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quinta-feira, março 29, 2018

NDENDE JA MBALA

O camião apinhado ia cansado e a resmungar. Coisas e gentes sufocavam o no seu dorso. Tábuas velhas e cansadas, feros retorcidos enfeitando taipais que acolhiam peixe salgado, macroeira, balões de fardo, idosos que pareciam fardos e crianças com nudez farta. Os jovens e adolescentes iam igualmente. Porém, eram poucos. Apenas os mais destemidos. A última idosa a apanhar o camião levava coisas suas. Umas kindas e linhas para tricotar balaios e outras cestarias. Levava ainda um cacho de dendém que era alheio.
Na última subida, 10% de declive, seguida de duas curvas perigosas, local incontornável da EN 180, onde a velocidade nunca passava os dez quilómetros a hora. Ali mesmo, na esquina que beijava o rio, os homens da farda verde-oliva apertada à exaustão, montaram o seu posto de controlo. Paragem obrigatória e sem falatórios.
O camião que já ia lento soluçou antes de o ajudante calçar sobre uma das rodas traseiras um valente pedaço de madeira. Um dos homens fardados subiu à carroceria, barba e cabelos fartos. Pente e tesoura parecia não haver. As verdinhas calças quase se desmanchavam dado o esforço do militar.
- Ndendefica. -Disse ele à "floresta" no camião.
Enquanto uns, conformados com a sorte, sacudiam as algibeiras e as sacolas para retirar e apresentar os documentos, a velhota sentada por cima das suas bikwatas, soltou um valente e malicioso muxoxu.
- Hum, ndangala jê. Ndende ja mbala (é dendém alheio)!
Terá entendido que o cacho de dendém ficaria naquele posto militar.

Texto publicado no jornal Nova Gazeta de 12/10/2017

domingo, março 25, 2018

ENE AKWETU, KALUNGI

Mangodinho, há semana e meia que estava dividido entre desenvolver novas ideias e materializar o que havia planificado fazer depois que regressou de curta estada em terra dos dâmaras.
- Pensar e não fazer é o mesmo que não pensar. As pessoas querem mudanças, querem movimento, querem pragmatismo, acção prática e nada de simples retórica. Estão fartas de simples elementos em potência. - Argumentou em surdina.
Porém, uma nova deslocação para a rainbow nation fê-lo, de novo, voltar às analogias e novos pensamentos. Em cada espanto, positivo ou negativo, regressa à banda e faz comparação. Foi assim quando viu um bangoso turista que calçava límpidos "londindi". Assim também foi ao avistar uns guetos de JoBo, que vistos a mais de quinhentos metros de altitude se pareciam ao nosso Ngwanyá ou Fubú.
- Epá, aqui também há resquícios da segregação. - Disse, a olhar para Soma Kevela com quem divida acentos no pássaro de metal.
- Sim, companheiro. Ainda têm uns guetos é sempre tiveram. Mais ontem do que hoje. Mas eles têm água e luz e até números nas portas. - Explicou Kevela, o resiliente.
Postos no hub de JoBo, Mangodinho, pensamento só no NAIL que se quer semelhante ao Oliver Tambo Air Port, aonde convergem várias rotas africanas, asiáticas, europeias e americanas.
- E fizeram-no aqui fora da capital Pretória? Ai se fôssemos nós! E se o NAIL fosse no Huambo, Katumbela ou Lubango?
As perguntas continuaram. Umas oralizadas outras apenas "no coração". Conteve-se. Até porque Kevela estava a ler a revista Sawubona que ele, Mangodinho, traduziu automaticamente para "Kalungi", o mesmo que "Olá-como-está" dos tugas bem dispostos. Ficou a exercitar os seus vastos conhecimentos linguísticos bantu e fez uma lista de saudações-tipo a que pretende sugerir a comunicadores institucionais da Ngimbi para suas revistas.
- São ideias. Apenas ideias que valem o que não valem. Mas, Menekenu do Ucokwe e Kalungi do Umbundu são já meus títulos de revistas e faço o registo imediato logo que chegue. - Verbalizou de forma audível, mesmo não tendo companhia no monólogo. Ainda há mais horas por voar até ao destino. Entre trepidações da máquina "arrastada" pelas correntes densas do Índico-Atlântico, Mangodinho pergunta-responde, como se saúda e se retribui.
-Kalungi?
- Kuku!

