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segunda-feira, julho 29, 2024

NGUNALI XIMA NYI IFO

 (Literalmente, o título traduzido de ucokwe para português, significa "estou a comer funji)

Trabalhei na região Leste de Angola perto de 10 anos e imergi na língua local, o ucokwe.

Para os tucokwe, xima é o designativo da pasta confeccionada a partir de farinha de mandioca (fuba de bombó), sendo extensivo ao pirão confeccionado a partir da fuba de milho.

Os tucokwe habitam territórios que abrangem Angola (especialmente nas províncias de Lunda Norte, Lunda Sul e Moxico), República Democrática do Congo (nas regiões de Katanga e Kasai) e  na Zâmbia (particularmente nas regiões fronteiriças com Angola), sendo parentes de outros povos (da família linguística Bantu) que se estendem até ao Oceano Índico.


Bem, a razão desta prosa é o substantivo xima. Em Saurimo (Angola) e em Maputo (Moçambique) xima designa um mesmo produto: funji. Quanto a "ifo" (carne para os tucokwe de Angola), alguém me "fwefenhou" que "no norte de Moçambique é énama".

Para fim de prosa, informo que o meu jantar foi xima (acompanhado) de "Agostinho Neto", nome pomposamente atribuído ao "conduto" peixe carapau!

segunda-feira, julho 22, 2024

NÓTULAS SOBRE KIBALA

Wathithi kwamunzembe, walepa kakwata kolu, Ndonga-a-ngulu wandongile!*

Visitei a vila de Kibala no dia 13 de Julho. Não foi a primeira, sendo apenas última de muitas e com a felicidade de ter percorrido grande partes das ruas doi seu casco urbano que é muito maior do que a imagem que se oferece ao transeunte. Sendo "imagem de marca" os edifícios danificados pela acção da guerra civil (1975-2002), fiz recurso a fontes orais, escritas e à IA (inteligência Artificial) para buscar pistas sobre "quantas vezes a vila de Kibala foi atacada e ocupada pela insurreição armada e recuperada pelas forças governamentais". Não encontrei resposta numérica. O que é certo é que "foram várias as vezes que tal ocorreu" e em cada uma das acções de ataque, ocupação temporária e recuperação, sempre resultavam em danos humanos e infra-estruturais, fazendo com que o rosto presente da vila seja: prédios duramente estropiados, escombros e montulhos que indiciam ter existido ali e acolá casas e instalações comerciais e/ou industriais convertidas a zero.

Bem desenhada e implantada em terreno com pequenos declives que conduzem as águas pluviais a córregos naturais de fluxo permanente, Kibala, cercada a sul por montes pedregosos, tinha tudo para ser cidade.
Depois de percorridas as ruas e ruelas da "cidade" da Kibala, faço "mea culpa" por um dia ter negado tal designação, embora os dados oficiais apontem que ela foi somente elevada à categoria de vila em 15 de Janeiro de 1974, e, ao que se diz, "com planos da administração colonial portuguesa para elevar a vila ao estatuto de cidade". E tinha tudo para sê-lo, se tivermos que comparar a Kibala a outras vilas de então que foram elevadas à cidade como é o Dondo, Gabela e ou mesmo Henrique de Carvalho.
O sexagenário Xavier Nhanga da Julieta, natural da Kibala, contactado a buscar por suas memórias, avança que “o primeiro relato de que a vila tinha sida atacada e que resultou na destruição dos edifícios Império, edifício da DOM (Departamento de Organização e Mobilização) e o Banco Totta, assim como outros edifícios ocorreu em 1984”. Esse dado é confirmado por Matias Pascoal Manuel que à data vivia na Kibala e precisa que "o primeiro ataque foi a 12 de Junho de 1984, data em que a CAIMA foi igualmente destruída".
De lá em diante, a vila foi tratada como “gato sapato”, apesar da entrega e tenacidade do Batalhão comandando pelo mítico Kandimba, de quem o cancioneiro popular regista e guarda a sua bravura na defesa da vila.

