Salomão Zacarias é um adolescente moçambicano de 17 anos. É de pouca fala. Encontrei-o num dos quebra-mar aonde fui caminhando e contemplando o exotismo do índico. Pedi-lhe para fazer-me uma foto. Ele, quase silencioso, parecia dizer "não". Talvez desconfiado. Não ria, parecia alma tristonha. Fez a foto, melhor, duas fotos. Segui o meu caminho que já se fazia curto até à água.
De regresso, pelo mesmo apeadeiro sobre o mar, vi-o com um livro que me parecia velho de tanto manuseio, um caderno e uma esferográfica. Parecia ler e tomar notas. Importunei-o, mais uma vez.
_ Filho, desculpa tomar o teu tempo. Sou angolano. Contemplo e escrevo. Gosto também de conversar e tomar notas mentais.
Ele, de novo, silencioso. Parecia não estar aí. Perguntei sobre a sua idade e o que fazia àquela hora a meio do quebra-mar. As respostas tardavam. Tive de adivinhar-lhe as ideias, mediante leitura do semblante.
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Exibindo Kitotas: Recuos e avanços |
Apenas disse que era Salomão e que estava a meditar sobre o que lia da Bíblia.
Falei-lhe sobre meu ofício de escritor, uma forma também de meditar sobre a vida e partilhar. Abriu a boca e disse que se chamava Salomão. Nem às perguntas sobre formação, onde nasceu e que fazia da vida respondeu.
Parti. Apostei comigo mesmo que não mais o importunaria.
_ Por que carga d'água um rapaz, que até tem idade dos meus últimos rebentos, idade da ousadia, não me respondia?!
Marquei passos, uns bons passos, mil talvez. Ia ao encontro do jovem que comercializava água de coco por M$30 a quem eu prometera comprar no regresso ao hotel. Caminhava sobre a areia cristalina da praia na marginal de Maputo. Adolescentes fugidas de um casamento religioso aproveitavam a folga e fotografavam-se para "viralizar" nas redes sociais. Por pouco pedi que me fotografassem também. Todavia, reparei que eram meninas e menores. Olhei atrás e reparei o mesmo adolescente que deixara a meditar, vindo em minha direcção num passo apressado, como que me quisesse alcançar.
Mesmo não confirmado que vinha ter comigo, abrandei o passo para metade da velocidade. Deixei-o aproximar-se até estarmos lado a lado.
_ Então, vens ter comigo, Salomão?
_ Sim. Disse-me que era escritor. Será que também escreve poesia?
_ Sim, Salomão, dentre os meus dez livros publicados três são versificações.
_ Eu gosto de poesia e gostaria de ser poeta.
_ Pois é. Os poetas são introspectivos e gritam no silêncio das palavras versos que escrevem.
_ Será que o pai tem um livro de poesia para me emprestar para ler essa manhã e devolver à tarde? _ Replicou.
Senti-me comovido. Cada palavra, dita quase a sussurrar, soava-me a um pranto daquela alma que não se abria.
_ Filho, tenho um livro para ti, mas não é poesia. É sobre a minha infância e adolescência. Quem sabe te seja útil? Podes vir comigo? Estou alojado no hotel que está à frente de nós.
Seguimos, eu procurando que me apresentasse o poeta que mora nele. Ele contendo as palavras o máximo que podia. Confessou que concluiu a décima classe e que tinha parado de estudar por dificuldades. Quando decidiu perguntar, o tema foi religioso.
_ O pai é crente? Eu sou da Igreja MEA.
Falei-lhe sobre a minha infância e juventude na Igreja Metodista Unida em Angola, cargo pastoral de Moisés.
_ Foi levada a Angola por missionários americanos e creio que haja também aqui em Moçambique.
A segunda pergunta do Salomão foi à entrada do hotel. Talvez tenha sido a sua primeira vez a adentrar um grande hotel e daí o espanto.
_ Posso entrar também? Será que me permitem?!
_ Tu és meu convidado, meu filho. Vem comigo a te levarei de volta à praia.
Recebido o livro, no quarto de hotel, deixei o Salomão a "Kitotar" sobre a brisa matutina do índico, contando que, terminada leitura do mesmo, venha a fazer de seus eventuais recuos grandes avanços em sua vida.
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Texto publicado no Jor. Angola de 07.07.2024