Publicado no jornal Nova Gazeta a 08 de Fevereiro e 10.05 de 2018

quarta-feira, março 21, 2018

MANGODINHO NA FILA DOS POEMAS

 
Visionário de aldeia é visionário e mais nada. É único e conhecido de todos. Qualquer mestre  é mestre no seu ofício, sendo, por isso, respeitado e solicitado em tempo próprio. O circuncisador, no kasimbu, anda de aldeola em aldeola, tratando da transição à vida posterior dos infantes. O pedreiro é o grande mestre do tempo seco, antes da chegada da chuvada seguinte, fazendo crescer as aldeias com adobes, massa crua de barro, fio e prumo. O professor, mestre do ABCD e da desvenda contra a ignorância, percorre quilómetros até atingir a escola que, muitas vezes, fica na aldeola central que recebe alunos e alunas de várias aldeolas cincunvizinhas. O enfermeiro é um "doutor da injecção" e recebe pacientes de vários aglomerados populacionais. O catequista é um andrajoso, pregando e evangelizando velhas e novas ovelhas do seu rebanho. Ao comerciante acorrem vários utentes/compradores e vendedores disso e daquilo, procedentes de aldeias de distâncias inimagináveis a um kalwanda. O poeta é também filósofo, como na Heleiâda ou Roma antiga.
Em comunidades pequenas os iluminados contam-se aos dedos pela região.
No mato, Mangodinho é Kilamba de verdade. Um poeta de fina flor. Tudo o que fala, mesmo quando bebeu canecas, é aplaudido. Os miúdos que andam já a estudar poesia com rima e métrica na sétima classe da escola do povo dizem que Mangodinho é bom poeta. E foi nesse convencimento de matuense que, posto na Ngimbi, ouviu  na rádio do Estado que o cidadão Ismael, aquele que anda a defender "autarquias já", ia lançar um poemário de verdade.
Miúdo Sembe que foi com ele, a pensar que a poesia natural de Mangodinho é igual à poesia artística dos escritores das capitais (municipais, provinciais e nacional) também agitou Mangodinho para ir declamar no Tropical onde estariam os homens de verbo escorreito e linguagem retocada da grande capital.
- Vai Kota Mangodinho. Se ele é teu guia, tua candeia, teu admirado benquisto, promotor das autarquias que muito desejosamente esperas, vai também. Pede para declamar com aqueles Kilamba da Ngimbi cheios de nganza, fato e gravata e muita garganta. Garganta e pausa, Mangodinho, você tem de sobram vai. Vai ser desta vez que Luanda se vai abrir completamente aos teus pés e, em vez de te autarcares no Libolo, eles te edilam já mesmo aqui. Estamos na claque.
Assim mesmo, Mangodinho se inscreveu. Aliás, pediu ao puto Sembe, aquele que enviou à Huíla para se formar em enfermagem, para inscrevê-lo via Facebook. Só que, quando descobriu a conta do cidadão Ismael, a bicha (fila) era enorme. Afinal, os mwadyés da Ngimbi ainda não aposentaram o hábito deles antigo de madrugar nas filas de tudo que seja bom.
Mangodinho volta ao seu Libolo sem declamar?
A ver vamos!


Publicado pelo caderno fim-de-semana do Jornal de Angola, pg 10, edi. 15.04.2018

domingo, março 18, 2018

A MISSÃO CIVILIZADORA METODISTA EM CAXICANE


Frequentado o espaço e recuando no tempo, as conclusões, depois de visitas à memória, não são demoradas.
Quem vai a CAXICANE vê o delta do rio Kwanza, todo ele comprido, curvilíneo, majestoso e preguiçoso, e casotas que se escondem sobre o arvoredo ribeirinho. Encara ainda uma picada tangencial ao rio, inacessível no tempo chuvoso e que terá sido pior no início  do século XX, quando Agostinho Neto nasceu (Setembro de 1922) e seu pai Rev° Pedro Neto  pastoreava a igreja metodista local. Encontramos povos agricultores e pescadores espalhados pela planície longa e húmida que podiam "professar", para além do Nzambi, outras divindades ligadas à fertilidade do solo, à chuva e às enchentes que, anos sim, anos não,  visitam furiosas os campos e as habitações de pau-a-pique daquelas região.


