(Cânticos anónimos IV)
Há muito que não desafiava a distância numa
viatura. Viajei, esta semana, de carro Luanda/Munenga/Lussusso, mais de 290 km.
Zangado com os solavancos na picada, o carro
gritava ao vento, no seu roncar, a angústia que lhe provocavam as crateras no
moribundo asfalto. O serpentear do caminho multiplicava as indignações, com o desandar
das coisas que vira intactas na meninice.
Antigos bairros abrigam apenas fantasmas e nas “cantoneiras”
da junta de estradas, feitas escolas no calor da revolução, restam apenas o
soar do chicote largado pela mão leve do professor de quarta classe, sem a pedagogia
recomendada pelo checo Comênius, e as marcas de balázios de homens sem economia.
Tentei a pergunta sobre o paradeiro das carteiras e tal como na descuidada infância,
na pré, a resposta veio gritada:
-“Hoje não há escola”.
Frase que já não ouvia há muito, desde que
deixei a iniciação escolar ou pré Kabunga, quando desabituados ainda com a vida
escolar festejávamos as ausências do professor, cantando em coro e correndo os
dez quilómetros que separavam a escola da casa.
“Hoje não há escola” é também estrofe dum
cântico anónimo solto pela garganta duma angolana iletrada que na inauguração
do país ficou sem os filhos nos afazeres agrícolas, e ela mesma, sem tempo para
o jantar do marido, gasto na alfabetização. Desse tempo apenas a nostalgia das
primeiras lições do a, mbê, cê, ndê naquela garagem da fazenda Israel do
Libolo.
Vinte e cinco anos passados, já não é fazenda
aquele campo de ananases, girassol, laranjeiras e bananeiras. Tudo desapareceu.
Os
pais de outrora transformaram-se nas tumbas neófitas que ladeiam o caminho. E o
pior é que hoje “não há escola” de verdade. Não é apenas a ausência da educação
formal com o professor Jorge Kaconda, o Giz e o Chicote para a burrice na
matemática, mas também a escola informal do Velho Chica Yango no ndjango.
Desapareceram
os idosos e com eles as anedotas, as canções, as fábulas, as Estórias e a
História do meu povo, o nosso povo. O livro das linhagens escrito na memória e
assim reproduzido sem tinta e papel.
Desesperado, recuei para Munenga, a sede comunal. Ali, onde em Setembro de cada ano se juntavam todos os “comunas” para o exame final da quarta classe. A antiga sede do posto administrativo reclama reconstrução e já não é cerâmica a casa da montanha. O Sangue Frio desapareceu com o seu bar e o Ferreira, ai que pena! Do Ferreira ficou apenas o nome.
Procurei então pelo administrador para que me indicasse a escola geral. Queria saber se restavam ainda retalhos da minha infância escolar. Novamente a resposta duma anciã:
-"Filho, hoje, já não há escola".
Conclui então que os ditos do passado não morrem. Conservam-se apenas noutros estados, noutras falas do mesmo povo, noutras vestes do mesmo corpo. Não há, realmente, escola que chegue para tanta maternidade!
Soberano Kanyanga, 14 Dezembro 2005
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