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domingo, julho 29, 2018

AS COREIAS, A PAZ & CORAGEM IRMÃO

O mundo vem assistindo e aplaudindo, nos últimos trinta dias, a reaproximação entre as duas Coreias separadas há sessenta anos, sendo os americanos, os russos e os chineses os padrinhos do acto em que "se cortaram mô inimigo". Por mais incrível que pareça, o "puto reguila ou explosivo", da Coreia do Norte, é quem entra para a História, pois, pôde estender a mão ao vizinho e parente do Sul da península e fazer uma selfie com o "Kota bidon", dos EUA, com que se "kandandeou" na Malásia.
Enquanto isso, aqui nas  barbas da nossa Ngimbi, em Viana, André Soma, o administrador, teve de somar paciência para pôr fim ao acto de "mô inimigo" que duas comunidades,  entre Zango V e Kalumbu" decidiram "se cortar" e prolongar, 16 anos depois da "paz do Kamorteiro".
Soube pela pena da diligente directora de comunicação institucional de Viana, a intrépida Elizabeth Smith, quando em uma das saídas para falar com os munícipes, André Soma, que vem adicionando popularidade, se deparou com o que terá considerado insólito na governação da edilidade. O que mais o chamou a atenção foi o facto de haver tribalismo e divisão entre os bairros Coragem Irmão e o  da Paz.
Durante a sua visita àquela zona, conta Elizabeth, André Somou conhecimento que nenhum morador do bairro Coragem Irmão passa pelas ruas do bairro da Paz e vice-versa. Perante o que viu e ouviu, Soma não fez mais do que orientar aos residentes a pautarem por uma boa convivência e a pararem com o tribalismo, tendo mesmo posto sentados os "cabecilhas" das duas "Coreias vianenses", como quem puxa à orelha a duas crianças, e dizer-lhes que "somos um só povo e uma só nação".
Enquanto o muro de Berlim já passou à história, Cuba e Estados unidos já bebem Havana Club juntos, as Coreias já falam em "reunificar-se", depois do abraço entre o "puto reguila e o kandenge do americano" e agora a selfie entre o "puto reguila e o Kota do vizinho", ainda ouvimos na nossa Ngimbi cenas de "Irão-Iraque", faixa de Gaza-Israel ou Jamba-Luanda doutros tempos, onde a tacanhez dos que têm o povo sob seu comando faz do bairro Paz um inferno? Já imaginou ter de evitar "cortar" um bairro só porque você comprou a casa no bairro vizinho com o qual os moradores não "torram farinha"? Ainda bem que Soma é pastor e, em vez de os apresentar à justiça, decidiu perdoá-los antes, para que, de imediato, se perdoem e retomem as relações que, pela socialização humana, pertença à mesma edilidade, província e país, nunca deviam ter sido cortadas. Afinal, até as Coreias já falam de paz. Quanto mais os bairros Paz e Coragem Irmão?!

 

domingo, julho 22, 2018

A CANOA QUE SE QUER BAGRE

Reza a tradição oral entre os ambundu do Kwanza-sul, sobretudo os do "desfiladeiro Kibala" que, no tempo das caravanas do centro ao norte, os mbalundu costumavam ir ao Libolo permutar óleo por feijão e outros produtos, como também iam a Kambambi (Dondo) permutar cera. Era na Kibala, ponto de passagem e de paragem para descanso, onde trocavam mimos com os locais a quem "improperiavam" por ló ngoia (avarentos, glutões, bárbaros), dado que os Kibala não se prestavam a alimenta-los. A expressão ngoya, para quem fala Umbundu tem esse sentido pejorativo e os Kibala com juízo não perdoam esse dislate.
Porém, nos anos 80 do século passado surgiu na rádio VORGAN um programa designado "em língua ngoya" cujo orador glosava a variante Kibala do Kimbundu. Mais tarde, 1993 foi a vez da rádio Kwanza-Sul que ignorou o instituto nacional de línguas e criou o tal "programa em ngoya". A rádio Ngola Yeto seguiu o mesmo caminho, uma década depois. Daí em diante, só ngoya em todo o lado, mesmo ao arrepio da ciência e da oralidade. Sendo que quem tenha menos de quarenta anos, pode cogitar a existência no mapa etno-linguístico de Angola de um povo ngoya. É aqui que surge a "canoa que quer ser bagre".
Vinte e cinco anos. É exactamente esse o tempo em que se tenta "transformar a canoa naufragada em bagre". Ou seja, que se propaga que os povos do Kwanza-sul, com excepção dos do Seles, Kassongue e Sumbe (Ovimbundu, segundo um mapa) falam uma língua distinta do Kimbundu a que atribuem o pejorativo designativo de ngoya.
Se a existência de um programa cuja mensagem é passada no idioma que se fala na parte esverdeada do mapa foi um bom exercício, o mesmo não digo em relação à designação inventada para a língua de matriz ambundu (Kimbundu). 
Peço argumentos técnicos e científicos dos reclamantes da suposta "língua ngoya" e não os vejo/leio/oiço, com abundância e profundidade, para além de desculpas de que "...pretendem destruir um trabalho que leva duas décadas e meia..."
O programa estará aí para a "eternidade". Só a suposta "língua ngoya" é que (ainda) não existe, pois não tem nem agrement da maioria dos falantes, nem dos órgãos que tutelam as questões que têm a ver com as línguas em Angola.
É inegável o poder de persuasão da rádio, sobretudo num meio onde ela não tem a concorrência da TV e de jornais e numa sociedade que crê na rádio como se de uma fé se tratasse, sendo os radialistas "semi-deuses da verdade". A rádio e sua propaganda podem  minar mentes e levar muitas pessoas a negar a verdade em detrimento do que é muito apregoado. Pergunte-se, pois, os idosos que língua falavam antes de surgir a rádio (programa na rádio). Antes de se popularizar o termo ngoya, via rádio, que nome atribuíam à língua que sempre falaram. A resposta simples e corajosa, será, com certeza, distinta do "bagre sem vida" que se acha no fundo das águas do Longa, nyiha e Keve.