Ana Viana, natural da Kibala, tinha 12 anos em 1984 e relata que "1984 o ano da defesa e da produção. Kandimba era comandante de um Batalhão da Brigada 150. A tropa tinha ido prestar socorro no Lwati, Libolo, onde ocorrera outro ataque. Os tropas que tinham ficado eram poucos. O segundo ataque foi em junho de 86. O terceiro foi quando mataram o Felizardo que foi secretário da Jota. Até aos confrontos de 1992, houve mais ataques..." fazendo recurso á memória de uma rapariga (em 11984) que já estudava a quarta classe, Ana acrescenta que "o primeiro ataque durou 3 dias, até que (regressado do Lwaty) Kandimba assumiu o controle da situação". Lamenta a perda de amigos, colegas de escola, parentes e conhecidos e finaliza:
_ É por isso nunca me esquecerei do ano 1984.

Olhando para as "sobras da guerra" (alusão ao romance de Ismael Mateus) quem vai ou passa por Kibala nota que o mais alto edifício são as instalações da moageira CAIMA (Companhia Angro-Industrial de Milho de Angola, instalada na década de sessenta do séc. XX e que tinha uma capacidade de processamento de aproximadamente 120 toneladas de milho por dia), que fica na EN 140, a que liga a Gabela ao Mussende, cortando diagonalmente a vila da Kibala. É uma pena que a CAIMA, detentora das marcas "canini e tari" esteja como está: parada e sem horizonte para a sua reabilitação.
Todavia, nem tudo são abrolhos. Entre as décadas 50 e 60 do século XX, a Kibala gabava-se de possuir aquele que era tido como "o melhor hotel do Império", propriedade do senhor Cunha. O libolense José Carlos de Oliveira Cunha "Oca", herdeiro do sobrenome e neto, confirma esse dado. "Situava-se ao pé da Administração municipal da Kibala, lado oposto".
A próxima melhor instalação hoteleira da Kibala vem pelas mãos de Eduardo Fernando, um natural que fez vida fora da circunscrição e decidiu juntar "patacas" para as investir em sua terra. Com três andares é tido como "o mais alto da circunscrição, depois do edifício da CAIMA. São acções como essas que replicadas fazem evoluir as localidades.
Impávida e persistente olha-nos, a partir do cimo do monte rochoso, o fortim, conferindo cada fracasso ou vitória dos homens e mulheres da Kibala que é eterna. E para terminar, que tal uma rua para homenagear o comandante Kandimba?
...
* Na variante local de Kimbundu significa: Não desprezes o baixinho, pois o homem mais alto nunca tocará os céus.

segunda-feira, julho 15, 2024

KATOFE DE ONTEM E DE HOJE

Em visita familiar à Kibala (14.07.2024), cheguei a Katofe (já conhecia a vila de passagem) e procurei pela Escola Técnica Agrária que busca resgatar a áurea da localidade que fica a aproximadamente 13 quilómetros da vila de Kibala.

O que encontrei apontava para uma vila que apela por socorro. Casas, algumas, com pinturas a reclamar mais de 49 anos de ausência do pintor. Algumas sem tecto. Outras juntam à falta de tecto as porta e janelas. O que foi "casa de acolhimento dos açorianos que acabavam de chegar" é hoje casa de ninguém, ou melhor, abrigo de cabritos, mabengo, lyambeiros e noctívagos morcegos.
_ Será que se alguém solicitar a sua reabilitação conseguiria obter a cedência?
É que um motel em Katofe teria serventia, tanto para a localidade, quanto para Kibala que fica perto.

As inovações são o Complexo Escolar e a Escola Técnica Agrária que tenta resgatar a importância histórica da vila em termos de potencial agropecuário da região e do país.

Informações recolhidas na Escola Técnica de Agronomia apontam que frequentam a mesma 190 alunos, 79 dos quais internos e os demais externos.

Sendo escola básica, os alunos devem entrar com a sexta classe concluída saindo com a nona classe (ensino fundamental), sendo a idade máxima de entrada os 16 anos (saindo aos 19 para o mercado de trabalho).

