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segunda-feira, abril 22, 2024

CAPEÇ'ÁQUA!

Na minha segunda deslocação à China, acabei por recolher conhecimento mínimo de duas cidades, a capital Beijing e Xangai, tendo viajado de comboio rápido (350 Km/hora da capital à segunda, em cerca de 4 horas). Comparando com o nosso estádio (para eles) precário de desenvolvimento, há muito por andar. Se calhar, andar seja pouco, pois os mais desenvolvidos não estão parados. É preciso "voar" para chegar aonde eles estavam no final do século XX e cortar algumas etapas, o que demanda fazer-lhes uma kikonda, como se diz no meu bom Kimbundu.

Olhando para a aparente simplicidade do chinês comum, fico, às vezes, a reflectir no alcance da expressão "capeç'áqua", verbalizada por cidadãos chineses que trabalham em Angola para se referirem a trabalhadores braçais angolanos que resumem toda a sua acção a praticar ao que lhes é orientado, sem pensar em inovar ou sair do lugar-comum. Fora do sentido dislateiro, a expressão encerra um sentido crítico e apelativa a acções reflectidas e inovadoras que todos - braçais, médios, graduados, mestres, doutores, gestores, administradores, titulares de cargos políticos e juízes e legisladores - devemos levar em conta e com seriedade. Afinal, o que quer dizer "capeç'áqua" e por que se referem eles a nós desta forma?

"Os gregos foram ao Egipto aprender ciência e aritmética. Desenvolveram-nas e aumentaram o seu orgulho grego" (Chiziane, 19.04.24).

A China, civilização milenar, que há uns 50 anos ainda era um país marcado pela agricultura e ruralidade, é hoje uma nação desenvolvida e que pleiteia com os ditos "de 1° mundo": bem estruturado, limpo e organizado, imperando a inovação e o cumprimento da lei. E nós?

Temos mandado delegações à China para ver em que nível estão e negociar acordos e tratados. Temos enviado jovens estudantes para aprenderem com eles e replicarem as boas coisas que abundam por lá. Temos comprado isso e aquilo, da bugiganga à maquinaria. Temos solicitado, até se enrouquecerem as vozes, que venham investir com o dinheiro deles no nosso país, promovendo empregos e conhecimento na nossa terra. Temos-lhes abertas as portas, temos-lhes a terra para cultivo, o mar para a pesca (ah! como detesto a depredação por arrasto que as embarcações chinesas fazem nos nossos mares), demos-lhes as florestas e savanas para explorar madeira, demos-lhes acesso à virgem... E nós o que ganhamos com isso?

Cultivam aqui, mas levam toda a comida e continuamos a comprar arroz em kandimbas e óleo alimentar em copos de reco-reco. Ah! como eu gostaria de esquecer os tempos de tribulação vividos nos anos oitenta do século finado!

É certo que a nossa população aumentou e os demais predadores de peixe, como as focas, também se multiplicaram, sem que tivéssemos encontrado as melhores formas de manter um equilíbrio dos cardumes a favor dos humanos. Os barcos com licenças passadas a angolanos, mas operados por chineses, praticam rapina nos nossos mares e rios e até a kabewnya escasseia no prato. Levam a nossa madeira e compramos-lhes os móveis a preço de ouro. A pedra vai bruta e compramos-lhes os pisos, as lareiras, os tampos, as escadarias e as campas.
Pedimos-lhes, em nome de todos os angolanos, dinheiro emprestado para refazer as nossas estradas, ponte se demais equipamentos sociais e de apoio à economia.

Com mesma mestria de "capeç'áqua", alguns iluminados deram-lhes a volta e pediram estradas para "inglês ver" que, passados poucos meses, "os buracos passaram a ter menos asfalto", como satirizou, e bem, Manuel Rui Monteiro. Tudo a favor do ego pessoal e a desfavor do país. Ganhámos, com isso, gente endinheirada que nem sabe ser rica e empobrecemos o país com dívidas milionárias per capita. Os chineses e o Estado chinês ganharam e ainda ganham, com juros e tudo. E o que ficou para nos orgulharmos?

_ Capeç'áqua! _ Diria um presidiário chinês desterrado em Angola em cumprimento de pena correccional.

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Texto publicado pelo Jornal de Angola a 16.06.24

segunda-feira, abril 15, 2024

AS "VIÚVAS" DE DEIRA

_ Por que há tantas viúvas em um país próspero e sem guerra? - Ter-se-ia perguntado Mangodinho se nesse dia não usasse da circunspeção, enquanto encomendava uns trapos em Deira, uma área localizada na região leste do Dubai, que é das partes mais antigas e históricas da cidade, também conhecida por seus souks (mercados tradicionais), como o Gold Souk e o Spice Souk, bem como por suas ruas movimentadas e vida comercial vibrante.

