Fruto da guerra civil que devastava o país por completo e o
consequente êxodo rural, Luanda tornou-se nos anos 80 do século XX o ponto mais
seguro para as populações do interior cansadas de recuos sucessivos.
Chegava-se
a recuar da aldeia para a sede comunal. Da sede comunal para a municipal, da
municipal para a capital de província e desta para Luanda, o Centro do poder e
local mais seguro. Era crescente o belicismo da rebelião armada que nada
poupava: casas, culturas, criações, aldeões, estradas, pontes, tudo. Tudo era
arrastado ou deitado a baixo e Luanda era o último refúgio para vida ou morte.
As milhares de famílias imigradas à força aportavam na
capital do pais sem recursos nem conhecimentos sobre as vivências citadinas e muito
menos hábitos urbanos. Por outro lado, os novos inquilinos das vivendas e
apartamentos da baixa e zonas contíguas precisavam de definir o seu novo estilo
de vida.
Sem posses e ambiente político para contratar empregados
permanentes e também ser autoridade moral para ter os criados do tempo colonial
que inundavam as cidades, as novas mandonas do Alvalade, Vila Alice, Cruzeiro,
Makulusu, Maianga e arredores optaram
por pseudo apadrinhamentos que consistiam em solicitar meninos e meninas do
museque para viver em suas casas; cuidando dos seus filhos menores, numa altura
em que a procriação estava em alta; acarretar água que deixara de jorrar acima
do primeiro andar; lavar a loiça e cuidando da higiene da casa; ir às compras
na loja do povo que incluía as filas da peixaria, do talho, da loja do gás e do
depósito de pães. Muitos destes pseudo afilhados nem tinham tempo para ir à
escola, embora a promessa maior dada aos progenitores fosse que “ele/ela vai
frequentar a escola com os meus filhos e vai ter a mesma educação e mesmos
cuidados que dou aos meus meninos”.
Os “afilhados” serviam também para entreter os visitantes
com estórias da guerra no interior ou contando anedotas aos meninos de casa,
servindo vezes sem conta os seus rostos de batuque para as “patroas-madrinhas”
e para os meninos mal criados.
Como recompensa ao “afilhados tinham apenas a alimentação,
os bons modos, quando os houvesse na casa, a possibilidade de usarem os brinquedos
dos “irmãos-afectivos”, ter a roupa limpa depois de lavarem a da patroa e dos
meninos e ganhar uns trapinhos e quedes que já não serviam aos meninos ou
comprados nas viagens dos patrões-padrinhos.
Ainda assim, os criados, quando regressassem de férias ou em
passagem de fins-de-semana junto dos seus, eram tidos como cidadãos de
primeira, dada a forma diferente como se apresentavam e falavam. Uns ganhavam
modos urbanos e sabiam sentar-se à mesa e manipular os talheres.
Quando pudessem estudar, tinham livros e uns, mais
afortunados, chegavam a viajar com os patrões-padrinhos para férias fora de Luanda
ou mesmo ao estrangeiro. Havia os que chegavam a ganhar bolsas de estudo ou
umas cunhas para encaminhamentos para institutos médios. Mas havia também os que
não passavam de simples “lavadores de loiça”, meros escravos modernos do pós
independência, recrutados no Rangel, Prenda, Catambor, Cazenga e outros bairros
periféricos como peças do tempo doutra senhora.
Haviam senhoras que tratavam os “afilhados” pior do que as
brancas do tempo colonial. Tão elevadas eram as patentes e tão altos eram os
saltos dos seus calçados que viam mesquinhez em tudo e todos à volta. Tive uns
padrinhos que até me tratavam com ligeira benignidade, o tio Chilala e tia
Chinha, que tinham três filhos feitos um atrás do outro. Com eles permaneci não
mais do que um mês. O meu rumo era outro.
Sem comentários:
Enviar um comentário