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segunda-feira, outubro 29, 2018

RELATOS A ENTERRAR

 Fazer-se ao interior, partindo da capital de Angola, confere o prazer de mergulhar nas vivências positivas das populações, reviver estórias e História do povo e "coscuvilhar" coisas que a memória perdoa mas teima em não esquecer.
- Boss, esquecer é permitir que volte a acontecer, mesmo estando ainda vivos. - Assim defende Rafael Paca, jovem de Golungo Alto.
Como ele, há muitos angolanos que viveram na alma as agruras da guerra. Rafael diz que já percorreu dezenas de quilómetros à pé, fugindo de tropas dos dois movimentos.
- As primeiras fugas eram no tempo da rusga para a vida militar, mas o sofrimento era tanto que um dia fui me apresentar e fiz tropa no Lukala. - Conta.
Porém, as memórias de Rafael não se ficam por aí.
- Em 1992, naquela mini-paz assinada em Portugal, fui desmobilizado das FAPLA. Aí é que a coisa piorou. Kavulandunge tomou a província e as pessoas fugiram para o Dondo, para Luanda e para as bwalas. Eu, como não tinha possibilidades, fiquei aqui (próximo do entroncamento entre Ndala e Ngulungu). Certo dia, os tropas de Kavulandunge desconfiaram que um jovem, meu amigo e colega nas extintas FAPLA, pertencera ao "Minse-Disa", pura invenção deles para nos cabar. Os homens parecia que tinham sede de torturar. Mandaram-no despir-se, correr para transpirar, e jogar-se a um monte de feijão maluco. Ele coçou que se coçou. Metia dó, que até pediu que o matassem...

Rafael atesta, com as mãos sobre o peito e repetindo vezes sem conta a expressão " palavra d'honra", que assistiu a tudo sem nada poder fazer em prol do amigo e temendo que tivesse a mesma sorte.
- As vezes, se um deles pretendesse a tua senhora inventava já que você é anti-motim ou Minse-Disa e te tiravam a vida já, já.
Foram somente dez minutos de percurso e de conversa até ao montículo que atende quem queira telefonar, deixando o asfalto e adentrando a selva por um atalho de aproximadamente quatrocentos metros. Toda a relva é feijão maluco que obriga "andar com respeito".

segunda-feira, outubro 22, 2018

UM CARRO PRETO NA KIBELA DO KAMBA


Um viandante saído de longe decidiu fazer a merecida vénia ao amigo que junta tostão a tostão para que do simples matagal surja um serviço de grande utilidade aos homens da estrada e da vizinhança.
Na "via da Trombeta", depois do nó Ngulungu vs Ndalatando, o mukwaxi decidiu "enterrar dignamente o seu suor de todos os dias e muitos anos. Já leva uns sete anos a" montar bloco sobre bloco", sacrificando do conforto a mulher e os filhos.
Quem sabe um dia tenham a merecida recompensa?!
Espero que sim.
Quando o espaço estiver aberto, nós os amigos, devemos ser dos primeiros.
A localização é excelente e exuberante. Os quartos são vastos e cómodos. O tanque d'água é "inesgotável". A energia está a um dedo. Há chilrear de pássaros à volta. Há paz que basta e história sobre nacionalismo kwanza-nortenho que o restaurante se prestará a contar todos os dias a todos utentes e clientes. O vizinho do Dani produz "motas 100% angolanas".


Nota: Dani Costa é um kamba jornalista que conheci no início de nossos percursos profissionais.