Aos olhos de Mangodinho, é uma espécie de São Paulo ampliado e melhorado, onde se expõem à venda, vestuários, maquinarias diversas, electrodomésticos, cosméticos, enfim.

As supostas viúvas, no imaginário dele, andavam em grupo, cobertas do cabelo às sandálias, mas falam alegres como se a vida lhes corresse bem e compravam vestuários de uma seda bem elaborada e a bom preço.
_ Isso nê possível! _ Exclamou, desta vez, de forma audível.
_ Nê possível o quê? - Indagou Lito com quem andava.
_ Já viste essas mamãs que enterraram maridos ou parentes próximos? Ou são todas irmãs que enterraram o pai que era dono de muitos bois, café, tractores e camiões?
_ Estás a supor que sejam órfãs de um ricaço daqui? - Brincou Lito que levava Mangodinho sempre na galhofa _ veja bem. O preto que tu conheces como luto aqui pode ter outro significado. Já que compraste um "buba", que dizes ser de última geração, vamos ainda ao motor de buscas.
Na cultura ocidental, o preto simboliza tristeza, luto e morte, mas é também sinónimo de mal e pessimismo. Pode ainda ser entendido como elegância e formalidade.
Em África representa vida e renascimento, além da morte ou ainda fertilidade.
Na China, quando vires alguém vestido de cor preta, está a transmitir estabilidade ou poder.
Os hindus, uma religião indiana e praticada também em outros países da Ásia a cor preta é associada ao Senhor Shiva, um dos principais deuses da religião.
_ Aqui, e em outras partes onde se professa o islamismo, essas roupas chamam-se niqab ou burca e a peça que cobre da cabeça ao pescoço, é o hijab. O niqab preto significa que a mulher é modesta e está a proteger a sua privacidade. Não é viúva como no Sambizanga ou Kalulu. - Explicou Lito que tinha mais anos de luz do que Mangodinho que tateava ainda no conhecimento de outros povos e culturas distintos dos seus conterrâneos.

segunda-feira, abril 08, 2024

DESENCANTADOS NA CHINA

Meso-a-Kekele e Inama Yendele são irmãos biológicos de mesmo ventre, embora trazidos ao mundo com elevado espaçamento. Dizem mesmo que Meso-a-Kekele, o mais velho, tem idade para ser pai do irmão kasule, Inama Yendele, que é 25 anos mais novo.

Nos seus 50 anos, 33 dos quais vividos com intensidade laboral e experiência acumulada em viagens pela terra de nascimento e mundo circundante, Meso-a-Kekele é, pode dizer-se, um homem de meias-aviadas e carregador de várias experiências de vida. Bem-apessoado, costuma ser apelidado de clever e visionário. Já o seu irmão derradeiro é um tanque aberto ao conhecimento, um explorador de inovações e poço fecundo de força, mostrando-se sempre pronto a acompanhar o irmão nas viagens de negócios e compras que nunca são de pouco peso e volume. Os dois se constituem em chave e fechadura, daí serem sempre vistos juntos na última dúzia e meia de anos.

No dia em que Mangodinho os viu na Ásia, fazia frio intenso e sol preguiçoso. Era domingo sem o vai e vem de pessoas apressadas como ocorre de segunda a sábado. Nas árvores sem folhagens os pássaros piavam sem intensidade, pareciam cansados ou sufucados também pela temperatura que fazia desenhos na pele dos humanos. Nos restaurantes os frequentadores lagarteavam-se aos raios de sol que eram crianças para um termómetro que exibia o mercúrio a 5 graus celcius.

A capital do país da Grande Muralha e da Praça da Paz Celestial "Tiananmen" eram para Mesu-a-Kekele o mesmo que um cumbu¹ para o dono da casa. Conhecia-a bem. Ao contrário do mui viajado irmão,  Inama Yendele fazia a sua segunda viagem àquelas terras, desta vez mais exposto e disposto a caminhar e explorar o que se lhe apresentava aos olhos.

  • Ó jovem, estás a ver, não é? Esses gajos, mesmo sendo pequenos em estatura, são capazes de fazer coisas enormes e esteticamente encantadoras. Vês, nê?1 - Explanou o "Senhor que Vê", atiçando a admiração do jovem "Pernas que Andam".

