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quarta-feira, dezembro 14, 2005

HOJE NÃO HÁ ESCOLA

(Cânticos anónimos IV)


Há muito que não desafiava a distância numa viatura. Viajei, esta semana, de carro Luanda/Munenga/Lussusso, mais de 290 km.

Zangado com os solavancos na picada, o carro gritava ao vento, no seu roncar, a angústia que lhe provocavam as crateras no moribundo asfalto. O serpentear do caminho multiplicava as indignações, com o desandar das coisas que vira intactas na meninice.

Antigos bairros abrigam apenas fantasmas e nas “cantoneiras” da junta de estradas, feitas escolas no calor da revolução, restam apenas o soar do chicote largado pela mão leve do professor de quarta classe, sem a pedagogia recomendada pelo checo Comênius, e as marcas de balázios de homens sem economia. Tentei a pergunta sobre o paradeiro das carteiras e tal como na descuidada infância, na pré, a resposta veio gritada:
-“Hoje não há escola”.
Frase que já não ouvia há muito, desde que deixei a iniciação escolar ou pré Kabunga, quando desabituados ainda com a vida escolar festejávamos as ausências do professor, cantando em coro e correndo os dez quilómetros que separavam a escola da casa.

“Hoje não há escola” é também estrofe dum cântico anónimo solto pela garganta duma angolana iletrada que na inauguração do país ficou sem os filhos nos afazeres agrícolas, e ela mesma, sem tempo para o jantar do marido, gasto na alfabetização. Desse tempo apenas a nostalgia das primeiras lições do a, mbê, cê, ndê naquela garagem da fazenda Israel do Libolo.

Vinte e cinco anos passados, já não é fazenda aquele campo de ananases, girassol, laranjeiras e bananeiras. Tudo desapareceu.

Os pais de outrora transformaram-se nas tumbas neófitas que ladeiam o caminho. E o pior é que hoje “não há escola” de verdade. Não é apenas a ausência da educação formal com o professor Jorge Kaconda, o Giz e o Chicote para a burrice na matemática, mas também a escola informal do Velho Chica Yango no ndjango.

Desapareceram os idosos e com eles as anedotas, as canções, as fábulas, as Estórias e a História do meu povo, o nosso povo. O livro das linhagens escrito na memória e assim reproduzido sem tinta e papel.

Visitei o largo que acolhia os nossos serões à volta da fogueira quando fossem boas lenhas. Hoje só fumaça. Lenhas que não fogueiam, conservando apenas nas cinzas o lume para o amanhã incerto, sem isqueiros de fricção, nem gasóleo dos tractores queimados pela guerra.

Desesperado, recuei para Munenga, a sede comunal. Ali, onde em Setembro de cada ano se juntavam todos os “comunas” para o exame final da quarta classe. A antiga sede do posto administrativo reclama reconstrução e já não é cerâmica a casa da montanha. O Sangue Frio desapareceu com o seu bar e o Ferreira, ai que pena! Do Ferreira ficou apenas o nome.

Procurei então pelo administrador para que me indicasse a escola geral. Queria saber se restavam ainda retalhos da minha infância escolar. Novamente a resposta duma anciã:
-"Filho, hoje, já não há escola".


Conclui então que os ditos do passado não morrem. Conservam-se apenas noutros estados, noutras falas do mesmo povo, noutras vestes do mesmo corpo. Não há, realmente, escola que chegue para tanta maternidade!

Soberano Kanyanga, 14 Dezembro 2005

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