Enhãnla, Estado
ribeirinho, cercado pelo reino de Kamunda, é um território do continente Acirfa
de Júpiter. O povo de Enhãnla, modesto nas posses e excessivo na ostentação,
vive de pequenos plantios nos seus solos ricamente abençoados e cravados por ribeiros
caudalosos e de águas lúcidas que permanecem durante as duas estações do ano
jupteriano. A indústria, ainda nascente, se reporta à abundante mineração
carboniana, material pedregoso, ouro e outros que enfeitam as lendas que trespassam
gerações e gerações sem nunca os habitantes aplicarem a força dos cérebros e
das máquinas ao solo cravejado de riquezas improvadas e incalculadas.
Próximo de Enhãnla,
no reino da Kamunda, vivia um rei, já velho e de respeito incomensurável, Ngan’Ebata,
o Senhor da Casa ou Senhor do território, cujo poder, às vezes, escapava as
suas fronteiras e adentrava a Enhãnla do presidente Ndvumba, ainda jovem e muito apegado às civilizações terrenas, um
planeta com o qual a Enhãnla pleiteava a órbitra solar. Na Kamunda, território
que aos olhos dos seus habitantes parecia sem fim, o povo era monoteísta.
Ngan’Ebata era a razão de ser e o fim último dos seus súbditos que o adoravam
de sol em sol e de chuva em chuva. Os agnósticos e hereges há muito tinham sido
convidados a abandonar o reino ou se refugiado voluntariamente na Enhãnla para
escapar da espada vermelha do rei-deus do território maior de Acirfa que se
preparava para liderar um único Estado-Continente de Júpiter.
Ainda na Kamunda, as
artes haviam sido divididas entre maiores e menores, com primazia às vocais por
serem as que melhor deificavam o rei-deus. Os desportos cantavam a sua glória e
até o que restava das três mais antigas organizações sociais curvava-se aos pés
de Ngan’Ebata, também cognominado de “O Senhor do Poder sem medida e sem fim“.
- Ao rei toda a
glória. A mim todo o respeito! – Apregoava nas suas homilias, Ngan’Ebata, nos
eventos que os súbditos organizavam em sua homenagem em seus sumptuosos
castelos e palácios ou quando se fazia circular nas suas riquíssimas fortalezas
automóveis.
- O poder me foi
delegado pela divindade extraplanetária e só a ele o entregarei quando o tempo
chegar. - Dizia outras vezes, mas sempre interrompido pelos súbditos da “escova
mais lustrosas “ que não se cansavam nos elogios. E Eufóricos replicavam:
- Por que não a seus
herdeiros, Sua Majestade Santíssima?
Assim ditas, as
palavras rejubilavam a corte inteira que encontrava encostos almofadados num
povo que, aos olhos dos seus vizinhos da Enhãnla, se parecia exausto,
depauperado e com riquezas subjupterianas exauridas, depois de uma extracção
massiva e concentrada nas mãos de Sua Majestade Santíssima. Foi assim que
começou o êxodo para a República vizinha da savana húmida e arbórea onde tudo
parecia ainda em estado virginal. As riquezas ocultas no subsolo; a vida
política, embora começasse a ser influenciadas pelos maus ventos da Kamunda, e
toda a organização social estavam ainda pintadas de rosa. Era, realmente, um
mar rosado e esverdeado, encravado num manto plano que se mostrava a nordeste.
Primeiro os homens,
depois as crianças e por último as mulheres fizeram-se além marco, seguindo
caminhos vários há muito traçados, cujo destino era um só: Enhãnla onde confluíam
novas crenças e certezas.
Uns creram em
refundar suas vidas longe da Kamunda. Outros alimentaram esperanças caducas de
verem sua Majestade Santíssima voltar aos tempos da sua regência jovial. Outros
ainda esquadrinhavam o sonho de inundar a República de Enhãnla com metade da
população de Kamunda para passarem à fusão dos territórios e encontrar um
governo de centro que aglutinasse todas as vontades.
- Apenas a geografia
nos diferencia entre montanhenses e pradianos. Todo o resto é igual. -
Apregoavam os unionistas que eram compreendidos na terra de exílio, sendo dos
mais respeitados e tendo ganho a
simpatia da autoridade republicana de Enhãnla que lhes concedia espaço para o
desenvolvimento da actividade económica que ia da cultura de vegetais à pecuária
e do comércio à prospecção mineira e indústria extractiva de recursos ocultos.
Ngana Kyombo era o líder dos unionistas saídos da Kamunda e refugiados na
Enhãnla.
Exilado há vinte e
nove anos, os negócios de Ngana Kyombo tinham já tentáculos vários e exalava
influências por onde quer que passasse. Com a ajuda de alguns notáveis da
Enhãnla tinha conseguido algumas conceções mineiras em Ekaproville, região a
leste do Estado, onde despontavam granadinas e relatos sobre ocorrências de
carbono tenaz.