Não está em causa o idioma. É o novo nome que está em discussão.
Continuemos a discutir, com cordialidade, atacando os argumentos e não as pessoas. Para os bakongo, jamais a canoa vira bagre, por mais tempo que permaneça de baixo d'água.
Mahezu, ngana!

Texto publicado no jornal Nova Gazeta.

domingo, julho 15, 2018

SONHO DE MARINHEIRO


O desabafo bruto e cru daquele homem de meia idade tinha deixado meio mundo boquiaberto. Melhor porque foi em mar abeto. Na terra, uma tirada como aquela e saída da boca de quem saiu teria um imediato catálogo herege.

O barco em que seguiam andava à deriva havia já muitos pares de anos. Todos os avisos das cercanias e de radares externos tinham sido pura e simplesmente ignorados. Embarcações em situações análogas há muito tinham afundado ou mudado de comandante. Navio como aquele e tripulação como aquela já se contavam aos dedos de uma mão pelo mundo oceânico, onde os ventos turbulentos coligavam com os tubarões de todos os dia.
Martins, o homem do desabafo, era marinheiro há já três décadas. O seu apego pelo mar é natural. Nasceu à beira duma ria e cedo seus pais se mudaram para uma ilhota do Índico, até que, numa noite de poucas estrelas, o mar rugiu e fez juntar as águas de todos os lados. A casota de palhas de palmeiras e mafumeiras foi abraçada pela água furiosa. Martins perdeu o irmão das brincadeiras e a mãe dos fervidos e assados. Viu-se apenas ele e o pai flutuando sobre o mar deserto, apoiados em velhos destroços duma antiga piroga.
- Papá, o mar atingiu-nos. – Disse Martins tão logo se deu conta da situação calamitosa em que se encontravam.
- Sim meu filho. O mar atingiu indelevelmente nossas vidas. Comparado a isso foi apenas o fascismo do início do século. - Respondeu José, o pai.

Vivia-se o século vinte. Bem no começo da segunda metade. Os náufragos lutaram contra as águas raivosas e o vento furioso e um sol assador, até que ao cabo de sete horas sobre aquele dilúvio fizeram-se à terra firme. Eram heróis aos olhos do povo que perfilava a costa e que já tinha preparado oferendas à Kianda, mãe de todas as sereias  daquele mar agitado.  Era a forma habitual de impedir que mais mortes acontecessem.
Lukinda, de seu nome de nascimento, viu-se apelidado por Martins, uma corruptela de “mar tingiu-nos”. E assim ficou conhecido e reconhecido agora como marinheiro de incontáveis milhas.