Katofe, foi uma florescente vila fundada por agropecuaristas portugueses oriundos do arquipélago dos Açores (vide entrevista com Lúcio Flávio da Silveira).

Dados apontam que era profícua em leite e outros agro-produtos, registando, à entrada para 1975, autonomia em suprimento de energia e água. Aliás, o Rio Katofe, de curso permanente e facilitador da irrigação, passa ao lado, cortando e molhando as terras.

José Kassola, natural da região, conta que seu tio trabalhou na ELA (Empresa de Lacticínios de Angola), cujas instalações, em Katofe, podem ser vistas à entrada da vila (lado direito, sentido Kibala-Waku). Conta que a unidade “transformava em natas” o leite recolhido pelos fazendeiros e o transferia para a fábrica principal, no Waku Kungo, onde era terminado o processo.

“Acredito que ainda haja amostras de misturadoras, espátulas, blenders e outros restos de equipamentos que eram usados”.
Kassola diz ainda que o proprietário da E.L.A. tinha a responsabilidade de distribuir gado às famílias e essas cuidavam da ordenha. "O leite era colocado em recipientes metálicos. O meu tio António José Cassola "Kimbuze" tinha um em casa e, apesar de já falecido, e os meus primos ainda o conservam". Acrescenta que o motorista passava de fazenda em fazenda onde havia gado para recolher os recipientes, pagando o valor estipulado em Escudos para que os mesmos tivessem poder económico.
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A vila de Katofe retratada por quem a viu nascer

Lúcio Flávio da Silveira Matos é natural de Katofe, município da Kibala, Kwanza-Sul, emigrado em 1975 devido ao clima antes e pós-independência, para Portugal e, depois, para o Brasil onde, entre muitas coisas, desenvolve actividade académica em uma universidade. Lúcio Huambo, como também assina algumas de suas crónicas, é um homem que reflecte sobre Katofe e que narra, nas suas prosas e poesias, a saudade, os mitos e os cantares da terra que o viu nascer.
Em tempos (2012), o Lúcio publicou um artigo que ressaltava os homens adultos do seu tempo de meninice que deram cabo dum leão. Foi o motivo que accionou a minha já desperta curiosidade, resultando numa entrevista que tenho o prazer de publicar nesta página.
- Caro Lúcio, havia uma cidade, pequena, mas com este estatuto ganho em 1974, que é a Kibala. A cerca de dez quilómetros erguia-se a vila de Katofe com igreja "sumptuosa" e casas majestosas (naquele tempo) que comentário?
Lúcio: O meu blog inclui uma resenha histórica, intitulada "A décima ilha", escrita pelo meu pai - com heroicos 92 anos feitos em Novembro de 2012 - em que ele narra a lenta, mas sempre progressiva colonização açoriana na região do Katofe. A igreja que consideras "sumptuosa" realmente foi o último fruto de um progresso que se considerava imparável, à época. Quanto à arquitectura da igreja, teve três versões: a primeira foi uma pequena erguida sem torre de sinos (sineira) e a segunda já tinha uma torre com sinos, mas em 1964 mostrou-se exígua para o povo que a frequentava aos domingos e dias de Festa do Divino Espírito Santo, quando havia muitos forasteiros. O progresso das casas foi paralelo ao da igreja; as primeiras casas do Katofe foram de pau-a-pique, depois de adobe, e as primeiras casas de tijolo cerâmico cozido foram erigidas a partir de 1962. A casa de dois pisos no início da povoação, construída pelo Kimbaça Emílio Dias, um dos três pioneiros açorianos, era de adobe e foi construída no início da década de 1950. Ali, era a primeira pousada dos colonos que iam chegando livremente dos Açores, sem quaisquer apoios do governo português. A minha família só se mudou da casa de adobe para a de tijolo cerâmico em 1968. A luz eléctrica foi instalada na povoação em 1966.
_ Katofe era uma colónia agrícola?
Lúcio: Era uma colónia agro-pecuária, essencialmente baseada na pecuária de laticínios, que foi implantada de forma livre e espontânea por três açorianos que primeiro viveram alguns anos na Kibala. Ao se fixarem em Katofe, mandavam notícias para os Açores e assim, de forma livre, se foi estabelecendo um fluxo migratório por afinidade de famílias e não por incentivo governamental.