Ruínas da casa pastoral da Igreja Metodista de Caxicane
E foi nesse cenário que a caravana metodista, procedente dos Estados Unidos da América, Marco de 1985, que trafegava sobre o Kwanza implantou a Igreja Metodista de CAXICANE, no Icolo e Bengo. Era preciso destapar as vendas, fazer daqueles povos cidadãos do mundo, conhecendo a sua cultura e geografia e descodificando o alfabeto para descobrirem que "havia mais muindo do que o horizonte de seus olhos" e tomarem conhecimento do que os outros povos haviam já inventado e comunicarem eficazmente com o passado e o futuro. E Pedro Neto, pastor ainda jovem, foi mandado ao local para dirigir a Igreja de Cristo imbuída da sua missão CIVILIZADORA, ensinando as crianças a ler e escrever e os adultos a conhecer a Deus único, verdadeiro e poderoso, sobre o qual gravita todo o ser, pensar e estar. Os bons costumes como a poupança, a monogamia, o desapego às práticas místicas e inibição da bebedice foram e ainda são outras das lições que os metodistas ensinam e conservam.
Quem vai a CAXICANE logo conclui que não podia ser outro o caminho. Apenas o Kwanza. Tal é a proximidade entre a igreja (a primeira já sem sinais, a segunda em ruínas e a terceira feita de blocos de cimento) e o rio, separada apenas por parcos quinze metros do leito, sendo que "quando as pessoas não falam é o Kwanza que conta estórias". E o mesmo Kwanza, bi-lateral, teria no seu silêncio milenar, apadrinhando o surgimento de outras "missões protestantes" no seu outro lado, o direito: Kisama, Lubolu, e terras além mar...

Texto publicado pelo jornal Nova Gazeta a 05/10/2017

quinta-feira, março 15, 2018

AS COMPRAS, O TIO E O FEITIÇO

Discutia-se algures, no nordeste angolano. Dois amigos. Um citadino e outro cujas vivências se restringiam àquilo que o seu horizonte visual permitia ver entre o nascer e morrer do sol.
Mulelenu e Mwecenu eram porém coetâneos e com os dez primeiros anos de vida feitos em comum: caçadas, armadilhas para todos os animais menores, pescarias, iniciação em trabalho com a madeira, ferro e até cestaria e olaria, ofícios que aprenderam antes da mukanda (escola de iniciação masculina) e que aperfeiçoaram nela e depois dela. Os mores, as tradições, os ritos, os contos, os temores aos mais velhos, ao tio, a valentia perante os perigos na selva, tudo isso foram lições aprendidas até que a cidade chamou Mulelenu que foi viver com um tio.
Tempos depois se reencontraram. Mwecenu parecendo mais velho do que Mulelenu, agruras da vida no campo. Mulelenu parecendo um infante, instalado no seu jeep todo-o-terreno. Viram-se e se abraçaram. Ali mesmo, sem mais demora, aliás, depois de Mwecenu ter tragado o pão com chouriço e bebido a cerveja que o amigo lhe oferecerá, começaram as perguntas.
- Sepha (amigo), você não têm medo de tio?
- Medo de tio? Como assim?
- Vocês que vivem nas cidades esqueceram as nossas vivências. Já te esqueceste que tio te pode vender?
- Sim. Isso nos ensinaram quando éramos crianças. Mas vendas de sobrinhos já terminaram há mais de um século, ou seja, cem anos. Tu ainda pensas assim? Apressa-te. Estás parado no tempo.
- Ai é? Eu que te quero ajudar a abrir o olho é que estou parado só porque você está a andar no carro e eu a pé? Já deste mota ou kinga (bicicleta) ao tio daqui?
- Olha, Mwecenu, para mim essas coisas ficaram no passado, são estórias para ensinar as crianças a reverenciar os mais velhos e especialmente os tios. Nada mais do que isso.
- Ó rapaz, você conhece botânica? Os tios todos têm botânica (feitiço). Se os tios de Luanda já não vendem os sobrinhos é porque têm possibilidades. Os do mato te põem mesmo na botânica, não brinca meu irmão. Não passa a vir só com as mãos a abanar. Se compras moto, primeiro dá uma longa ao tio. Se compras carro primeiro uma moto ao tio. Se compras casa boa, manda umas chapas de zinco ao tio. Assim, se ele te manda vender na botânica, o teu espírito fica protegido (coberto de razão) e nada te acontece. Os espíritos lá nos céus te defendem e o próprio teu tio ou filho dele que que entra em desgraça porque a tua parte foi feita com antecedência.
Mulelenu, mão no queixo, a ouvir o amigo de infância a discorrer conversas que, para ele, são para boi roncar, preferiu deixá-lo exorcizar todos os seus temores.
- Terminaste, Mwecenu?
- Sim. Até aqui, esse kabucado, já depois vou te explicar outras coisas porque tu és meu amigo desde há muito tempo. É para teres sempre cuidado que aqui o feitiço é mais forte do que a bala de uma arma.
- Pois é. Agradeço-te pelo facto de teres conservado todos esses valores. São eles que regulam a vida aqui na aldeia. Que fazem com que os jovens depois de se "palharem" não vilipendiem os mais velhos. Mas repito é tudo conversa da treta. Tens problema com o vizinho? Vai à polícia. Tens dinheiro, investe em coisas que ajudam a comunidade. Compra mota, compra boi, compra carro, constrói boa casa. Hoje já não herdas do tio nem ele te vende em lado sítio nenhum. E se tens tempo para estudar, estuda um pouco abre os olhos. O mundo está a avançar rápido. Hoje o neto do branco que comprava escravos e neto do antigo escravo comem à mesma mesa. Feitiço é atraso.
Mwecenu acenou a cabeça em jeito de aprovação mas não o confirmou oralmente. Continuou pensativo. Deu apenas um abraço ao seu amigo da cidade e ambos continuaram, já em surdina, a reflexão sobre o que deve ser mantido e o que deve ser extirpado dos contos e lendas do antigamente.