O navio já levava anos à deriva no Índico. Martins era capitão. O comandante era Sam Téh. Homem hábil nos tempos que já lá se foram, mas que se apresenta agora com o cérebro calvo e fragilizada pelas calemas que sempre o apoquentaram durante os dois séculos cruzados pela sua vida. Embora Martins fosse pessoa influente e homem de argumentos que incentivavam os co-viajantes a se manterem no barco até às últimas calemas, era Sam Téh que tomava as decisões e a quem todos deviam obediência.
Sam era duma crueldade que alimentava os tubarões com os seus marinheiros revoltosos. Em terra firme a capitania já o teria apeado do leme. Mas em alto mar, e com o navio sem bússola e sem terra à vita, a ninguém mais Sam prestava atenção senão ao seu próprio ego. E não foram poucos os capitães promovidos e despromovidos por erros do Comandante mas sempre imputados a Martins e pares.
Na sua vida de marinheiro, Martins já fora herói e vilão. Soube sempre coabitar com o mel e fel naquele navio. Em tempos de bom vento, fora inclusive elevado à categoria de Vice-Comandante. Foi descendo, descendo, devagar, devagarinho até se deparar com a condição de simples passageiros. Era isso que não entendia por mais esforço que fizesse.
- Está difícil manter o Estado neste barco. – Desabafou Martins perante a multidão que planejava a destituição do Comandante e encontrar um comandante que os levasse a porto algum.
- Mas ó camarada Martins, você não faz parte da tripulação? - Questionou  Taci, um crónico insatisfeito.
- Não meu senhor. Já fiz o que pude fazer enquanto achei que alguma terra nos pudesse acolher. Com o actual estado de coisas, tudo o que pretendo é que passe por cá um barco ou helicóptero que nos socorra e nos salve desta aventura samtsetiana, disse entre dentes, antes de se retirar.
Mal tinha colocado o pé na porta do seu aposento, o seu desabafo já se tinha convertido em assunto para reflexão e debate.
Primeiro perguntou-se a autoria do seu nome e depois o significado daquele “está difícil manter o Estado neste barco”. Ninguém conseguia perceber o alcance daquelas palavras tão simples quanto profundas como o Índico que os mantinha cativos entre a vida e a morte.
Sá Lutenda, um vidente, sabia do que lhes esperava. Sabia também que caminhos tinha trilhado Martins e que ideias lhe invadiam a alma. Mas não o disse de imediato. Deixou que a discussão atingisse o auge.
- Eu sou contra o Martins e deve ser levado à razão. – Defendiam os aduladores do Comandante.
- Acho que o Martins está cheio de razão. Embora ache que não seja ele a quem de deva confiar o comando do Navio é importante que se dê oportunidade a pessoas do mar ou que ,no mínimo, se deixe os marinheiros trocar ideias. - Defendeu Lamba, o mais idoso da tripulação.
Lamba, talvez devido ao peso dos seus anos, costuma dizer que já foi árvore, já foi lenha, já foi carvão e agora é cinza. Diz as coisas sem peneira e de acordo ao seu conhecimento e experiência. Goza por isso de aceitação e é reconhecido como grande marinheiro, embora nunca tenha chegado ao leme.
- O mar é complexo e cada um tem uma experiência que pode ser partilhada. - Continuou Lamba que foi molhado com assobios elogiosos.
 - Mas, ó kota Lamba, você que tem mais idade do que este navio, você que conhece todos os comandantes, capitães e marinheiros, pode nos explicar quem na verdade é o Martins? - Questionou Lunga Mana, o mais jovem dos passageiros.
- Olha, meu jovem marujo, podes anotar na tua caderneta mental. O chefe Martins é um homem que já esteve próximo daquele leme. Alguém que já fez muito para que o navio continuasse flutuante, embora à deriva. Martins é um jovem que entrou no navio cheio de vida como tu. Que foi subindo e acertando as velas ou colocando lenha na caldeira. Já puxou demasiado cabo e descamou demasiado peixe até chegar à direita do Comandante. Também desencalhou o navio por diversas vezes. E por diversas vezes prejudicou a si e aos seus para manter a reputação do Comandante que, apesar de tudo… - Lamba puxou da mutopha carregada de kangonha de Kalandula para pôr mais ar no peito que já lhe ia rareando vezes sim, vezes sempre. E continuou: - O Martins é um homem que se deu conta que a seguir o Comandante como às vezes se segue, aplaudindo e remendando os seus erros de miopia, morremos todos e ninguém encontrará sequer os destroços da embarcação.
Mais palavras não houve. Apenas um forte ruído motivado pelo casamento entre o mar, o navio e a rocha. Bummmmmm!!!!
O choque do incauto motorista de Hiace contra uma árvore que repousava já meio século no passeio da rua da Missão, acordou Benedito que seguia embalado no seu sonho de marinheiro.
Publicado pelo Jornal de Angola, caderno Fim-de-semana, de 8/4/18, pg.10.