_ Ó mano, a única coisa aqui que me dá prazer é estar consigo. Jurumemu, é única coisa. Viajo pelo que há no nosso país e tento situar-me aqui. Há muito de anormal.

Meso-a-Kekele franziu o rosto. Meteu-lhe mibangas atravessadas e limpou os óculos para aferir se ele estava a enxergar mal ou o irmão estava a ironizar.

_ Mas, ó rapaz, estás a dizer que fiz má escolha em virmos passar férias nessa terra? Ou são aqueles reles pedreiros que se revezam nas camas dos estaleiros que não te saem da cabeça? Desperta, irmão. Essa é a China real. Aqueles são cópias e escórias!

Sem pressão na fala. Aliás, Inama Yendele é descrito como lento a falar e ágil no passo, começou a descrever os seus 10encantos.

_ Veja bem mano, viajámos de carro mais de duas horas. Tirando as mudanças de direcção sem piscar, o que na nossa banda tem sido causador de acidentes, o mano sentiu algum buraco? Não vi semáforos apagados, nem montinhos de areia nas bermas, nem lixo, nem contentores a transbordar com porcos e ratos a desfilarem. Isso é para mim uma anormalidade perante o que estou habituado. Veja ainda, entrámos num shoping. Eram perto de 30 andares. O prédio da frente tinha 80 ou mais, fazendo das nossas famosas torres da Ngimbi uns autênticos kitungu². Subidos ao cume da torre de mais de duzentos metros e não vimos casotas de chapas no meio da cidade, nem lixeiras. O mano acha isso normal? Anteontem fomos àquela província cujo nome aparece em muitas quinquilharias. O rio deles, que é igual ao nosso Kwanza, corta a cidade pelo meio. Nos dois lados estão edificações que fazem os olhos se perderem na altura da floresta de prédios cheios de jogos-de-luzes e nevoeiro. É isso normal? E veja bem, mano. Às tantas, já não sei se trouxeram o rio à cidade ou a cidade abraçou o rio. Está a ver aquele prédio com árvores naturais por cima? 

Inama Yendele pôs travão nas perguntas e na fala que se fazia longa para sorver um pouco de ar que já fazia falta aos pulmões. Era também uma forma de confirmar se Meso-a-Kekele se sentia confortado ou aborrecido com o seu discurso.

_ Ó rapaz, estou a seguir a tua explanação. Quero ouvir até aonde queres chegar.

_ Então o mano acha que aquela estação de comboios, estupidamente grande, maior do que todos os aeroportos que já pôs a visitar é normal? Repare os detalhes dos edifícios, todos encurvados, uns com abóbadas no meio, parecem misangas³, outros parecendo que vão cair, estradas no fundo da terra como se tivessem sido escavadas por toupeiras, em cada vintena de adultos apenas uma criança, isso é normal? E olha, mano, tenho estado a reflectir bastante sobre aquela especialização em Arquitectura que me ofereceu. Acho que vou abandoná-la. Espero que não se chateie.

_ Vais abandonar uma formação que te pode dar nome e dinheiro? Deves estar a sabular, ó miúdo. _ Atirou-lhe o irmão quase impaciente. _ Explica-te lá e deixa-te de divagações de filósofo de bwala.

_ Ó mano, vê ainda esses prédios todos. Lhe parecem clássico-romanos ou helénicos?

_ Não. Nada a ver.

_ Parecem góticos ou renascentistas? 

_ Nada a ver.

_ Então, kota. Isso é futurologia. Eles implantam o inexistente. Viajam pelo futuro. Nós é que estamos sempre a estudar o passado, a recuar séculos como se a vida e a ciência estivessem atrás de nós. É por isso que vou abandonar a especialização em Arquitectura. Ou o mano acha isso uma normalidade para a nossa anormalidade?

Mesu-a-Kekele, homem que já vira quase tudo em sua vida, respondeu-lhe apenas com um abraço e uma frase sussurrada ao ouvido.

_ A vida é futuro. Vai em frente quem se antecipa no futuro!

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Publicado pelo Jornal de Angola a 12.05.24

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1-Lê-se tchumbu. Pequena horta contígua à casa.

2- Palhota

3- Lê-se missangas

segunda-feira, abril 01, 2024

PERDIDOS NO DUBAI

Desde a sua primeira ida, há já bons pares de anos, que Mangodinho se negava em contar as suas peripécias nos Emirados. Hábil inventor e contador de cenas, de sua boca já saíram das mais ousadas às mais arrojadas narrativas, umas verdadeiras, umas de ouvir contar e outras ainda paridas pela sua fecunda imaginação de filósofo de aldeia rural, mas nunca se atreveu a contar ou escrever sobre a vida nos Emirados.

