Nessas visitas de reconhecimento ou de "ajuda e
controlo", como as chamávamos noutro tempo, fui ver a minha prima Rosária Albano, no
Morro da Luz. A velha Rosária, como a tratamos carinhosamente, é uma pessoa de
paz permanente, sem os fingimentos natalicios, e está sempre a rir e a fazer
sorrir os que a cercam contando cenas, umas verdadeiras e outras que inventa
para entreter os sobrinhos e netinhos. No oeste de África, ela estaria próxima
de uma griot.
Ainda não sei por que razão, sempre que estamos juntos, ela não
se esquece de perguntar a minha idade e eu, sabendo da sátira que vem sempre da
boca dela, vezes há em que aumento mais uns meses ou mesmo uns anitos, só para
adoçar a conversa.
Desta vez, começou a falar sobre a idade que eu e suas filhas
tínhamos quando se deu a trafulha. E dizia a velha Rosária para a Remisa, a
segunda das suas filhas, que "quando chegou a trafulha ela, agora já
senhora, contava com apenas dois anos, sendo que a Geny, que vem a seguir à
Remisa, estava no sexto mês de gestação". E foi tudo a propósito de quem
era o mais velho entre eu e as suas duas filhas em presença.
A minha atenção redobrada para a leitura correcta do seu
discurso levou-me a descodificar o que chamou ela de trafulha (confusão dos movimentos,
antes e depois da independência de Angola).
- Mana, eu, a trafulha já me encontrou. - Expliquei para aclarar
a questão das idades.
- Você, assim, tem já quantos anos? - Questionou ela, para
depois acrescentar que "só sabia da data certa do nascimento dos seus dois
primeiros filhos", pois era ainda moça, e recitou as datas com dia, hora e
tudo.
- A Angelina nasceu no dia 15 de Setembro de 1965. Ela e o
Segunda foi quase escadinha. Criei a Angelina só um ano. No ano seguinte, 01 de
Agosto de 1967, nasceu o Segunda. O Toy e o Roque (filhos de uma irmã e uma
prima respectivamente) nasceram em 1968. - Acrescentou a septuagenária.
Todos seguíamos atentos, inclusive os netos dela e o meu
primogênito, Mociano que se acha mais dado às contas do que às estórias, dado o
seu curso de Arquitectura.
- E por que a mana se lembra da data de nascimento dos primeiros
filhos e não dos outros? - Voltei a indagar, antes ainda que lhe respondesse
sobre a minha idade.
- Bem, essa aqui, apontava para a Remisa, enquanto buscava outra
data memorável, é a que estava nas costas quando fui ao óbito do soba Kitinu
(meu avô materno e homónimo). Encontrei a Kilombu tinha parido naquele mesmo
dia. Por isso, você Luciano não pode ser mais velho da Geny. - Explicou ela
meio equivocada.
- Então, se a mana foi com a Remisa ao colo ao óbito do nosso
avô e encontrou a mãe deu-me à luz naquele mesmo dia, sendo que a trafulha
ainda não tinha começado e a Geny ainda não estava na barriga da mana, como é
que ela se torna minha mais velha? Quando eu nasci, a Remisa era a nené do
colo. Quando chegou a trafulha ela tinha dois ou três anos e eu um ano. A Geny
que no ano da trafulha estava na barriga da mana terá nascido em 1976.
Portanto, eu tenho 41 anos. A Remisa tem 43 e a Geny tem 39. - Esclareci.
A idosa que seguia atenta a minha explanação, abanando a cabeça
de cima para baixo, em jeito de aprovação, ficou alguns segundos com a bola de
funje a meio caminho entre o prato e a boca. A kisaka estava já fria e mesmo a
pasta de bombô estava também com pouco calor.
- Quarenta e um anos tem o mano? É muito. E eu que te encontrei
"te nasceram" naquele mesmo dia em que a tua mãe foi chorar o pai dela, avô Kitinu,
tenho quantos anos? Só pode ser 250 anos. - Concluiu sem aguardar por uma
resposta.
A assistência, sobretudo os netos e o sobrinho, o meu filho,
fizeram gosto à boca e riram-se um pouco da desconversa da idosa.
- Avó, no mundo não há pessoa viva com essa idade. – Retorquiram
os adolescentes.
- Mas eu tenho 250 anos. Me levem no governo para me apresentar
na televisão. Se o Luciano tem 41 anos, eu só posso ter mesmo 250. - Reforçou a velha Rosaria, preparando-se para
contar outras malambas seguidas, sempre de forma atenciosa, pela moçada que se
diverte e aprende com a velha da família.
É que no meio de tanta brincadeira da anciã há sempre lições que
ficam retidas sobre a forma digna de viver em comunidade e alguns relatos
históricos que complementam a narração científica.
Já depois da minha retirada, contaram-me que a preleção
prosseguiu com os netos que pretendiam mais detalhes sobre o que ela chama de
trafulha.
E constou-me que ela contou tim tim por tim tim o quão dura foi a
Luta pela Independência de Angola e qual dos três Movimentos “ficou com o povo,
dando vacinas, cobertores, sal e roupas de fardo, quando os outros regressaram
às matas de onde voltavam de forma relâmpaga apenas para queimar tractores e
pilhar galinhas”.
- Nós estávamos mbora com o Movimento do Neto que não fazia mal
às pessoas. É por isso que chamo aqueles dias que antecederam e se seguiram à
independência do tunda mindele como momentos de trafulha. - Concluiu a velha
Rosária.
A vela, sobre a qual se formara uma roda, já tinha vivido a vida
que lhe fora dada pelo fabricante. Sem energia eléctrica e sem outra vela
substituta, os netos foram escapando um a um, chamados pelo sono. Ela continuava
empolgada, ora recontando estórias ora intercalando adivinhas expressas no seu
materno Kimbundu.
Porém, à medida que a roda ia ficando vazia, foi percebendo do
passo apressado do relógio para o dia seguinte e, no final, a velha seguiu-os
também.