Publicado pelo Jornal de Angola, de 15/03/2018

quinta-feira, março 08, 2018

A ALDEIA DA JUVENTUDE

O tempo histórico é incógnito. Apenas os dizeres que viajam de geração em geração dão ideia de que não terá sido na antiguidade clássica. E conta-se que num plateau, também esquecido dessa imensa Angola, vivia uma enorme comunidade. Homens novos e homens velhos se destacavam nos trabalhos que consistiam em agricultura, pesca, caça e recolecção.
Inicialmente, os mais novos, dada a sua robustez física, executavam as mais penosas tarefas, enquanto aos idosos recaia a tarefa de ensinar e coordenar todas as actividades socio-culturais e afins.
A investigação e a implementação de novas tecnologias eram também tarefas confiadas aos mais novos, chegando, muitos deles, a envaidecer-se e desrespeitar os seus pais e avós a quem tratavam por "caducos".
Certo dia, um grupo de jovens petulantes chegou a propor a separação da aldeia, construindo, num campo que distava dois quilómetros, a aldeia dos jovens que procuravam "libertar-se" da "escuridão" a que diziam estar os velhos votados. Na verdade, a intenção maior era ver a aldeia de Kitumbulu "um lar de idosos carentes e pedintes".
A nova aldeia, designada Light Youth City foi erguida em tempo recorde. Entre os jovens abundavam arquitectos, engenheiros civis, tecnólogos, informáticos, autómatos, entre outras ciências modernas daquele tempo.
Erguida em zona plana de uma montanha, a iluminação fotovoltaica fazia dela um esplendor. Uns tratavam-na de "cidade celestial", pois havia quase tudo e consumiu apenas meio ano.
Chegou o kasimbu, tempo seco e de caça. Os armazéns de víveres estavam vazios e era preciso pescar e caçar. As mulheres, belas e modernas já não se contentavam apenas com a cidade. Algumas furavam o combinado que era "não se deslocar á aldeia de Kitumbulu onde ficaram os velhos até que se rendessem e se mostrassem abertos às estravagâncias juvenis". Porém, saudade e fome quando se casam, a lei evapora. Sorrateiramente, uma e outra iam visitar os pais e pedir o que comer.
Lá, em Kitumbulu, mesmo com suas forças diminutas e seus meios artesanais e rudimentares, a pesca e a caça nunca foi problema. A fartura apossou-se das casas e os velhos e velhas doutro tempo pareciam mais jovens que seus filhos desertores que padeciam de fome e má nutrição.
Aflitos, os habitantes da Light Youth City tiveram de reunir-se e nomear uma embaixada que foi se desculpar aos idosos e solicitar que os ensinassem a pescar em lagoas e pântanos e a caçar com artefactos rudimentares entre o capinzal ribeirinho.
Valeu-lhes o facto de "o amor paternal ser imensurável e inesgotável". Foram tolerados e instruídos. Mas, em contrapartida, cada filho teve de levar os seus pais para a nova cidade.