segunda-feira, outubro 15, 2018

MALAVU, LUNGILA E MAMÃ ME LEVA

Que haverá em comum entre estas três "pérolas da língua e garganta", consumidas no Uige e em outras terras da imensa Angola?
Em princípio nada. Para adentrar a questão e tocar o seu âmago, precisei de viajar e conhecer Carmona, Uíge anteontem e hoje. General Carmona é uma outra história mais ligada à presença colonial portuguesa.
Antes destes chegarem ao território uigense, já os povos se deleitavam com apetecíveis destilados, fermentados e bebidas naturais como a seiva da palmeira ou malavu.
Aqui, surge o lungila que é um fermentado, à base de sumo de cana-de-açúcar. Traduzido para Português, o termo lungila (do Kikongo) significa "aturem-me". É o que acontece quando alguém se encharca desse produto.
- Vozeira que vozeira, ao ponto de se sentir "o único" na aldeia. - Explica a ancião Nsimba.
Mas no Uige não se fala apenas de lungila.  Poucos saberão disso, sobretudo os mais novos. Quem conta são sempre os mais velhos.
- Com os brancos, surgiu o "mamã me leva". Era um vinho tinto que se produzia (engarrafava) na antiga cidade de Carmona.
O mais velho Nsimba explica o porquê do pomposo nome de "mamã me leva".
- Com um copo a pessoa ficava alegre, bem disposta e mesmo e até o mais tímido já conversava. Se não tinha coragem de se dirigir a uma "pequena" já podia. Com dois copos, aumentava a voz e até os baixinhos pareciam altos no tamanho e da voz. Ao quarto copo, os efeitos se reflectiam sobre os joelhos que ficavam "bwazeza", sem força. Aí o consumidor, sem força nas pernas, a única coisa que conseguia dizer era "mamã me leva".
Há também o nosso secular e sempre presente malavu que é a seiva da palmeira. Quando me contaram que malavu também atacava nas pernas não quis acreditar. Certa vez, ainda éramos jovens, conta o mais velho Nsimba, estávamos a ir a Kimbele. Uma moças bacongo, saídas de Luanda pediram.
- mais velho, faxavori, nos paga só um kabidon de malavu.
- Filha, malavu faz abrir as pernas. - Respondeu o meu amigo Sabichão. Ele gostava mbora de brincar...
- Tio, faxavori. Retorquiu a jovem em tom suplicante, o que levou o Sabichão a pagar um litro de malavu. - Prossegue o narrador. Elas era três e nós duas pessoas na carroça da Peugeot 507. Minutos de pois, a primeira moça começou a reclamar que estava a "caloria em todos os lados". Não te avisei, mbora? Recordou o Nsimba, hoje é mbuta muntu.  Não tardou, quando o carro parou para meter mais gasóleo no depósito,  a amiga dela confirmou o efeito da bebida.
- E o que disse a moça, mais velho Nsimba.
- "Mama me leva". Mas não era do vinho, era do malavu. Disse que estava a sentir as pernas a tremerem. Sabichão, o meu amigo, ainda avançou conversa misturada com malícia.
- Não te disse que malavu faz abrir as pernas? Põe calça jeans e amarra pano por cima! - Falou ele.

Texto publicado no jornal Nova Gazeta de 18.10.2018 e no Jornal de Angola de 18.11.18


segunda-feira, outubro 08, 2018

MASA, NGANA!

Assim terão respondido as súbditas de Ngola ao serem abordados por homens brancos que acabavam de desembarcar numa canoa movida a remo e que se fez da Foz à região intermédia entre Kisama e Ndondo.
- Que terra é essa? - Terão questionado os emissários de Sua Majestade, Rei de Portugal, capitandados por Paulo Dias de Novais que travaria, anos adiante, pesadas lutas contra as forças do Soberano Ngola Kilwaji kya Samba, titular dos povos do Ndondo.
- Masa, ngana (é milho, Senhor). - Responderam as akwandongo que se encontravam a moer milho numa pedra, à beira do caudaloso Kwanza. Terão percebido "o que é isso que estais a moer?", emitindo a resposta que se tornou topónimo.
Os livros de História sobre as epopeias do legatário Paulo Dias de Novais e os que narram a resistência dos africanos à presença europeia estão prenhes de cenas sobre os avanços, recuos e até captura e prisão do Português. As confrontações entre lusitanos e holandeses pelo domínio de Luanda também estão retratados em livros.
Até que o brasileiro Salvador de Sá e Benevides apareceu em socorro da "soberania portuguesa", os holandeses se tinham assenhorado de Luanda. Massangano, contam os livros e as lápides, foi o baluarte onde se travaram e se defendeu o brasão das quinas.
Até aqui, bastar-nos-ia a Biblioteca Nacional, o Arquivo Histórico Nacional ou, para os mais afortunados, a Torre do Tombo ou o Arquivo Ultramarino. Mas estaria, mesmo assim, em falta o contacto físico. Pois é, a "cidade" (à época) de Massangano, erguida no Séc. XVI, conserva até hoje as suas planas ruas "arquitectónica ente desenhadas sobre a parede alta do Rio", a Igreja Católica (religião de Estado naquele tempo), Fortaleza com seu longo mastro (sem bandeira alguma), a Primeira Câmara Municipal, a residência oficial do chefe da câmara, o Tribunal e casa de Reclusão, entre outros edifícios em ruínas, todos eles autênticos fortes paleolíticos e já sem a cobertura.
É essa a preciosidade, com valor histórico-cultural e turístico, que o Kwanza abraça no seu descendente leito para o Atlântico e que a inexistência de uma estrada em condições esconde aos curiosos e aos putativos turistas.
Aos aventureiros que se lançam ao desafio de "descoberta", num bom jeep, são "apenas 33 minutos de sacrilégio até encontrar o "tesouro histórico - turístico" que, normalmente, transforma o desconforto e cansaço da viagem em agradáveis momentos de contemplação.
No tempo doutra "divindade", o asfalto fazia-se da rodovia principal, EN 130, ao conglomerado de Massangano. Hoje, porém, são apenas buracos, lamentos e, as vezes, alguns milímetros da antiga negrura do asfalto a contar outra história do valor que já teve Massangano.
Entre desventuras, há também aplausos: a fortaleza é monumento classificado pelo Estado Português, Portaria de 24 Abril de 1923, e devidamente reconhecido Ministério da Cultura de Angola.
É pena que sejam hoje os cabritos que mais o frequentam do que os homens desse tempo. Por lá já chegou a energia eléctrica, saída de Kambambi, faltando apenas o asfalto e a promoção mediática do que o matagal esconde aos homens.
Os candeeiros de azeite e torcida de algodão, que ao tempo se achavam colocados em postes de pedra e cal, cederem lugar às lâmpadas eléctricas. O kakusu (tilápia) e bagre abundantes no Rio e lagoas próximas já podem ser congelados. A vida ganha(ria) vida com asfalto.
É imperiosos contar e mostrar mais a História e as estórias da "primeira capital" da autoridade portuguesa em terras Ngola, que se acha encravada entre a Muxima e Ndondo, pelo corredor do Kwanza.

