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segunda-feira, janeiro 29, 2024

MENTIRINHAS DE JOÃO E CONSELHOS DE JESUS

Um dos edifícios que conta a história do Kwitu, depois da guerra pós-eleitoral, dizem ser a Catedral da Paz, templo da Igreja Evangélica Congregacional de Angola, construído pelos crentes citadinos depois do cerco à cidade. Aqui cultuaram e continuam a cultuar dirigentes inesquecíveis como Sabino Salongue, Jão Marcos Bango, Celita Adolfo, Samuel Catumbela, Alice Kakeke (de feliz memória), Isabel Changuendela, Cândida Celeste, entre tantos outros. A lista é grande e estende-se aos filhos, netos e outros evangelizados todos os dias.

Mas é sobre o João, um menino engraxador do Kwitu, e seus amigos Miguel e Kasoko que vos conto.

Encontrei-os à entrada de uma unidade hoteleira que dá de caras com a Catedral da Paz. O João, o mais expedito, mal viu o carro parar, endireitou a cara, fazendo uma de coitado e faminto, seguido de um sinal pedinte.

_ Me dá lá só kapão, faxavori! _ Terá soltado. Algo assim.

Apreciei as suas vestes e o cabelo pintado.

_ Porra! Maltrapilho e cabelo pintado, deve ser um pequeno grego. _ Ensaiei sem o soltar. 

Fiz resistência em baixar o vidro lateral e decidi mesmo não atendê-lo.

Esperto (isso mesmo), o rapaz que vim a descobrir que responde por João, cônscio de que a sua artimanha tinha caído ao ralo, olhou para o lado oposto e meteu-se a assobiar. Talvez recitando uma música ou um hino da "nembele" IECA, o que tocou a sensibilidade do meu companheiro de viagem.

_ Camarada Matoumorro, o rapaz convenceu-me. Vou dar-lhe uma moeda. _Disse-me o camarada Jesus Cortex, sacando duas notas de Kz 200 que dividiu aos três: uma para o artista de cabelo louro e outra para o Miguel e Kasoko que são irmãos.

Estacionada a viatura, eis que os rapazes reapareceram.

_ Pai, vêm engraxar sapatos. _ Chamaram em coro.

Dividimos-nos. Eu dirigi-me ao João e o camarada Jesus ao Miguel a quem soltamos conversas sobre a importância de frequentar a escola, mesmo ajudando os pais com menos poder para sustentar satisfatoriamente os filhos.

_ Ó  meninos, o quê que fazem com o dinheiro?

_ Nós ajudamos a mamã. Engraxamos, eu e o meu irmão, e damos o dinheiro à mamã. _ Respondeu o Miguel, demonstrando inteligência.

Acrescentou que a caixa do seu irmão havia sido roubada e estavam a trabalhar com apenas uma, a ver se a mamã juntava o dinheiro que fazem para mandar ao carpinteiro confeccionar mais uma caixa de engraxador. Ficamos comovidos.

_ Vocês estudam? _ Indaguei. Fazia-o sempre no plural.

_ Eu estudo, a quarta classe. _ Respondeu o Miguel.

_ Eu estudo a sexta. _ Complementou o Kasoko, o irmão mais velho do Miguel.

_ E tu João?

_ Eu também.

O João era o mais vivido. Noutro tempo, dir-se-ia o mais espertinho. Tinha argumentos para tudo. Era resoluto e um pouco ameaçador em relação aos outros. Chegámos a cogitar que no tempo das kitotas seria, no mínimo, um sargento, fosse  num exército ou numa milícia.

_ Mas, ó João, tu com cabelo pintado entras na escola? O professor deixa-te entrar?

Os amigos, sabendo que ele estava a faltar à verdade, começaram a rir-se dele.

_ Estás a rir o quê, sô burro? Ó pai, eu estudo. Podemos ir na minha casa para tirar certeza com a minha mãe. _ Desafiou-os.

_ Ok. Não precisas de te exaltares. Vamos lá. Que classe então estudas e a que hora vais à escola? _ Amenizei.

- Ó pai, eu estudo de manhã, mas hoje não fui porque não tem sabão para lavar a minha bata.

Os dois amigos riram-se novamente das suas invencionices, elevando novamente os seus nervos aos píncaros.

_ Vamos então na minha escola para tirar certeza. Vamos. Ó Miguê, você assim já está a gozar demais. Vamos na minha escola.

_João, acalma-te, filho! Diz-nos quem é a tua professora?

_É professora Maria! Ó pai, esse burro fala à toa. Ele é que não estuda. A vida dele é só pedir dinheiro nos mais velhos. _ Acusou o João ao Miguel que parecia de sua idade. O Kasoko, que disse estudar a sexta classe, parecia dois ou três anos mais velho e era quem menos falava. Era o que estava sem caixa de engraxador.

