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sexta-feira, abril 21, 2023

NANANAS DESSE TEMPO

Não se lhe conhece outro nome senão Nanana. Era meu primo, nascido na década de 50 do séc. XX. Seu pai, também do Lubolu, veio cedo a Lwanda, acompanhado pelo filho primeiro, ainda infante, tendo a graça, embora iletrado, de ser tornar jardineiro de primeira classe do Banco Nacional de Angola. Nos anos 80, jardinava na casa do Governador do BNA e, quando pudesse, dava uma perna nos aposentos lwandenses de Sam Nujoma, a caminho do Palácio, onde recebia em troca alguma gorjeta e roupa de fardo que dividia com os familiares.

Nanana, de quem se desconhece o nome oficial e nem se sabe se alguma vez teve um bilhete de identidade, chegou ainda imaturo à grande capital, sem vícios. Porém, em vez de seguir o esforço do progenitor que augurava fazer dele um Grande Homem e os caminhos de outros meninos do seu tempo que amavam a escola e a igreja, cedo Nanana se tornou um dyamporô, inimizando-se com a escola, as profissões e os bons costumes, preferindo colocar-se à margem da sociedade.

Quando o conheci, nos anos 80, Nanana era um adulto medonho e desprezível, escória que envergonhava a família. Dizia-se que vivia entre as barrocas da Boavista e pescarias da Ilha de Lwanda com seus comparsas da Kangonya e kapuka.

Quando se fizesse à casa do pai Falela Nganga, ao Kaputu, era para impor terror aos que encontrasse e à madrasta Nzamba-a-Lumingu, que, temendo actos delituosos que a pudessem molestar, aliviava a despensa a favor do bandido-da família que, acto seguinte vendia os concorridos e raros géneros alimentícios na primeira esquina para, com o dinheiro arrecadado, ir entorpecer-se e ganhar coragem para outros actos de banditismo.

Sem tempo para se corrigir, mesmo recebendo conselhos como chuva d'Abril, morreu nos anos 90 como um cão-vadio, nas barrocas que sempre o acolheram a vida toda. Sem parentes por perto e sem glória. 

Quando um dos consortes avisou a família sobre o seu perecimento, já haviam transcorrido semanas. O cadáver, sem identificação, teve de ser procurado de morgue em morgue e de gaveta em gaveta.

Infelizmente, ainda vejo em muitas famílias alguns adolescentes e jovens desse tempo, cujos pais se esforçam árdua e tenazmente em dar-lhes boas escolas, saúde e mantimentos, a seguirem as peugadas do meu primo Nanana. É tempo de pararem, beliscarem-se e redefinir o caminho. Nada ainda está definitivamente perdido, desde que reconheçam estar na rota errada e recomeçar. A Bíblia Cristã diz que Paulo (Saulo), o apóstolo e fervoroso missionário itinerante, participou, ad initio, no apedrejamento de Estêvão que fora discípulo de Jesus (Actos 8: 1-3). Usando, porém, a razão, Paulo arrepende-se e tornou-se num dos pregadores e propagadores mais respeitados do cristianismo.

É para esses jovens de hoje, cujas condutas deixam os pais em desalento e rios de lágrimas, que anelo fazer chegar a triste estória do meu primo Nanana que deitou ralo abaixo tudo quanto o seu pai procurou construir e dar-lhe de mão-beijada.

sábado, abril 08, 2023

KWITU KWANAVALE E O MEU REPRESENTANTE


Lembrei-me, mais uma vez, do meu primo Zito ou Sabalu Kambota. Era o mais intrépido do seu tempo, na minha família. Foi à tropa aos 18 ou 19 anos, participando de encarniçados combates no Munyangu, rota Vye-Moxiku, ao longo da ferrovia que, ao tempo (anos 80) era o ex-libris da Unita.