Texto publicado no Jornal Cultura de 05 Nov. 17, pg. 11
                                  Jornal de Angola 18 Dez. 2022

quinta-feira, março 01, 2018

CONTRATOS RENDEIROS NA VOZ DE KILOMBU KITINU*

A abolição internacional da escravatura aconteceu no sec. XIX (1883) mas a sua materialização efectiva levou décadas, para não dizer século. Porém, os detentores de escravos e aqueles que faziam da captura/compra, utilização doméstica e venda de "peças humanas" o seu negócio procuraram diversas artimanhas para fazer dos homens nessa condição meros objectos.
Ou se mudavam as totas do Atlântico para o Indico ou se praticava a escravatura (depois com outras faces) no território nativo.
Kilombo Kitinu, filha de regedor e neta de ex-proprietários de "mabika" (escravos) conta, aos setenta anos, que "meus bisavós Mungongo e Kaphote Kasenda, todos da região de Kindongo/Kisama, eram detentores de mabika que depois de alforriados, 'quando chegou a ordem', tornaram-se parentes".
Quando comecei a trabalhar na "renda" ainda adolescente, às vezes não percebia o tratamento que me era dado, explica. Recebiam-me como rainha (embora o fosse) e estendiam panos onde me sentava. Só mais tarde me fui apercebendo que era a forma grata como os ex-mabika tratavam os antigos proprietários ou seus descendentes conhecidos que os haviam tratado com dignidade.
Mas de descendente de "esclavagistas", Kilombo Kitinu também experimentaria o fel da escravidão camuflada em pseudo contratos rendeiros, onde crianças e adolescentes não eram poupadas na abertura de vias rodoviárias, apanha de café, processamento de tabaco, limpeza de capoeiras, entre outros trabalhos.
Como a máquina funcionava?
Os colonos recém-chegados, fossem portugueses ou alemães, iam ao posto administrativo requisitar "pretos para trabalhar", não se seleccionando a idade. O posto administrativo obrigava o soba a mandar ao "contrato" os seus aldeões e, nessa difícil tarefa, não podia excluir seus filhos e sobrinhos. Foi assim que ela, filha de regedor de Kuteka, também frequentou as fazendas do Prata, Kabumbulu, Ngana Mbundu, Senhora Kasenda, Conde, entre outras como "trabalhadora rendeira".
Terminado o período de um ou mais meses, outros eram "recrutados" para render os outros. Por isso, a oralidade conserva o termo "renda" para designar esse tipo de trabalho semi-escravo que se desenvolveu até à segunda metade do Sec. XX, antes da independência em Angola.
Kilombo Kitinu recua no tempo e estabelece um marco:
- Quando se abriu manualmente a picada de Kawayawasa, para o alemão Ngana Mbundu (Walter Kruk), foi quando nascemos. Aí chegou a ordem para o fim da escravatura. As pessoas que trabalhavam na abertura manual da picada  tinham as mãos rebentadas (calejadas e feridas). Entrou depois a renda. As nossas chinelas eram de pele de cabra. A todas as pessoas, os brancos chamavam apenas por ó preto! E os negros respondiam patrão! Nesses trabalhos, as meninas ficavam, às vezes, duas semanas que eram remuneradas com pouco dinheiro. Só chegava para comprar um par de brincos ou missangas para mãe, pano e sabão para a trabalhadora.
Narrou ainda que entre os seus parentes directos, duas pessoas se destacaram na fazenda da alemã conhecida por Senhora Kasenda (os nativos atribuíam outros nomes mais familiares aos europeus). Eram o mano Doce (cozinheiro) e o papá Kabota (capataz). Esses viviam lá no acampamento com suas famílias e só iam à aldeia de Mbangu-Kuteka visitar os parentes. Falavam a língua dos alemães e as suas mulheres e filhos vestiam-se bem. 
Do outro lado do rio Longa, território de Dala Kaxibo, também havia alemães. Kilombo Kitinu citou Kabumbulu e Kilenge (nomes atribuídos pelos nativos). 
De recordação em recordação, "viajou" por Kixinje, território da Kisama, onde, ainda garota, trabalhou na abertura da picada que termina em Kandanji (margem do rio Kwanza, junto ao Dondo). 
- As mulheres também abriam picadas com enxadas...

*Maria Canhanga

Texto publicado no Jornal Cultura, Janeiro 2018