_ Eram os colonos todos ou maioritariamente açorianos?
Lúcio: Os colonos eram todos açorianos; havia cerca de setenta famílias originárias da ilha de S. Jorge, nos Açores. Entre os colonos havia dois da ilha Graciosa e um da ilha Terceira que casaram com mulheres jorgenses que já se encontravam em Katofe. Esses colonos não jorgenses vieram originariamente para o Kwanza Sul para trabalhar na construção dos colonatos que o governo colonial resolveu implantar na Cela (Waku Kungu), a 60 quilómetros. Contudo, ressalte-se que nos colonatos estabelecidos pelo governo inicialmente era proibida a utilização de mão-de-obra nativa, enquanto em Katofe, por ser de colonização livre, os trabalhos de agricultura e pecuária eram feitos com a cooperação de mão-de-obra nativa.
_ Qual era a ocupação principal daquelas famílias?
Lúcio: A ocupação principal sempre foi a pecuária de leite. Inicialmente, houve muitos revezes. O progresso começou a fazer-se sentir a partir de 1965, quando a ELA - Empresa de Laticínios de Angola, com sede na Cela, foi estabelecida com capital acionário igualitário do Estado, firma portuguesa Martins & Rebelo e dos lavradores das regiões da Cela e Katofe. O posto de laticínios construído em Katofe era só destinado à recepção de leite, que era encaminhado refrigerado em camião-tanque para processamento na fábrica da Cela.
_ Que outras infra-estruturas havia à data?
Lúcio: As principais infra-estruturas estabelecidas até 1974 eram a escola, o internato escolar e o posto de saúde, todos frequentados também por população autóctone. Havia previsão para estabelecimento de uma agência de Correios na década de 1970, o que não se realizou até hoje.
_ Havia uma administração da vila?
Lúcio: Não havia uma administração da vila. Os colonos organizaram uma cooperativa que era a principal voz representativa, através do seu presidente, junto às autoridades governamentais.
_ Como eram as relações entre os filhos dos brancos e dos negros de Katofe?
Lúcio: Posso considerar boas com tendência a melhorar muito. A integração era maior no futebol, com a equipa da povoação, de brancos e negros, a realizar frequentes jogos nas cinco aldeias mais próximas, à volta da povoação - Hombe, Songwe, Kikula, Kas(s)ala e Katoka; segundo relatos de quem foi ao Katofe, essas aldeias não existem mais.

_Quando foi que a vila de Katofe começou a ser fundada?
Lúcio: Penso que no início da década de 1940, com os três pioneiros André de Oliveira, João de Oliveira e Emílio Dias. O André de Oliveira morreu nos primeiros anos, vitimado pelas febres, pois o terreno na época era bem infestado por mosquitos e mosca-do-sono.

_ Lembra-se dos primeiros habitantes não autóctones de Katofe?
Lú: Os três pioneiros foram André de Oliveira, João de Oliveira e Emílio Dias. Depois, juntou-se a eles Vicente Teixeira de Matos, o meu pai, que foi apelidado pelos autóctones de Kilamba.

_ Por que razão foram lá parar (idos dos Açores ou outros pontos do distante Portugal continental)?
Lúcio: Os três pioneiros foram André de Oliveira, João de Oliveira e Emílio Dias que foram inicialmente para Kibala trabalhar para o Capitão Sandão, que era um militar açoriano casado na Kibala com uma nativa negra e (possuidor de) vários filhos. Resolveram tornar-se independentes e estabeleceram-se nas baixas de Katofe porque, segundo as informações colhidas na Kibala, havia ali bastante terra livre e boa para a criação de gado leiteiro, que é a vocação primordial dos jorgenses. Depois, juntou-se a eles Vicente Teixeira de Matos, o meu pai, que foi apelidado pelos autóctones de Kilamba. O meu pai foi encontrado no serviço militar no Huambo, onde o meu avô paterno tinha uma fazenda perto do Forte da Quissala; o meu pai foi para Angola atrás do pai, tendo abandonado os estudos em Portugal, quando ia fazer o curso de Veterinária. Quando foi convidado para ir criar gado em Katofe, mal saísse definitivamente do quartel, e bem longe do pai, ele não titubeou, afinal era um jovem de vinte anos.