Nisso, os dois irmãos que frequentavam a escola começaram a ler os placas de identificação das lojas e demais sinalética, desafiando o João a fazê-lo também. Apontaram para um atelier e desafiaram-no.

_Ó pai, vamos tirar as provas. João, se estudas ainda lê ali.

Encurralado, o João inventou que não lia à distância.

_ Ali em cima não vejo bem, mas nas letras de baixo está escrito arfaiate.

Foi a prova de que era apenas um menino esperto, mentiroso e não alfabetizado. 

O camarada Jesus, tal como o seu homónimo nascido na pequena cidade de Belém da Judeia, pegou a mão do João e levou-o para uma catequese, daquelas que um menino com todo o futuro ainda pela frente precisa de ouvir. No final, deu-lhe mais uns trocados.

_Quando voltarmos ao Kwitu quero encontrar-te a estudar. _ Recomendou Cortex, esperando que João cumpra o conselho de Jesus.


Publicado pelo Jornal de Angola do dia 11.02.24

segunda-feira, janeiro 22, 2024

KITOTAS NO LUVILI

Rodé e Laura, no Luvili, são mães vendedeiras. Os filhos são ainda pequenos, mas têm os irmãos e outros parentes, infantes e adolescentes, a vender produtos agrícolas e sacaria à beira da estrada que liga o Wambu ao Kwanza ao Sul. 

A beleza do monolítico estendido na sua grandeza aos olhos e a expressividade da praça rural em que se expõem ao automobilista e passageiros produtos do campo, como cebola, alho, tomate, abacates, kapungu-pungu, milho, cenouras, mel, banana, rabanete, pimentos, mangas, etecetera, quase forçam a paragem até dos mais apressados.

_ Esses meninos não estudam? _ Indaguei preocupado com o número de crianças vendedeiras em dia e horário escolar.

Um dos rapazes que cantarolava buscando frequeses tentou mesmo ludibriar-me.

_ Tio, eu fui de manhã à escola e vendo à tarde para ajudar os meus pais. 

A um desatento, sua alocução parecia carregada de razão. Passei a mão sobre o cabelo dele, em jeito de carinho, e notei que há muitas semanas não recebia a visita de um pente, nem mesmo uma lavagem cuidada.

_ Ó filho, não mente! Se tivesses ido à escola o teu cabelo estaria limpo e ainda penteado, pois o professor não deixa entrar assim na sala de aulas. Ou é mentira? _ Atirei ao julgamento popular.

_ É verdade! _ Responderam as manas, assim como os seus comparsas.

Dito isso, o rapaz recolheu-se e fez-se desaparecer na multidão, indo apregoar o "ó pai, me compra lá só manga" em outra freguesia.

As duas manas (na aldeia quem nasce primeiro é mano) tentaram, ainda, sair em sua defesa.

_ Ó pai, esse tempo, você pode estudar muito, sê padrinho na cozinha, você noé nada e nó vai a quarquer lugar".

Abri o livro da minha vida, desde tenra idade no Lubolu. Mostrei-lhes imagens reais (no telefone) do sítio em que nasci e imagens gravadas na memória, nunca levadas a texto. Preguei sobre o quanto a escola, mesmo sem padrinhos e tios, me levou aos areópagos lubolenses.

_ Minhas filhas, sem padrinhos também se pode ser grande. Por outra, o padrinho na cozinha pode aparecer lá em frente, mas se você não souber comer, para nada valerá. Mandem sempre os vossos filhos à escola pois também poderão ser administradores e governadores do Wambu.

Informadas e sentindo-se convencidas, pediram-me uma foto para perpectuar o momento. Fui ao carro pegar um livro que conta parte de minhas peripécias e deixei-as a ler Kitotas: recuos e avanços.


Publicado no Jornal de Angola, 18.02.24

terça-feira, janeiro 16, 2024

UM MIRAGE* SOBRE A GRUTA

 

O grupo de reconhecimento profundo tinha progredido no terreno durante o dia todo, entre atalhos, selva densa, asfalto e picadas. Tudo devia ser feito em segurança e máxima discrição para não serem vistos nem pela composição de três aparelhos circulantes, nem por eventuais sinais deixados na natureza como poeira e fumo. 

A chuva, fugida de Luanda e instalada permanentemente no Kwandu nyi Kuvangu,  revezava-se com curtos instantes de sol intenso que magoava as lentes oculares, tornando lenta a marcha que foi completada após penosas 14 horas. Paragem para abastecimento Logístico houve apenas uma durando não mais do que hora e pico.

Cansados, mas confortados pelo sucesso da parcela da missão, o grupo liderado pelo Comandante Jesus Cortex, teve outros desafios no terreno. Era preciso separar os integrantes em dois subgrupos e encontrar abrigos seguros para pernoitar que não denunciassem a presença deles nas margens do Rio Kwebe.