sexta-feira, julho 13, 2018

ALUGA-CÊ CAZA DE CUARTO E SALA


Epá! No Cazenga, no Palanca e, sobretudo, na Vila da Mata e arredores são só lamentos e choros mesmo de babar ranho.
- Roubaram a nossa filda, que sempre foi nossa desde o tempo colonial, tempo de Agostinho Neto, tempo de José Eduardo e até tempo das rusgas dos PCU e ST, de cavalo e chicote na mão, a endireitar "bicha" de visitantes, de biscateiros e de carteiristas. As casas ficaram, sem portas nem janelas, mas a filda andou. - Choram.
As moças, bonitas de ocasião e de um Português que denuncia o lápis desafiado, ficaram penduradas.
- Quem qui vá nos dá dinhero pá matabichá? Quem? Nossos portuga lhis levaram longe porcá di quê?
Mano Rafael, força de elefante, conhecido na rua da conduta como "Faz Tudo", tinha já o seu kangulu preparado, desde que ouviu o anúncio na radio "filda começa dia dez e acaba sábado, catorze". Na sua cadeira de fitas, à moda 80, pensou:
- Desde que Luanda é Luanda, toda a filda é no mesmo local.- Oleou o eixo, depreende os músculos e os preparou para a labuta vizinha.
Aliás, para ele e para muitos, FILDA é local, tal como esteve grafado até há bem pouco tempo nas instalações que se enfiam entre a frescangol e a BCA, deixando infiltrar-se no meio a Deolinda Rodrigues de Catete. Filda noutro lugar que não seja no da FILDA é impensável em muitas cabeças.
Faz Tudo, "pensamentoso", não sabe se vende a casa na Vila da Mata, para arrendar outra nas proximidades da Zona Económica Especial ou se deixa o ofício de biscateiro.
- E, se ano que vem, o Estado decide levar a feira para outro lugar, a pessoa fica gira-bairro por causa do biscate de uma semana?
Na sentada com Mangololo, outro kipá dele das couboiadas, a conversa ficou a rolar meia hora, parecia disco riscado de sungura antiga. Mangololo era pela mudança imediata do bairro e seguir a exposição. Argumentava que em uma semana o biscate na Filda dava mais dinheiro do que onze meses.
Faz Tudo, a pensar pensamento de homem, não se deixou dobrar pelo argumento simplista do amigo.
- Esse Estado é "fodido". Assim que lhe aborreceram aqui na FILDA, com o roubo e desmantelamento de quase tudo que o colono deixou, se lhe aquecem a cabeça, lá na Zona Económica, pode levar a exposição para Catete ou Funda. Assim a pessoa fica andar à toa nos mabululo onde não há biscate nem de desentupir fossa ou consertar fogão?
Foi isso que o travou, mas o amigo dele, Mangololo, já tinha colado papel quadriculado na porta do chimbeco e forçado Minga dya Mbaxi, a mulher, e os twana a arrumar as imbamba.
 - Aluga-cê essa caza de cuarto e sala. - Lia-se a bom rir dos mizangala mais acanetados da Vila da Mata.
- Ó ti Mangololo, alugar não é com cê de cebola, é com esse de sapato, depois de aluga. - Tentou emendar a sobrinha Kabwiza que estudava a terceira classe na explicação do Tony Mulato.
-Cala-te boca, mijona. Quando entrei na escola nem a burra da tua mãe tinham lhe engravidado, pá. Se as pessoas estão a perguntar preço é porque leram e entenderam. Você, tua casa está aonde, pá. Vai só mazé me comprá cigarro e não me mete mais atrapalhação nas ideias. - Resmungou malicioso.
Ele, mano Rafael Barata, homem alheio de Malanje, foi a casa dele de sofrimento que o prendeu. Decidiu consertar sapatos até que a filda volte à FILDA. Quem sabe um dia?!