O sol que os recebeu naquele dia de descanso semanal obrigatório era rebelde. Isso mesmo. Nos céus azuis parecia envergonhado, mas o calor que passava era de 36 graus ou mais. Mangodinho, palito na boca, a picotar nos dentes cariados os pedaços de pão que comera no avião, ia acompanhado de Lito, amigo há já nove anos que conheceu no trabalho.

Chegaram bem. Felizmente. O destino foi Dubai, aquela terra rica e vislumbrante que há cerca de cinquenta anos foi território seco e arenoso de pobres pescadores e montadores em camelos, um nada comparado às nossas bwalas aos olhos de hoje.

_ Ó mano, vamos ainda ao Mall procurar algo para comer. _ Convidou o Lito que se dizia apossado de fome.

Andaram pelo imenso shoping uns bons quilómetros à procura de restaurante. Melhor, prevenindo-se de uma possível distração que os levasse a não reconhecer o ponto de saída, Lito e Mangodinho decidiram, antes, recolher as coordenadas geográfica via Google. Nisso, o pensamento foi simultâneo e até pareciam ter sido inspirados por um deus daquelas terras recomendadas ao Ismael da Bíblia e Corão.

Cima a baixo, ora pelas escadas rolantes, ora pelas escadas normais que se achavam largas, limpas e arejadas, percorreram o gigante shoping em busca de pitéu que acabaram encontrando quando já forças inexistiam para mais andar.

_ Epá, vamos comer o que houver. Já não tenho pernas para mais procura, nem energia que permita mais espera. _ Disse desta vez Mangodinho acossado por uma dorzita na perna defeituosa.

Lito, homem de massa muscular a apontar os cem ou mais quilos, concordou jogando o seu corpo pesado sobre a cadeira que se achava ao lado.

_ Would you mind give us the menu, please?! _ Indagou Mangodinho ensaiando o seu inglês aprendido na "South" em Sea Point.

_ I'm sorry. It's our breaking time to pray. We'l be back at 6h30. _ Informou o jovem garçon (waiter na língua internacional que eles se esforçam em aprender e atender os visitantes de longe).

Mangodinho e Lito entreolharam-se.

_ E agora? _ Questionou Lito.

_ Bem, eles estão no Ramadão. Se é break time deve ser geral. Só temos uma saída que é aguardar.

Com um lago artificial pela frente onde canoas e pequenas embarcações de recreio desfilavam, os trinta minutos voaram e deram lugar a um impressionante espetáculo de jactos de água e luzes projectados piscina abaixo.

_ Epá, esses gajos estão longe, meu mano. _ Admirou Lito a gaguejar.

_ Temos de registar isso e mostrar aos miúdos lá na ngimbi para começarem a sonhar com o futuro que para os outros já é presente. Admira-me como é que os outros fazem arquitectura futurista e nós, nas nossas escolas de arquitectura e engenharia civil, recuamos ao período helénico, clássico-romano, gótico e outras antiguidades. _ Respondeu Mangodinho, algo filosófico. 

O momento levou-o ao tempo em que estudou e era apaixonado pela história das civilizações e filosofia.

Não demorou para que o waiter lhes desse o pitéu que devoraram com um apetite de quem vive escassez prolongada.

Barriga atendida, relógio avançado na hora, corpo reclamando repouso de uma viagem que tinha ainda milhares de léguas pela frente, a decisão estava tomada: regressar ao hotel pelo caminho gravado nos telefones.

Entre recordações de letreiros e pessoas que se revezaram nas lojas e entroncamentos, caminharam um longo caminho que mais se parecia labirinto. O Google os levava para mesmos lugares, sem nunca encontrarem a porta de entrada do hotel. Foi depois de já não restarem forca nos pés, nem comida no estômago que decidiram parar um daqueles carritos eléctricos que ajudam os idosos e as crianças a chegarem mais cedo ao destino, pedindo que os levasse de volta ao oculto hotel. 

Lito, anglófono reconhecido e com muitos anos de Damaralândia passou à frente da tentativa.

_ Good afternoon, Sir! Please can you ride us to the Hotel? We lost the way.

Diligente, filho alheio, o homem mandou-os subir como faz com os velhotes e crianças cansados de tanto caminhar.

_ Come on. _ Atirou sorridente.

Não é que a entrada traseira ficava a não mais de trezentos metros? Há momentos em que não basta dominar a língua universal e o caminho do Google. É preciso ser vijú também!


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Publicado no Jor. de Angola de 19.05.24