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domingo, setembro 29, 2019

E SE EU FOSSE APENAS PROFESSOR?

 Eventualmente, fosse chamado kunanga ou biscateiro.

Certa vez, apresentando-me a uma jovem aparentemente esbelta mas cujo cérebro, cheguei a avaliar, era de gafanhoto, que me perguntou "o que é que eu era" e tendo-lhe respondido 'professor", a "cientista da petulância" teve mesmo a coragem de perguntar:
- Só és professor e não fazes mais nada?!
Tal é a forma mesquinha como os professores são muitas vezes encarados pelos entes sociais. Vamos ao...

s poucos.
Quando era jornalista no activo e ministrava aulas à tarde, a pergunta que as pessoas me colocavam quando se apercebessem das minhas ocupações profissionais era:
- Ah, tu és jornalista e dás aulas à tarde, nê?!
Vejamos: ser jornalista, eventualmente, por ser profissão liberal "equivale", no conceito de alguns, a um "não trabalho", pois para essas mesmas pessoas o trabalho significa passar todo o dia no local da prestação de serviço como o "fazem" os funcionários públicos ou colaboradores de empresas transformadoras/fornecedoras de produtos e de serviços.
Para os tais, ser, por exemplo, estivador no porto, pedreiro algures, desentupidor de fossas (também socialmente úteis) é o que equivale a ser trabalho/trabalhador, sendo o uso da força o maior qualificador profissional.
Em conversa com dois meus antigos mestres, foram unânimes num pequeno detalhe. Diziam eles que "ser professor já foi tido como trabalho de muito respeito e consideração social. Agora, desde que os fugitivos à tropa e outros sem habilidades para coisas mais sérias inundaram a nobre profissão de formar e transformar a nova geração, ela, a profissão, se tornou aos olhos de muitos como uma 'simples ocupação', um biscate ou 'refúgio dos que têm tempo de sobra"', fim de citação.
Já tive um período de aproximadamente cinco anos em que o regime de trabalho, a inexistência de escolas particulares de nível médio e/ou superior com aulas nocturnas e a distância entre o local em que trabalhava/habitava e a cidade mais próxima (Saurimo) me inibiram de "dar aulas". Nessa situação, eu era para as pessoas que retrato um trabalhador. No entender deles, entregava-me cabalmente ao patrão, à semelhança do que dizem fazer os funcionários públicos, bancários e outros.
- O fulano trabalha no banco xis. O beltrano trabalha no Porto do Dande. A sicrana trabalha no Maria Pia (hospital). O André dá aulas.
- A Andreia o quê que faz?
- É jornalista!
Vejamos o que me dizem/perguntam, agora que sou funcionário público e professor.
- Ai é? Trabalhas o dia todo e dás aulas à noite?
Veja bem. No entender deles, enquanto funcionário do Estado (administração pública), trabalho. Já como professor, mesmo que fosse em escola pública, não trabalho. Apenas dou aulas!
Nem juntando ao ofício da educação o de jornalista sou trabalhador...
E se fosse simplesmente professor, ministrando aulas à noite, o que diriam de mim?

Publicado pelo Jornal de Angola de 12.05.19
     

domingo, setembro 22, 2019

EKEPA NÃO É INGLÊS

No centro de Angola, do litoral ao nascer do sol, há um aforismo bem conhecido por todos os falantes da língua predominante, incluindo crianças que já, por algum motivo, se terão atrasado em algum evento de onde teriam benefícios, que reza: "O atrasado come ossos".
Esperando pela veiculação de um anúncio televisivo, atrasei-me ao jantar colectivo. Embora o restaurante tivesse monitores de televisão, a distância entre o quarto e aquele recinto roubar-me-ia mais de um minuto, mesmo que fosse a bom passo e velocidade, correndo o risco de erder a visualização do mesmo, caso passasse naquele intervalo de tempo.
- O spot pode passar nesse instante, enquanto faço a travessia, e não terei como aplaudir ou reclamar. - Pensei, acabando por assistir ao telejornal da televisão pública no aposento. 
Tal, fez-me chegar ao restaurante naqueles momentos em que o funji, pirão por essas paragens, aguarda pelo atrasado sem o respectivo conduto. Nem cabidela de galinha gentia, nem losaka, nem ramas de batata, nem nada. Apenas uns nacos grelhados de "galinha com pai e mãe", umas batatas do reino enfatiadas e fritas e salada que se estendiam sem clientes. E eu que sou "funjívoro"?
- Mano, tem pirão mas o conduto já não. Acabou. Posso pedir jantar "a la carte"? - Indaguei solícito ao jovem que se apresentava de humor ainda aceitável no balcão de atendimento.
  