Publicado no Jornal de Angola de 05.08.2018

sábado, julho 07, 2018

A ÁGUA DA INDEPENDÊNCIA

Noutros tempos, naqueles idos em que a empresa de captação, tratamento e distribuição mais prometia do que fazia, houve uma semana em que os arredores do Largo da Independência ficaram literalmente secos. Só poeira. Parecia a Namíbia em tempo de estiagem. Faltou água para a rega, para a limpeza dos lares e dia carros e, por pouco, faltaria para o estômago. Os repuxos juntos à estátua do Kilamba ainda funcionavam e os vijús lavadores de carros encontraram ali uma oportunidade para continuar o seu negócio acrescido de um apelo especulativo:
"Kota, água está difícil, mil não vai dar".
Foi semana e meia a acarretar com baldes, bacias e latas, até que os tanques secaram. Foram outros tempos e, por isso, outros factos. Hoje, talvez porque quem capta e distribui a água fá-lo com regularidade, a boca de chegada nunca se desliga. Jorra que jorra, fazendo os mesmos lavadores e outros frequentadores das cercanias apelidaram o "rio" que se faz todos os dias e todas as horas ao asfalto de "água da independência".
Os repuxos, na verdade, já não funcionam mais. Extinguiu-se a beleza provocada pelo efeito da água bombeada verticalmente, caindo prazerosa para o arco-íris. Já lá não facturam os fotógrafos. Já lá não se dirigem os noivos, nem os namorados frequentam os acentos imitando poesia lírica de Neto. Os buquês deixaram de entrar. Apenas os manifestantes e revús levam ao Kilamba as suas súplicas.
A água jorra sem cessar. Os tanques gritam uma secura sem par. O asfalto molhado e inundado já chama buracos apressados. E o nosso Kilamba, ali em pé, a olhar Angola, apelando à união, mas também à acção. Ouço-o silencioso a gritar, já sem voz, "coloque cada um, um pedaço de pedra nesse alicerce para que mereça o seu pedaço de pão". Quem deve reparar aqueles repuxos é que ainda não o ouviu. A água (no monumento a Neto, no Largo) da independência deve ter fim.

Texto publicado pelo jornal Nova Gazeta em Julho/2018

domingo, julho 01, 2018

MANGODINHO NA NGELÉ

Os desistentes, os faltosos e os trancadores de frequência

Mangodinho, crente de sua igreja desde pequeno, dez anos acabados de fazer, naquele ano que precedeu o centenário do "nossa igreja come mbora cem anos sem parar", há bons meses que não pisava o pé no templo, embora se considere e se gabe a todos os ventos "crente confesso". Em andanças profissionais, cruzou com Adão Kalongo de quem recebeu crítica aberta e construtiva de um amigo e coetâneo, embora frequentando outra "paróquia", queixando-se de suas ausências prolongadas aos cultos. Para persuadir o amigo, Adão  exemplificou um caso de "alguém que trocou de confissão religiosa, já em fase avançada de idade, sendo que no funeral apareceram menos de vinte pessoas".
- Já viste, Mangodinho? - Prosseguiu Adão. - Os amigos, contemporâneos e tudo, na igreja, também contam. Se ele não tivesse desistido, teria recebido toda a graça no último dia. Pensa bem.
- Compadre, não sou desistente. Apenas faltoso. Tu que és professor, analisa bem a situação do desiste que pode ou não procurar "outra escola" e do faltoso que tem direito a exame especial ou recurso. Eu nunca saí e jamais sairei. - Defendeu-se prometendo que seria visto no domingo que vem.
Sete dias depois realizou a promessa. Prometido e feito. Mangodinho, para não dar nas vistas e evitar saudações com sabor a cobranças, preferiu o penúltimo banco. Penúltimo porque nem o antepenúltimo e nem o último estavam ocupados. Apenas seria visto na hora do ofertório e de saída.
- Se o indivíduo vem é destaque. Se não vem também é notícia. É preciso ficar na penumbra e executar a retirada estratégica, sem dar nas vistas. Eles vão comentar. Depois tudo se ajusta, naturalmente. Aqui é como nos óbitos, o indivíduo não anuncia que vai. Ao sair também não precisa despedir. - Monologou.
Mas quando fazia a última curva, já hora de saída, as atenções estavam voltadas para ele. Fora, em tempos ainda de juventude plena, um dos incontornáveis daquele templo.
- Irmão Mangodinho, boa tarde e bom regresso à sua casa. Por ventura, veio visitar-nos ou veio, desta vez, para ficar? - Indagou irónico um coetâneo de boa amizade mas de poucos reencontros.
- Boa tarde irmão Noé. Nunca desisti. Pense nas quatro condições de estudantes que temos: o que frequenta assídua e pontualmente as aulas, o faltoso intermitente, o desistente que já não virá mais e aquele que trancou a matrícula. Eu, irmão Noé, nunca desisti. Tenho direito a recurso e exame especial!- Defendeu-se argucioso.
Noé, ainda a pensar no que acabara de ouvir, puxou os olhos para outro lugar, momento que o irmão Godinho aproveitou, com destreza, para pôr o ngimbu e o pé a fazerem parelha.

Publicado na edição de 31/05/2018 do jornal Nova Gazeta