Conhecedor da área, o Brigadeiro Cortex e o seu Estado-Maior, Major Buta, isolaram-se dos demais e estudaram minuciosamente o mapa topográfico da região. Analisaram, perante os olhos e ouvidos atentos do especialista em comunicação, as possíveis vulnerabilidades para intrusões e saídas inimigas, assim como as zonas de maior opacidade à penetração terrestre e observação aérea. 

Havia uma kamunda com rochedos e uma gruta que podia servir de abrigo durante a noite.  Um único desfiladeiro aberto por animais e caçadors conduzia ao local que atenderia os três dormitórios. Minas defensivas foram plantadas a 150, 100 e 50 metros no desfiladeiro para prevenir uma eventual penetração inimiga.

Encontrado o local, desfizeram as mochilas para retirar os mantimentos. Apenas parte delas. Era preciso atender o estómago que reclamava ração fria. Não foguearam.

_ Fazer fogo é dizer estamos aqui. _ Preveniu o Estado-Maior.

O Capitão Matoumorro, "Radista" como é conhecido entre os pares, encostado em um penhasco, conferia as mensagens recebidas do Comando Central e as repassava aos colegas, depois de devidamente descodificadas e filtradas.

_ Apenas as essenciais para a nossa missão. _ Alertou antes da distribuição. 

A noite até podia ser tranquila. Pelo menos as "camas" eram, apesar daquele cheiro de excremento de canta-pedras que tagarelavam intermitentes por perto. Havia somente um senão. Um Mirage sobrevoava a o monte de tempo em tempo, obrigando-os a permanecerem em alerta e prontidão defensiva durante toda a noite. 

Não houve confrontos, não! Porém, também não houve sono até que o Mirage foi abatido às 07h01 da manhã pluviosa. E chovia como nunca!

=

*mosquito incómodo em quarto de hotel.

Publicado pelo Jornal Cultura a 17.01.24

segunda-feira, janeiro 08, 2024

À PEDRA III

(Memórias dos princípios dos anos 80 no Lubolu)

A minha infância foi atravessada por diversas vivências que configura(va)m o nosso contexto vivencial tipicamente angolano. Uma delas foi assistir à transformação do milho em fuba (farinha).
As mamãs, ainda jovens, combinavam o esfarelamento, o demolhamento e a feitura da fuba sobre pedra, usando o "martelo triturador" esculpido de um galho de árvore com a forma angular (L ou V) a que chamávamos e mantém o nome de handa.
Os batimentos sincronizados faziam música que se juntava às canções que elas entoavam para buscar forças e narrar a história e estórias do nosso povo convertido em "literatura oral". Era uma cooperação que não deixava ninguém para trás. E nós, filhos, inocentes e envoltos em brincadeiras, sempre perto delas, gostávamos do matete que se fazia no final da "moagem" e das broas feitas com banana.
A cunhada Emiliana, que era natural do planalto angolano (dizíamos que era do Huambo), tinha perícia em confeccionar broas enroladas em folhas de bananeira para as assar. A farinha usada era aquela granulada e ainda por secar.
Enquanto as mães moíam o milho, nós tínhamos a missão de arranjar conduto complementar ao que levavam de casa, normalmente kizaka, jihasa, um pedaço de peixe ou carne*. Juntava-se tudo. Cada uma dava um pouco de fuba e um pouco de conduto e fazia-se um repasto conjunto.
Recolhíamos ervas comestíveis, como as folhas de uma árvore que produz resina idêntica ao do quiabo, também designada "xingo", folhas de mulondolo e fazíamos armadilhas com visgo (cola de borracheira) para apanhar passarinhos que caiam bem num almoço sob pedra.
Uma boa caça era motivo de satisfação e orgulho de nossas mamãs que eram mamãs de todos os filhos da aldeia, assim como o matete e os passarinhos que apanhávamos.
* de caça grossa ou pequenos roedores (rato da mata, mangusto, paca, canta-pedra, esquilo, etc.).


Publicado pelo Jornal Litoral de 25 de Janeiro 2024

terça-feira, janeiro 02, 2024

KITOTAS SOBRE O RIO KWANZA

O proprietário do Restaurante Flutuante, ao Kalumbu, já lê Kitotas: recuos e avanços.

Mal viu a capa, perguntou:

_ Será que são cenas semelhantes às do Kwandu-Kuvangu? 

_ Há semelhanças, mas essas são kitotas vividas em primeira pessoa no Lubolu _ respondi-lhe, enquanto nos abraçávamos. 

_É preciso que registemos o que vivemos. Não é correcto que conheçamos mais a História de Hitler e do seu Ministro da Propaganda do que a História do nosso país que é o somatório de várias histórias _ Rematou Chilala, uns dos jovens que mais aposta no turismo.