- Conduto acabou? Como assim? - Retorquiu.
- É verdade. Eu gosto mesmo é de comer pirão e, mesmo que aceitasse galinha do kaputu, que ainda tem grelhada, já não há molho. - Expus.
  
O jovem parou por alguns instantes a procurar por uma resposta.
- 'Stá bem. Vou à cozinha ver o que se pode fazer. 
Passaram-se trinta minutos sem resposta, até que o voltei a chamar.
- Então, o mano não me deu resposta...

- Sim mano, ainda me desculpa. É mesmo um bocado de atrapalhação. A sala encheu. Assim mesmo que não mais importunei o mano, é resposta afirmativa. Ainda aguarda só mais um bocado.

- Bocado vem da boca como punhado deriva de punho. Que de lá surja algo. - Falei com os botões.
 
Não tardou, chegou uma kafeko. Magra e linda, se não fosse aquele cabelo emprestado, seria mesmo uma "amigável" para filho ou sobrinho. Num prato três restos de frango e noutro beringela (losaka).
- Jovem, você é mesmo do Huambo?
  
- Sim, senhor, nasci mesmo aqui no Santo Rosa.
- Sabe o que é ekepa?
- Não senhor. Não falo inglês!
  
Até a vontade de reclamar dos ossos que se estendiam famintos no prato passou-me pala "culatra". Como alternativa ao desejável conduto ausente, tive de os mastigar e aproveitar o molho, também escasso, para empurrar o pirão garganta abaixo, afugentar o bicho e esperar pelo matabicho do dia seguinte.

Publicado pelo jornal Nova Gazeta de 09.05.19

domingo, setembro 15, 2019

O HOMEM DO CAMPO E A CATANA

Na cidade tornou-se raro ver um homem, mesmo idoso, sem o seu celular. Até a bíblia, inseparável dos homens de idade nos dias de culto e missa,  vai ficando para trás pois o pequeno e inteligente aparelho consegue incorporar o velho telefone de discagem, o rádio receptor, o leitor de música,  a bíblia, o hinário e a harpa, a máquina calculadora, o medidor de passos e da tensão ou ainda a bússola, o termómetro, a balança e o relógio. A máquina de escrever e as de fazer fotos e filmes também estão dentro do celular. E é isso que confere alegria ao homem da cidade que fica doente se, por distração alguma, se vir distante do seu brinquedo facilitador em quase tudo.

No campo é outra coisa. Os capinzais altos nos atalhos, as árvores derrubadas pelo vento e pela chuva, as cobras procurando sol nos descampados por onde o homem passa, as feras que procuram no homem o seu mata-fome,  o cultivo, a poda, a colheita, a auto-defesa e outras valias para a vida campestre remetem à catana a importância transcendental e inquestionável do dia-a-dia.

No campo, um homem sem catana não é Homem. É amador, desprevenido e vulnerável. Todo o perigo é com ele e de tudo quase se pavoneia.

Em mãos de homens do campo, encontramos catanas de diferentes figurinos: com extremidade dianteira curva (semelhante à usada no 4 de fevereiro/61 e por isso assim designada), a rectilíneas, umas mais largas do que outras diminuídas pelo afiar permanente da lima ou pedra, sendo transportadas na mão firme ou à cintura.

A catana para o homem campestre é como a tradicional caneta e bloco de notas no bolso do colete de um bom jornalista que, mesmo usando gravador de som, nunca põe de parte a memória cerebral (ouvir, interpretar e reter) e o seu bloco de notas, coisas que pouco se vão ensinando ou que a nova geração despreza, correndo, com isso, riscos desnecessários.