Publicado no Caderno Fim-de-semana,Jornal de Angola, 19/08/18, pg.10.

segunda-feira, outubro 01, 2018

AO PÉ DA ESTRADA

É indubitável. Para quem lê a história da distribuição agrícola pelo país, Libolo, Aboim Uije e Golungo Alto são "terras do café".
No passado, as margens das estradas e das picadas estavam cobertas do arbusto que, em Novembro, engalana-se de um branco de cheiro inigualável, sendo Julho o mês em que o vermelho toma conta das fazendas. É o bago vermelho. Assim ficou registado na literatura histórica e na mente de quem, a partir da cidade, pensa e decide o campo.
O café robusta, plantado em terreno alto e de nevoeiro permanente, demanda sombra frondosa, sacha, poda e colheita com maior intervenção humana do que mecânica. É diferente da espécie arábica: plantas expostas ao sol, regadas a jacto, inundação ou conta-gotas, com passagens para tractor agrícola e labuta facilitada.
As ladeiras das estradas e picadas do Libolo, Golungo Alto e Aboim têm hoje mais bananeiras e palmeiras (resistentes) do que cafezal que se esconde na profundidade do matagal robusto e opaco.
Muitos se perguntarão "por que razão o café vai, aos poucos, cedendo espaço à mandioqueira, ao canavial e, sobretudo, ao banana?".
Pois, não será muito difícil aferir que o quilograma de café não anda acima de duzentos kwanzas, mesmo contando com o enorme trabalho que há entre plantar o arbusto até colher o bago, seca-lo, ensacá-lo e armazená-lo. Tem pelo meio a sacha, poda, desinfestação, o feijão maluco a complicar a vida do recolector e a cobra a amedrontar os noviços na arte da apanha do grão-ouro.
A bananeira é oportunista e afasta a erva daninha. Dispensa a poda e qual to mais rebentos houver maior será a colheita. A banana pode ser comida ainda verde (fervida) ou madura. Quando putrefacta, é submetida à destilação por processo artesanal, resultando em apetecível "das ponteira".
Um cacho de banana ou uma pilha de cana dão um lucro mais imediato e a custo resumido de produção do que um quilograma de café. É só por isso que os pequenos camponeses vão substituindo os cafeeiros que ladea(va)m as nossas estradas nas famosas zonas cafeícolas por plantações de bananal e canavial.
De terceiro maior produtor mundial do bago vermelho, em 1973, quando imperavam as monoculturas obrigatórias para os nativos e facilitadas por trabalho semiescravo ou mão-de-obra ultra barata para os colonos, Angola terá que "pedalar" até à exaustão se pretender ascender a um décimo posto desse campeonato mundial de café.
O pequeno agricultor já não se contenta única e exclusivamente com o café. A renda não aguenta doze meses. E, se comprador no houver, como às vezes dizem acontecer, pior ainda!
 
Texto publicado pelo jornal Nova Gazeta de 01.11.2018