Uma vez, em Lwanda, depois de baleado no tornozelo (combate em que foi apagado o kwacha Tembi-Tembi), contou que a Brigada (XVIII) de Desembarque e Assalto, a que pertencia como "infanteiro", tinha escorraçado o inimigo do Vye ao Moxiku, atingindo a região de Kazombo, Lunge-Bunge e Rio Longa.
Atingido no tornozelo direito, na batalha que eliminou o temível comandante kwacha Tembi-Temji, foi gozar uns dias de repouso em Lwanda. Estávamos no ano da Conferência dos Países Não Alinhados e os que eram jovens sabem.
Foi feita uma apertada rusga. No Kwandu nyi Kuvangu havia uma tarefa patriótica de grande importância histórica.
O meu primo Zito ou Sabalu Kambota foi apanhado na esquina da Rua 10 da Comissão do Rangel, sem a Licença Militar que estava em casa. Não teve tempo de escapar e nem lhe foi dada a oportunidade de pegar e apresentar os documentos.
- Sube na quintal nda jeep, num suja peneu! - Ordenaram apenas os homens do PCU que eram de poucas palavras.
Apercebendo-se, depois, que ele era um militar já muito "cacimbado", foi compulsivamente levado ao KK, onde continuou a sua valentia, não se acobardando perante o poderio do fogo inimigo das SADF e seus lacaios da Njamba.
Esteve em todas as frentes e batalhas de Mavinga e Kwitu Kwanavale. Falou-me de ter voltado a atravessar o Rio Longa que tinha conhecido no Moxiku. Na simbiose entre "guerra e virilidade", disse ter deixado um rebento no Kwitu Kwanavale a quem atribuiu o nome de Adriano (seu irmão mais novo).
Quando já ninguém contava com o seu regresso, vimo-lo chegar, em 1992, desmobilizado e animado para uma nova vida, ostentando várias medalhas militares (outorgadas pelos governos de Angola e de Cuba) por ter participado heroicamente nos mais importantes momentos da História Militar da década de 80 (Se. XX).
Desmobilizado, sem kit de sobrevivência, sem formação adequada, sem apoio para a reintegração social, emhora contando com o apoio dos familiares em Lwanda e Lubolu, Sabalu Kambota "Zito" fazia o negócio de compra e revenda de macroeira entre o Kuteka (Lubolu) e a Praça das Corridas, em Lwanda, vivendo a sua vida de pacato cidadão que apenas pretendia viver o tempo que lhe fosse possível, sem mais ouvir explosões e ver homens despedaçados.
Uma vez, saindo do seu Kuteka e a caminho de Lwanda, o camião em que seguia capotou. Perdemos o nosso militar mais intrépido, o soldado mais condecorado de então na minha familia.
Apesar de assinar Sabalu Kambota, era o 1° neto do Soba Ñana Ñunji Kitinu ou Kanyanga, sendo o sobrinho mais velho da minha mãe. É dele, primo Zito, que me lembro e homenageio quando se assinala e festeja o 23 de Março (de 1988).
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Texto publicado no Jornal de Angola de 02.04.2023