Publicado pelo jornal Nova Gazeta a 25.03.19

domingo, setembro 08, 2019

PERMISSÕES E PROIBIÇÕES DE KATUTURA

Se a Chicala, no istmo de Luanda, é conhecida e recomendada pelo sabor que as senhoras dão ao peixe que confeccionam, o Oshetu Community Market de Katutura é famoso, sobretudo entre angolanos, pelo sabor da carne fresca e tenrinha que por lá é assada com esmero e alguma magia. Quando descrevi os ningoçus na Chicala, averbei que se a venda de peixe era um negócio formal, já os serviços e produtos suplementares oferecidos à volta eram inform...ais, não pagando nenhuma taxa ao Estado/Administração Local.
Aqui, em Oshetu de Katutura, não!
Tudo é formal. Desde os fornecedores de lenha aos assadores de carne, da tia que vende pirão de massango/massambala (note-se que carne e pirão são vendidos à parte e por pessoas distintas, assim como o molho de tomate e cebola) ao jovem que faz molho para aligeirar a deglutição, a/o fornecedor de tomate e cebola, etc. E o administrador da legalidade foi mais longe. Separou os serviços em lados diferentes: electrodomésticos, alfaiataria, fotos e impressão, cereais, peixe miúdo das chanas, katatu e, como era de esperar, a fuba acomodada em bacias escondidas em sacos de plástico transparente. Até da gosto. É diferente da banda onde a poeira arrastada pelos ventos de todas as lixeiras se junta à fuba que enche o estômago na hora da janta. Aqui, há preocupação máxima com a saúde e com a urbanidade. Álcool, por exemplo, no entry.
Um jovem, primeira vez a se dirigir à Katutura, sabendo que encontraria bons nacos, decidiu levar as suas birritas frescas para enfrentar os 38° graus de temperatura e abafar a fome e a sede que estavam a braçadas.
- Álcool no entry. - Disseram-lhe os seguranças, à entrada.
- O quê? Achas mesmo que vou pitar sem xupar, com esse calor todo?
- You can go, but without alcool drink. - Retorquiu o segurança-chefe, sempre calmo e a contrastar com a agitação do neófito mwangolê que já se prestava a usar a razão da força em vez da força da razão.
Chegou outro mwangolê, já cacimbado em frequentar aquele recinto e conhecedor das leis namibianas. Abeirou-se dele e, como quem acalma um nenê enfurecido, pegou-lhe o ombro e disse-lhe:
_ Conterra, olha só para essa barba e esse cabelo branco. Quando vim para cá eles ainda não eram independentes. É o respeito das leis que me faz desconhecer a cadeia. Lê a placa e pede desculpas, antes que a polícia chegue e acabemos todos rotulados.
O jovem levantou os olhos e, minuto depois, baixou a crista.
- Sorry my brother. Não sabia. Vou pegar take away e beber noutro lugar!

Publicado pelo Jornal de angola, 17.02.19

domingo, setembro 01, 2019

À CAÇA DE LUZ E MAKEZU

Em 1978, "Ano da agricultura", já António  Fernando e Manuel Carlos "Xika Yangu ou Raimundo" (primo dele) haviam abandonado a região  de Kuteka, nas margens do Longa, para se fixarem na Fazenda Israel, próximo da Estrada Nacional Luanda-Huambo, gerida na altura por João dos Santos "João Kitumbulu" (tio de minha mãe).
O meu mano Arnaldo Carlos, filho de Xika Yangu, diz que "os dois papás desde a independência que juntavam ideias para se fixarem o mais próximo possível da estrada", sinónimo  de luz e avanço económico.
 
