmente com "cês"). 

Andando sobre margens, seja a esquerda ou direita, do Mis(s)ombo à cidade o rio é fonte de vida em alimentação (irrigando e dando peixe) como também de fertilização da memória. Estórias e história são contados à margem do Cuebe pelas mamãs que lavam roupas do marido ou do patrão; que buscam água para casa ou como kandonga; que se lavam ao amanhecer ou anoitecer e que jogam detritos no mesmo rio da vida.

Num 18 de Maio "estacionei" à beira do Cuebe, junto à ponte que nos leva ao término do caminho-de-ferro. Emprestei os ouvidos as mamãs que lamentavam o descaso dado à esplanada inacabada, aos balneários públicos erguidos nas proximidades e o lixo que corria rio abaixo. E a velha Nacitula começou assim:
- Ó chefe, ainda aquele dirigente deixou saudade. É verdade. Ele, onde chegava, fazia. Ainda aqui mesmo deixou emprego. Hotê, restaurantes, etecetera. Ainda vê aqui. Aquele, lá, ao fundo, era para ser lavandaria. Era para as pessoas não lavarem mais no rio. As pessoas deviam vir cartar¹ só água  no rio e lavar na lavandaria. Lá, junto a ponte, eram as casas de banho. Veio lavar ou veio se divertir, a higienização seria já ali. Aquele, tipo armazém, que está a ver aí, é o gimnodesportivo. Ó mano, o homem ainda trabalhou. Ainda estamos a lhe sentir mesmo saudade. Aqui, era para fazer esplanada com cadeiras dentro e fora, a olhar para o rio Cuebe, e ainda, dizem, devia subir mais. Era para ser mesmo um hotê. Assim, a pessoa mesmo que lhe falem gatuno, ainda vale apena gatuno que trabalha e não os outros. Ainda se terminassem só essas e outras coisas, o povo ia se beneficiar e ia gostar. Vê ainda, ó mano, o que o kaputu cikolonya² deixou: prédios, caminho-de-ferro, pontes, e muitos eteceteras. Vocês ainda que andam a sentar com os governantes lhes avisem só. Obra do outro que saiu é melhor acabar. O povo vai gostar.
A senhora, nos seus aparentes setenta anos, parecia lavada, manhã cedo, de um fermentado ou destilado abundante e de pouco preço no sudeste. Apesar de o cacimbo ter menos de setenta e duas horas, o frio era já de rasgar as fossas nasais e rachar os lábios. A lagartagem³ via-se por todos os lados e repartições, os linhos e algodão leves tinham dado corpo aos casacos pesados e peludos por dentro. Ainda bem que a covid-19 impôs as máscaras faciais. Aqui, são também apelidadas de "trava bafo".
- Pessoa você lhe vê bem vestida,  ó mano, lhe manda desmascarar. Já saiu na casa do kacipembe⁴. Quando a pessoa lhes fala verdade, lhes tira o capuz, me falam sai daqui ó velha bêbada. Bebi na tua casa? Pronto, ó chefe, vou atravessar. Se quer galinha eu vendo na estação. Me encontra lá, pergunta mamã Nacitula.

¹- Encher o recipiente de água e levá-lo, normalmente, à cabeça. A expressão deriva de acarretar.
²- Colono português.
3- Relativo ao acto de colocar-se ao sol, à semelhança do que faz o lagarto que procura pelo sol nascente.
⁴- Bebida fermentada usada no sul e sudeste.
NB: A mulher, no seu discurso vezeiro e ao vento, referia-se ao Gen. Higino Carneiro.

terça-feira, junho 08, 2021

O RIO QUE SEPARA KK DA HUILA


Agora que "as terras do fim do mundo" parecem proximas e já são apelidadas de "terras do progresso", apesar da sua enorme extensão e com alguns círculos a reclamar divisão em duas províncias, há quem olhe para a designação da província e para os marcos que lhe dão o topônimo (Kwandu-Kuvangu) e faça sair um novo grito.

"O Kuvangu (hoje pertencente à vizinha Huila) também é nosso"!
O rio Kutatu, cuja ponte se vê em primeiro plano, é hoje a divisão entre a Huila e KWANDU KUVANGU, estando o rio e município do Kuvangu integrados na Huila (pelo menos nesse extremo).
O Kutatu (comuna do Kuxi, (KK) e o Kuvangu (Huila) têm ferro em abundância.

terça-feira, junho 01, 2021

A KATOMBELA E O LOPITO QUE NEGA SER BG

 


(Ponto prévio: não gaste em vão sua pedra).

Quando me tornei homem sapiens (consciente do que há e se diz à volta de mim), município de Katombela não havia ainda.
Havia a fábrica de celulose (tintas e pepel) que estudei na terceira classe do tempo de Agostinho Neto (em termos de frequência escolar, sou de outra geração, a que apanhou ainda o modelo português mas com livros adaptados à realidade angolana). Soube também, pelos livros e contares de mais velhos, que na Katombela (estou a pronunciar) havia muita cana-de-açúcar e uma unidade transformadora. Uns diziam que "não havia macaco com estômago bastante para desafiar as bananas em Katombela". Contava-se ainda que "aquele rio era um arrasta visitantes que nele se jogassem sem permissão". É que verdade ou invencionices, os mitos e a razão andaram sempre juntos.
Por outro lado, conta-se ainda, que os "finos" lopitangas, mesmo vivendo na escarpada Kanata ou kaponte, ou Kalomanda, ou kamunda, ou "kamentira" diziam-se (parece que continuam) que "NÃO SÃO BENGUELENSES".
Mas eukiêntão?!
Sigamos: nessa "briga entre benguelenses (capitalinos) e os portenses do Lopito (passagem e não o escritor poeta) alguém foi vijunário (de vijú) e orgulhoso do brio industrial da sua Katombela e "impôs" um novo município, curto junto ao mar, mas que se estende ao interior, abraçando o Monte Belo e outras terras que separam a planície dos montes planos.
Assim, o Lopito corre para norte, ao encontro do Sumbe. O novo município katombelense enfia-se no interland, a leste, ao passo que o município "capitáa" corre para leste e sul. Pronto, está (re)contada a estória. Resta a sua atenção ao alto da Kanata, a capital periurbana do Lopito. Deleite-se com a escadaria que podia ser montada de forma anelar e com ruas entre conjuntos habitacionais. O engenho do "salve-se quem puder" colocou as habitações "uma na cabeça da outra", num manto escorregadio que se entrega fácil e afável à chuva farta da região.
Comparada a Kanata do Lopito ao Américo Boa Vida do Sumbe, só acorre uma frase: na arquitectura incomum, poeira e afobia VALISETAHÃLA!