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segunda-feira, setembro 15, 2014

EU, O TIO E O VELHO KAFEJÁ


O prazer que ele tinha de caminhar, conversando, era tão grande que só hoje se reconhece o valor que encerra. A idade, esse somar de segundos, minutos, dias, semanas, meses, anos, décadas e etc., transfigura-nos. Torna as pessoas diferentes. Pensam diferente, de forma mais estruturada e evoluída. A cada segundo que se passa algo minúsculo, mas real, acontece em nós. Ele gostava de caminhar e conversar. Eu, às vezes, na minha inocência, falava com o meu íntimo e perguntava-me por que ele gostava de estar comigo, impedindo-me de estar com os meus amigos que nas traquinices da idade, ante a ausência dos pais, perdidos na busca do “mbolo ya kizwa[2]”, passam tempo a “estigar”[3] o coitado do vizinho “Velho Kafejá”!

Francisco Ngandu, ou simplesmente Chico, era um pouco mais idoso do que ele e tratavam-se por tio e sobrinho. Eram parentes maternos. Avô Chico, para os rapazes de família, era calvo e com o occipital saliente, aparentado ao desenho escolar de um grão de feijão. Talvez por isso é que os meninos mais “mal-educados” do Kaputu o tratavam por “Velho Kafejá”

Saído da “bwala”, repleto de conhecimentos escolares para a idade, mas sem a esperteza dum “kanuku da ngwimbi”[4], encontrou o tio na casa dos sessenta, pois veio a reformou-se três anos depois. Já a sua filha o tinha presenteado com três continuadores do nome: Raquel, Josira e Bruno. A netinha mais velha tinha apenas seis anitos e o “kasula” deliciava-se ainda com o leite do biberon, sempre que a mãe se dirigisse ao serviço.

Chegou inteligente mas sem a esperteza e domínio dos truques da sobrevivência numa cidade-acampamento (sim, acampamento de recuados de todos os pontos da Angola em chamas), expunha-se inocente e desavisado nos apertados becos do Rangel, sem a mínima noção do perigo que enfrentava todos os dias ao cruzar com os “gregos”[5] do México, sempre que se fizesse a caminho da Praça das Corridas.

O velho, avisado e vacinado pelo tempo de vivência luandina, estava sempre atento e com os conselhos na ponta da língua.

- Olha, sobrinho! Faz um “kaburaco” aqui na cintura dos calções e guarda o dinheiro do peixe. Cuidado com os “gregos”. Fumam lyamba e não têm juízo na cabeça!

 Algumas vezes ouvia-o com ouvidos retentores. Outras vezes, se bem que poucas, o conselho caía em saco roto de “mabela”[6] que dava ao arrependimento e às reprimendas da mãe que herdara uma mão sempre leve.

Aos domingos aconteciam mais conversas. Transpunham o Rangel, Terra Nova e invertiam pelas traseiras do cemitério de Sant´Ana, a caminho do templo da Igreja Metodista Unida de Kalemba. Sentavam num mesmo banco corrido, daqueles feitos pelo marceneiro que respeita a Deus, não deixando as roupas dos fiéis a mercê de pregos mal assassinos. O idoso carregava a bíblia que não lia e o sobrinho o Hinário “Povo cantai!” onde guardava o dinheiro para o ofertório e para os doces à saída do culto. Apenas aos domingos o sexagenário levava a mão ao bolso para as guloseimas do sobrinho. E cantavam juntos “madibesa kala nvula”[7] ou o “nome bom, doce a fé….”.

Depois do culto, boca adocicada, estômago resmungante e conversa de fazer crescer. Era sobre o progresso que falavam na hora do regresso à casa. Metiam-se a caminho do bairro Popular, a casa da Teresinha, a filha que vivia num “kaprédio do tempo colonial”. Visitavam-na religiosamente, independentemente da diferença da profissão religiosa.

Na verdade, o tio precisava de um sobrinho ou um neto a quem pudesse transmitir experiências. Não queria ficar com os seus conhecimentos em stock, sem que alguém deles fizesse usufruto e os legasse às gerações vindouras.

- Cada tempo é um tempo. Há coisas diferentes mas muitas se mantêm na mesma. Por isso, sobrinho, “jikula meso”. - Dizia, vezes sem conta.

Ainda indesperto, cansado de caminhadas, quando se podiam fazer transportar num autocarro da ETP, depois rebaptizada por TCUL, o sobrinho respondia inocente:

- Estou acordado tio. Quem dorme não anda!

- É que não te oiço responder. Estás a ver os carros aqui na Estrada de Katete? Passam rápidos. É preciso olhar aos dois lados e correr ao atravessar. Meus olhos já viram muitos a serem "engomados".

- ´Stá bem, tio. Mas tio sabe que criança não morre. É como “Kilombo”[8] que só desaparece...

- Sim sobrinho. Não há óbito de “Kambuta” nem de alto, de branco ou de preto, ainda mais o “kilombo” que é apenas um acidente de nascença (biológico), não faz sentido separar as pessoas vivas ou defuntas. Mesmo a “kitata”[9] e o “ngombiri”[10] que não fazem coisas recomendáveis não se fala deles quando Deus os chama. Apenas se diz que alguém morreu. O ofício dele fica esquecido. - Explicou  antes de "fechar" com uma advertência:

Não fala com os estranhos essas coisas de mais velhos, sobrinho. Primeiro aprende e depois vai aos debates. Pronto. Agora acelera o passo e vamos à igreja onde deves ficar atento à pregação.

Está bem tio! Está bem. A lição foi absorvida!

Obs: Publicado no Semanário Angolense sob título: "Eu, o tio e o Velho Kafejá", 20. Set. 2014


[1] Abre o olho (Kimbundu).
[2] Pão de cada dia (Kimbundu).
[3] Insultavam; instigavam a… (calão).
[4] Rapaz da cidade (calão).
[5] Delinquentes; bandidos (calão).
[6] Ráfia (Kimbundu).
[7] Cântico religioso (bênçãos como água).
[8] Albino  (Kimbundu).
[9] Prostituta (calão).
[10] Violador  (Kimbundu).

 

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