- Vamos fazer dinheiro
com as brilhantinas carbónicas e restaurar a Kamunda. – Dizia Ngana Kyombo, aos
seus mais próximos, com a mesma energia com que os impelia a se formar e aperfeiçoar
na gestão de negócios e organizações empresariais. Tudo corria de vento em
popa, como era comum dizer-se em Enhãnla, quando os negócios corressem de forma
maravilhosa. Mas um dia, daqueles dias de sol ausente e frio presente, quando é
a neblina friorenta e translúcida que se sobrepõe à luzidia bola amarela
carregada de calor, um leão faminto fez-se presente entre os seus homens que
realizavam a prospecção de moléculas de carbono compactado por pressão secular
e calor subjupteriano. Instalou-se o pânico. A primeira ideia foi a de “fugir
antes de tudo”. Depois viriam as ideias. Junta-las, seleccionar as melhores,
mediante a exclusão das piores. A legislação ordinária, o direito
consuetudinário e o costume seriam também postos na balança. Os gritos do
planeta e mesmo a moda reinante na esfera inter-planetária apontavam para a
busca da coabitação entre felinos e jupterianos. Os habitantes de Enhãnla não
eram humanos. Apenas jupterianos, uns ET na análise racional de seus coetâneos
do continente África do planeta Terra. Mas havia também felinos jupterianos,
semelhantes aos leões de África.
A concessão de Kalimarc,
no distrito centro de Enhãnla, carecia de injecção de dinheiro fresco dos
accionistas. O dinheiro estava sendo dificultado pelos relatos dos prospectores
que alertavam, dias sem fim, a presença dos felinos que colocavam as suas vidas
em constante perigo. Apenas a teimosia dos carreiristas e o caloirismo dos
jovens estagiários, que pretendiam dourar os curricula, permitiam pesquisas
residuais naquela concessão mais à beira do fecho das operações do que da
injecção de dinheiro fresco pretendido. Matar o animal e preservar os
jupterianos ou deixar o espaço aos seus habitantes naturais? A pergunta ecoava
de canto a canto da coutada de Kelimarc, concedida, contra natura, para exploração mineral e um pouco por toda a
Enhãnla.
Barbatana, um
jupteriano com experiência de direcção em campanhas de pesquisas semelhantes no
reino da Kamunda, enquanto chefe da equipa jupteriana, sabendo que “matar a
razão do medo podia redundar em aposta na pesquisa”, decidiu premir o gatilho.
Bumm! Disparo certeiro
no centro da encefalia. Jazia defunto o temido bicho jubento e com dentes há
décadas cariados. Acto contínuo, Barbatana carente de dinheiro, mobilizou a
media e mostrou a fraqueza do temível animal abraçando o máscula rocha
superficial jupteriana. Choveram elogios. Barbatana de herói se fez e corou
encomendou.
Não tinha entretanto
sido contada toda a estória. O filme ainda desenrolava. Minutos depois, o
telefone tocou.
- Aló! É o inspector
Barbatanas? – Questionava o conselho transplanetário do ambiente.
- Sim, Vossa Excelência
Generalíssima. – Respondeu arrítmico na vocalidade o “general Barbatana” como
era conhecido entre os prospectores. Era ele o chefe das operações.
- Pois é, Senhor
Barbatana, gostaríamos de saber de onde terá a sua equipa recebido a ordem para
abater o animal felino. Foi da corte enhanlense ou da coordenação planetária? –
Indagou o responsável supremo da preservação biosférica.
Ente medos e razões,
a cobardia falou alto. Barbatana, apesar de longevo residente, era expatriado e
sabia que as autoridades enhanlenses, se pressionadas pela coordenação
planetária, não vacilariam em manda-lo de volta à terra de Sua Excelência,
Majestade Santíssima, a Kamunda. Decidiu desfazer-se dos feitos heroicos e
oferece-los ao autógene local.
- Excelência, nós
apenas fomos chamados como testemunhas de um facto de que nos congratulamos por
um quarto e condenamos por três quartos.
É que, apesar do enorme perigo que enfrentava a nossa equipa de prospecção,
jamais nos passaria pela cabeça extirpar a vida de um pacato felino. O autógene
local, sem o nosso conhecimento, teve a infeliz iniciativa de acabar com o
felino que o surpreendeu na flora abundante, quando procurava resgatar um
babuíno de estimação. Do confronto, narrou-nos o autógene, resultou a morte do
felino que, até à consumação dos factos, era caracterizado por um pacifismo
inaudito. - Relatou eufémico Barbatana, acrescentando ainda que o premir do
gatilho da caçadeira “22 longos” só ocorreu depois de o autógene amedrontado
pelo animal ter permanecido cinco horas no último ganlho de um arbusto de dois
metros.
A estória ainda
corre. Sabe-se que Barbatana está por responder se “entre a preservação da vida
dos jupterianos em busca de riquezas e o abate do felino qual dos direitos se
sobrepõe a outro“. Sabendo-se que descartou o feito que o levaria a herói da Enhanla,
resta saber que passo dará quando for chamado a depor na audiência jupteriana.