O Lúcio Silveira tem estado a publicar no seu blog, MUKANDAS DO KABIÁKA, poemas com conteúdo que retrata Angola e fábulas da nossa terra (Angola). O meu entrevistado não descarta a possibilidade de converter as lindas e ricas fábulas em livro impresso.

Ainda sobre Katofe, o Pe. Abel João e Domingos Raul da Silva dizem, no livro BREVE HISTORIAL DA MISSÃO CATÓLICA DA QUIBALAO" que "em 26 de Setembro de 1949, no Cartório Notarial da Comarca de Nova Lisboa (Huambo), foi assinada a
escritura de fundação da Cooperativa de Colonização Agro-Pecuária, 'A Açoreana', com sede em Catofe, área do Posto Sede de Concelho de Quibala. Os Estatutos da Cooperativa foram publicados no Boletim Oficial da Província da Angola, III Série, nº 48, de 1 de Dezembro de 1949. Foram dezanove os fundadores".

segunda-feira, julho 08, 2024

SALOMÃO: O ADOLESCENTE MAPUTENSE DE POUCAS FALAS

Salomão Zacarias é um adolescente moçambicano de 17 anos. É de pouca fala. Encontrei-o num dos quebra-mar aonde fui caminhando e contemplando o exotismo do índico. Pedi-lhe para fazer-me uma foto. Ele, quase silencioso, parecia dizer "não". Talvez desconfiado. Não ria, parecia alma tristonha. Fez a foto, melhor, duas fotos. Segui o meu caminho que já se fazia curto até à água.

De regresso, pelo mesmo apeadeiro sobre o mar, vi-o com um livro que me parecia velho de tanto manuseio, um caderno e uma esferográfica. Parecia ler e tomar notas. Importunei-o, mais uma vez.

_ Filho, desculpa tomar o teu tempo. Sou angolano. Contemplo e escrevo. Gosto também de conversar e tomar notas mentais.

Ele, de novo, silencioso. Parecia não estar aí. Perguntei sobre a sua idade e o que fazia àquela hora a meio do quebra-mar. As respostas tardavam. Tive de adivinhar-lhe as ideias, mediante leitura do semblante.

Exibindo Kitotas: Recuos e avanços

Apenas disse que era Salomão e que estava a meditar sobre o que lia da Bíblia.

Falei-lhe sobre meu ofício de escritor, uma forma também de meditar sobre a vida e partilhar. Abriu a boca e disse que se chamava Salomão. Nem às perguntas sobre formação, onde nasceu e que fazia da vida respondeu.

Parti. Apostei comigo mesmo que não mais o importunaria.

_ Por que carga d'água um rapaz, que até tem idade dos meus últimos rebentos, idade da ousadia, não me respondia?!

Marquei passos, uns bons passos, mil talvez. Ia ao encontro do jovem que comercializava água de coco por M$30 a quem eu prometera comprar no regresso ao hotel. Caminhava sobre a areia cristalina da praia na marginal de Maputo. Adolescentes fugidas de um casamento religioso aproveitavam a folga e fotografavam-se para "viralizar" nas redes sociais. Por pouco pedi que me fotografassem também. Todavia, reparei que eram meninas e menores. Olhei atrás e reparei o mesmo adolescente que deixara a meditar, vindo em minha direcção num passo apressado, como que me quisesse alcançar.

Mesmo não confirmado que vinha ter comigo, abrandei o passo para metade da velocidade. Deixei-o aproximar-se até estarmos lado a lado.

_ Então, vens ter comigo, Salomão?

_ Sim. Disse-me que era escritor. Será que também escreve poesia?

_ Sim, Salomão, dentre os meus dez livros publicados três são versificações.

_ Eu gosto de poesia e gostaria de ser poeta.