A rodovia asfaltada, concluímos hoje, permite proximidade com os grandes centros. Permite produção autossuficiente, com excedentes colocados à venda, renda, poupança e aquisição de bens industriais. Nesse quesito, o soba Xika Yangu já tinha bicicleta e o filho mais velho, Jorge Kakonda, uma mota Suzuki.
A aldeia de Mbangu-de-Kuteka (perto de 30 km de picada) ou a fazenda nas matas de  Kitumbulu, onde meu pai vivia junto do seu progenitor, nada davam senão a mesmice da mandioca e derivados, pesca e caça abundantes e o café que foi, aos poucos, perdendo peso e valor.
Instalados na fazenda Israel, António Fernando empregou-se como braçal, juntando-se aos contratados ovimbundu, e Xika Yangu tratorista, uma profissão respeitável no trabalho agrícola.
O passo seguinte, conta ainda o mano Arnaldo, seria abandonarem a fazenda e constituírem uma aldeola familiar, no Limbe, perto de quatro quilómetros da fazenda, onde reconstituiriam suas vidas. E assim fizeram em 1980.
A viver no acampamento, privei com outros meninos, filhos de ex-contratados ovimbundu, e com eles aprendi a língua e os hábitos de seus papás, pois em nossa pequena comunidade ambundu o Português era exigido a todo o tempo, já que estava à espreita a entrada para a pré-kabunga.
Assim, conheci a Pedra Escrita da Munenga (que nada tem a ver com a de Ndala Uzu que visitei uma década mais tarde) como suporte que continha/contém um anúncio publicitário da "Estalagem Boa Viagem", que fica no Lussusso, pertença  da família Olímpio, descendentes de Cabo Verde (conheci um dos donos em 1990, vivendo no Prenda, junto à Clinica/Hospital com o mesmo nome).
Certa vez, estávamos ainda no ano de 1979, "Ano da Formação de Quadros" (e eu ainda não frequentava a escola do povo), Arnaldo Carlos, Sabalo Kambota (primo Zito), Augusto João "Kapayu" mais tarde conhecido como "Gasolina" (filho do gerente da fazenda) e talvez o tio Beto Santos ou Zé Borracha (sobrinho da avó Emília, a mãe do tio Gasolina) decidiram ir à caça de "makezu" ou canta-pedras (uns animais roedores com três  dedos, do tamanho de um gato bem nutrido) no gigante paleolítico conhecido como pedra escrita. Era tempo de capim de altura intermédia,  Fevereiro talvez.
Munidos de cães de caça,  zagaias e flechas e outros utensílios para desalojar os animais de suas tocas, conseguiram uma boa caçada. Ao mais novo, no caso eu, cabia levar alguma das peças abatidas.
De regresso à casa (Fazenda Israel), perto de dois ou três quilómetros, o passo apressado e faminto de adolescentes descompassava com o lento, faminto, sedento e cansado do infante que, aos poucos, os foi perdendo de vista e na distância.
Como perigo não havia, pois sobre guerra nem na rádio ouvíamos ainda falar, eles foram na galhofa andando e pensando que o rapaz os seguia e cedo a eles se juntaria.
Postos no acampamento, Arnaldo e Sabalo (sobrinho da minha mãe), Kapayu e o primo Beto na casa particular de seu pai (havia a vivenda da fazenda que só se abria para trabalho) terão  notado a minha ausência prolongada.
Até hoje, nem o meu mano e amigo de todos os tempos Arnaldo, nem Kapayu que era um tio-amigo, nem o primo Zito (os dois últimos  já não vivem), ninguém me confidenciou se terão  levado alguma reprimenda dos mais velhos. Só sei que fizeram caminho inverso, procurando por mim, encontrando-me dormitando à sombra de um arbusto que crescera no então "campo aviação", meio-caminho entre a "pedra escrita" e a Fazenda Israel (rebaptizada no pós-independência por Fazenda Hoji-ya-Henda). A sede, a fome e o cansaço foram tão fortes que força não sobrara nas pernas e pés descalços sobre areia quente e movediça da tarde ensolarada.

Quanto à aldeia de Pedra Escrita, que hoje se mostra  junto ao gigante paleolítico, foi obra do comandante António Infeliz João (filho de João dos Santos ou João Kitumbulu) que perante a dispersão pelas lavras dos antigos trabalhadores das fazendas da região e face às incursões dos militares rebeldes (Unita) que entre os ovimbundu encontravam fonte de abastecimento logístico e informações sobre a movimentação das forças armadas angolanas (FAA), decidiu, à força, juntar todos os povos dispersos em um conglomerado no território da fazenda que mais tarde passou a ser sua. Assim nasceu, no início da década de noventa, séc XX, a aldeia que é das maiores da comuna da Munenga, juntando, para além de povos recuados há muito do Ki(s)songo, Kis(s)ala, Longolo e outras regiões distantes, aldeões de Kalombo, Tumba Grande, Kipela, Kototo e Kuteka.
 
Texto publicado pelo jornal Nova Gazeta de 11 Abril 2019
 e J.A de 28.04.19