O
prazer que ele tinha de caminhar, conversando, era tão grande que só hoje se
reconhece o valor que encerra. A idade, esse somar de segundos, minutos, dias,
semanas, meses, anos, décadas e etc., transfigura-nos. Torna as pessoas
diferentes. Pensam diferente, de forma mais estruturada e evoluída. A cada
segundo que se passa algo minúsculo, mas real, acontece em nós. Ele gostava de
caminhar e conversar. Eu, às vezes, na minha inocência, falava com o meu íntimo
e perguntava-me por que ele gostava de estar comigo, impedindo-me de estar com os
meus amigos que nas traquinices da idade, ante a ausência dos pais, perdidos na
busca do “mbolo ya kizwa[2]”, passam tempo a
“estigar”[3] o coitado do vizinho
“Velho Kafejá”!
Francisco
Ngandu, ou simplesmente Chico, era um pouco mais idoso do que ele e tratavam-se
por tio e sobrinho. Eram parentes maternos. Avô Chico, para os rapazes de
família, era calvo e com o occipital saliente, aparentado ao desenho escolar de
um grão de feijão. Talvez por isso é que os meninos mais “mal-educados” do
Kaputu o tratavam por “Velho Kafejá”
Saído
da “bwala”, repleto de conhecimentos escolares para a idade, mas sem a
esperteza dum “kanuku da ngwimbi”[4], encontrou o tio
na casa dos sessenta, pois veio a reformou-se três anos depois. Já a sua filha
o tinha presenteado com três continuadores do nome: Raquel, Josira e Bruno. A
netinha mais velha tinha apenas seis anitos e o “kasula” deliciava-se ainda com
o leite do biberon, sempre que a mãe se dirigisse ao serviço.
Chegou
inteligente mas sem a esperteza e domínio dos truques da sobrevivência numa
cidade-acampamento (sim, acampamento de recuados de todos os pontos da Angola
em chamas), expunha-se inocente e desavisado nos apertados becos do Rangel, sem
a mínima noção do perigo que enfrentava todos os dias ao cruzar com os “gregos”[5] do México,
sempre que se fizesse a caminho da Praça das Corridas.
O
velho, avisado e vacinado pelo tempo de vivência luandina, estava sempre atento
e com os conselhos na ponta da língua.
-
Olha, sobrinho! Faz um “kaburaco” aqui na cintura dos calções e guarda o
dinheiro do peixe. Cuidado com os “gregos”. Fumam lyamba e não têm juízo na
cabeça!
Algumas
vezes ouvia-o com ouvidos retentores. Outras vezes, se bem que poucas, o conselho
caía em saco roto de “mabela”[6] que dava ao
arrependimento e às reprimendas da mãe que herdara uma mão sempre leve.
Aos
domingos aconteciam mais conversas. Transpunham o Rangel, Terra Nova e invertiam
pelas traseiras do cemitério de Sant´Ana, a caminho do templo da Igreja
Metodista Unida de Kalemba. Sentavam num mesmo banco corrido, daqueles feitos
pelo marceneiro que respeita a Deus, não deixando as roupas dos fiéis a mercê
de pregos mal assassinos. O idoso carregava a bíblia que não lia e o sobrinho o
Hinário “Povo cantai!” onde guardava o dinheiro para o ofertório e para os
doces à saída do culto. Apenas aos domingos o sexagenário levava a mão ao bolso
para as guloseimas do sobrinho. E cantavam juntos “madibesa kala nvula”[7] ou o “nome bom,
doce a fé….”.
Depois
do culto, boca adocicada, estômago resmungante e conversa de fazer crescer. Era
sobre o progresso que falavam na hora do regresso à casa. Metiam-se a caminho do
bairro Popular, a casa da Teresinha, a filha que vivia num “kaprédio do tempo colonial”.
Visitavam-na religiosamente, independentemente da diferença da profissão
religiosa.
Na
verdade, o tio precisava de um sobrinho ou um neto a quem pudesse transmitir
experiências. Não queria ficar com os seus conhecimentos em stock, sem que
alguém deles fizesse usufruto e os legasse às gerações vindouras.
-
Cada tempo é um tempo. Há coisas diferentes mas muitas se mantêm na mesma. Por
isso, sobrinho, “jikula meso”. - Dizia, vezes sem conta.
Ainda
indesperto, cansado de caminhadas, quando se podiam fazer transportar num
autocarro da ETP, depois rebaptizada por TCUL, o sobrinho respondia inocente:
-
Estou acordado tio. Quem dorme não anda!
-
É que não te oiço responder. Estás a ver os carros aqui na Estrada de Katete?
Passam rápidos. É preciso olhar aos dois lados e correr ao atravessar. Meus
olhos já viram muitos a serem "engomados".
-
Sim sobrinho. Não há óbito de “Kambuta” nem de alto, de branco ou de preto, ainda
mais o “kilombo” que é apenas um acidente de nascença (biológico), não faz
sentido separar as pessoas vivas ou defuntas. Mesmo a “kitata”[9] e o “ngombiri”[10] que não fazem
coisas recomendáveis não se fala deles quando Deus os chama. Apenas se diz que alguém
morreu. O ofício dele fica esquecido. - Explicou antes de
"fechar" com uma advertência:
Não
fala com os estranhos essas coisas de mais velhos, sobrinho. Primeiro aprende e
depois vai aos debates. Pronto. Agora acelera o passo e vamos à igreja onde deves
ficar atento à pregação.
Está bem tio! Está bem. A lição foi absorvida!
Obs: Publicado no Semanário Angolense sob título: "Eu, o tio e o Velho Kafejá", 20. Set. 2014
[1] Abre
o olho (Kimbundu).
[2] Pão
de cada dia (Kimbundu).
[3]
Insultavam; instigavam a… (calão).
[4] Rapaz
da cidade (calão).
[5]
Delinquentes; bandidos (calão).
[6] Ráfia
(Kimbundu).
[7]
Cântico religioso (bênçãos como água).
[9]
Prostituta (calão).
Sem comentários:
Enviar um comentário