_ Pois é. Os poetas são introspectivos e gritam no silêncio das palavras versos que escrevem.

_ Será que o pai tem um livro de poesia para me emprestar para ler essa manhã e devolver à tarde? _ Replicou.

Senti-me comovido. Cada palavra, dita quase a sussurrar, soava-me a um pranto daquela alma que não se abria.

_ Filho, tenho um livro para ti, mas não é poesia. É sobre a minha infância e adolescência. Quem sabe te seja útil? Podes vir comigo? Estou alojado no hotel que está à frente de nós.

Seguimos, eu procurando que me apresentasse o poeta que mora nele. Ele contendo as palavras o máximo que podia. Confessou que concluiu a décima classe e que tinha parado de estudar por dificuldades. Quando decidiu perguntar, o tema foi religioso.

_ O pai é crente? Eu sou da Igreja MEA.


Falei-lhe sobre a minha infância e juventude na Igreja Metodista Unida em Angola, cargo pastoral de Moisés.

_ Foi levada a Angola por missionários americanos e creio que haja também aqui em Moçambique.

A segunda pergunta do Salomão foi à entrada do hotel. Talvez tenha sido a sua primeira vez a adentrar um grande hotel e daí o espanto.

_ Posso entrar também? Será que me permitem?!

_ Tu és meu convidado, meu filho. Vem comigo a te levarei de volta à praia.

Recebido o livro, no quarto de hotel, deixei o Salomão a "Kitotar" sobre a brisa matutina do índico, contando que, terminada leitura do mesmo, venha a fazer de seus eventuais recuos grandes avanços em sua vida.

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Texto publicado no Jor. Angola de 07.07.2024

segunda-feira, julho 01, 2024

O QUASE CHEFE

 (Diz-se que "escapou ser nomeado")

Quando o amigo que trabalha e trafica informações no Gabinete do chefe lhe fwefenhou "vi o teu nome, vão te nomear", Ngolombole, contente, como nunca se lhe viu antes, foi à vizinha fazer kilapi de cerveja, cinco caixas; gasosas, três caixas - crianças e mulheres bebem pouco; vinho, um barril de cinquenta; porco, leitão de trinta e cinco quilos; frango e costeletas, duas caixas cada. Picanha e chouriço também, em quantidade e qualidade para quem, em breve, "será chamado chefe Ngolombole em todo o lugar".


- Porra!  Chegou a vez de quem sempre trabalhou e muito esperou. _ Disse aos amigos e convivas, mesmo com a Covid-19 a colocar-lhes entraves e com a polícia a rondar e a distribuir "chocolates e rebuçados", à moda Man-Paulito.

_ Os bongôs são invejosos. _ Proclamou outro, já encopado e trôpego.

Na segunda-feira imediata, dia em que a vitrine do organismo público em que labuta estaria prenhe de Editais, foi à boutique "Preto-e-fino" e fez "vale" de um fato escuro, como é quase preceito usá-los em cerimónias de empossamento ou outros de equivalente magnitude. A vestimenta estava completa: casaco de dois botões e duas fendas laterais, colete, gravata, abotoadeiras, calças, camisa branca, sapatos pretos envernizados, cinto de cabedal, peúgas, lenço de algibeira e graxa.

Ao lado da boutique, o ourives, que era seu conhecido, não ficou atrás e adiantou-lhe a crédito uma grossa mascote e uma forte corrente d'Ouro. Relógio dourando, embora com os ponteiros estáticos, ele já possuía havia anos e enfeitavam a sua banga. Daí para a barbearia foi meio-caminho. Felizmente, o aparo do cabelo e barba foram pagos a pronto, pois, antes de empunhar a tesoura, Kinavwidi, o barbeiro de origem congolesa, procurava confirmar junto de seus clientes se tinham "mbongo na maboko". 

No dia do anúncio dos despachos de nomeação, duas semanas depois, viu-se a preto e branco que, afinal, o seu amigo e informante vira mal.

O nomeado foi Manuel Ngolombole Adão Kambundu e não ele, Adão Ngolombole.

Como pagar as despesas à vizinhança que já cobrava de 12 em 12 horas?