sábado, abril 01, 2023

O MOMENTO FILANTRÓPICO DO KOTA KALAMAVU

A garrafa, que mora na garrafeira há já ano e meio, ganhou o nome de Kalamavu. É, na verdade, uma desconstrução ou corruptela do nome verdadeiro do cavalheiro que a ofereceu ao zelador de coisas ímpares.
Encontraram-se na Marginal do Dondo, aonde o feriadão alusivo ao dia dos heróis do Kwitu Kwanavale os empurrara para espairecer numa tarde de sol intenso e suor a molhar-lhes as vestes. Aliás, o Dondo é assim: o sol se parece a labaredas que provocam um calor de assar ikusu e xitu de caça.
O kota Kalamavu é "Kisamista" e o narrador é lubolense, dos lados da fronteira com a Kisama. Encontraram-se ali, de forma inesperada, embora carreguem mais de duas décadas conhecendo-se à relativa distância.
Kalamavu já vice-governou e Sanda Mwenyu jornalisticou numa FM de Lwanda. Foi nesse tempo que se conheceram e criaram afectos (mais o mais novo pelo dikota). Outros episódios profissionais estiveram próximos de os colocar em mesma equipa, mas apenas escaparam ser colegas. Quando Kalamavu estava a sair, Sanda Mwenyu estava a entrar.
Ao se rencontrarem na Marginal do Dondo, primeiro trocaram olhares, como fazem os canídeos a marcar terreno e a se certificarem se já tinham estado naquele lugar.
- Será, não será?! - Ter-se-á interrogado no seu íntimo.
Sanda Mwenyu pegou coragem. Aquele atrevimento dos mizangala educados. Levantou-se e foi ter com o Mwadyakime. Se fosse reconhecido e se ficasse por aquele acento e conversa de bar, xinini, como se não visse o mais velho, na tradição deles seria problema. Equivale ao que os nortenses do Wiji chamam "pocalizar" o mais velho. Por isso, endireitou o colarinho e foi ter com ele.
- Com licença. Boa tarde, mais velho! Calculo que seja o papá da Vadinha!
- Sou eu, sim. Também és daqui?
- Não papá. Sou do Lubolu, mas os meus avós são kisamistas.
- Kisamistas de Kandanji, Mumbondu, Kixinje ou d'aonde? - Interrogou o sexagenário interessado.
- São da região de Kindongo. Depois foram ao Lubolu plantar café.
- Somos todos de casa, meu jovem. - Preludiou.
Estavam em mesas vizinhas. Cada com seu agregado familiar e suas conversas de fazer o tempo correr e esperar pelos assados ajindungados.
O mais velho Kalamavu, que fora visitar a sua terrinha umbilical, entregou-se à acção filantrópica. Primeiro apareceu uma vendedeira de calções, com todo o charme e marketing que lhe estava na cabeça para sair dali com os dois mil na algibeira.
Kalamavu pagou os calções mandou-a oferecer ao marido.
- Quero que tenhas algo para o jantar de hoje para os teus filhos. Vai em paz, filha.
- E os calções levo de novo?! - Estava incrédula a jovem, perante a acção incomum.
Ganhou o dia e terá ido, eventualmente, zungar noutra "freguesia".
Duas coisas tinha já garantidas: o dinheiro da janta e a possibilidade de agradar ao esposo com os calções ou revendê-los.
Depois, apareceu a mana do peixe escalado e defumado. Ikusu nyi jingwingi que, só de ver, faziam as glândulas salivares entrarem em actividade.
O kota Kalamavu comprou tudo e mandou pôr no seu carro, fazendo mais uma senhora feliz.
Sanda Mwenyu ia assistindo a tudo com elevada satisfação e dizia para si mesmo:
- Quando eu crescer também quererei agir assim.
Não tardou, chegou a sua vez. Uma voz, não muito distante, pronunciava o seu sobrenome. Levantou a cabeça e era o kota Kalamavu que estava com a vendedora de Folha Larga ao lado quem o chamava.
- Sanda Mwenyu, essa garrafa é para ti, meu mais novo. É o que a praça tem, infelizmente!
- Muito obrigado, Mwadyakime! Recebo-a com as duas mãos e faço preces para que onde saiu essa haja mais proventos!
O mais velho soltou um curto sorriso. O mais novo acompanhou-o no gesto. Soltaram-se outras conversas, nas duas mesas e famílias. Depois, o kota Kalamavu partiu, despedindo-se. Não se sabendo se voltou para a sua Kisama umbilical ou para o ninho permanente na grande cidade.
- Não abrirei essa garrafa. Vai ficar em casa e a conservar o valor simbólico que encerra. - Disse Sanda Mwenyu aos parentes que se preparavam para entorná-la goela abaixo.
É por isso que a Folha Larga está deitada na garrafeira, há mais de ano e meio, e até as empregadas já sabem que aquela não é uma garrafa qualquer que se calcula o valor pelo preço da loja. É pelo simbolismo que encerra que é das mais bem protegidas da garrafeira!

Dondo, Kambambi, 25.03.23
Publicado pelo Jornal de Angola a 09.04.23