- Lembras-te, Soba, quando viemos
parecia não haver
ferro retorcido ao longo da via. Vês que a paisagem hoje mudou? - Disse ela em
ruídos apaixonados.
- Sim, Maria. Temos ainda muitas
sobras das guerras. - Respondeu o companheiro, enquanto a afagava com mais uma
mudança de força.
Mas, Soba, donde vieram então
esses monstros todos, já sem cor nem forma, e que fazem recordar os tempos do
tri-tri-tri-buummmm?!
- Estavam escondidos, Maria. Eu
também pensava que os catadores de ferro já tivessem recolhido todas essas
lembranças das guerras e levadas à siderurgia nacional. Pensava que já
estivéssemos a usar arados fabricados com despojos e destroços das guerras.
Ainda bem que as queimadas
à beira da estrada estão a colocar tudo à mostra dos recolectores de ferro
velho. É tempo de obra para os ferreiros. - Explicou o amo.
A travessia de um grupo de
adolescentes com pás nos ombros fê-los interromper a prosa oral para
reflectirem sobre as pás que sulcam terra em busca de incertezas escondidas no
subsolo, numa altura em que a paz permite ter escolas à dimensão dos
aglomerados, porém algumas chorando por alunos refractários.
- Esses assim vão à tonga ou à
campanha sabatina de limpeza escolar? - Atirou Maria inocente.
- Acorda, filha. Estamos em
Xamikelenge. Aqui e na Muxinda as pás, mesmo em tempo de paz, significam ainda
a busca de kamanga. As escolas têm ainda as carteiras vazias à espera desses mancebos.
- Explicou irónico o dono dela.
- Soba, voltou a interromper Maria,
quando falávamos sobre as sucatas acastanhadas de ferrugem e já sem as
chaparias que ajudariam a descortinar de que tipo de veículo se tratavam, falavas em sobras das
guerras, no plural. Houve por cá muitas guerras? Gostaria que me explicasses
tim-tim por tim-tim. - Solicitou Maria quase suplicante e cortado já, a meio, a
encosta de Kabatukila, Xinje, onde, por ironia, um camião carregado de ferro velho
repousava ad eternum no meio da rodovia, entregando-se
também à interminável quantidade de ferro por recuperar país adentro, recortar,
transportar, fundir e transformar. - É preciso, afinal de contas, dar vida à
agricultura e à construção de infraestruturas, o que passa pela reactivação da
indústria siderúrgica, cogitou, sem no entanto o pronunciar.
- Sim Maria. Usei mesmo, e
propositadamente, o plural.
Houve a guerra dos movimentos
contra o colono, durante 14 anos, em que muita técnica das tropas
ocupacionistas foi aniquilada nas emboscadas. Depois foi a guerra civil que também destruiu a técnica militar automóvel e
rodo-transportada das partes
conflituantes ao
longo de 28 anos. Temos ainda a guerra infinita entre a estradas e os veículos, entre os
automobilistas e as vias, que parece ser a mais dura e lúgubre. - Explicou seu
amo.
Maria aprovou o discurso,
solicitando uma mudança de menos força e mais corrida ao que Soba prontamente
compreendeu e anuiu.
Prosseguiram a viagem entre
silêncios, diálogos e afagos carregados de recordações e afectos. Maria, no auge da força e
jovialidade. Ele, Soba, no auge do poder, vigor a paciência em contornar as
inúmeras armadilhas e os incautos camionistas que, vezes sem conta, colocavam o
traile no eixo da via, submetendo em risco a vida daqueles com quem se cruzam
nesta batalha da busca do pão comum para o estômago vazio.
- Esses assim pensam que a
estrada é propriedade privada deles ou que os outros não têm vida? - Desatou
Maria, que não poupou um estrondoso muxoxu que lhe invadiu a boca. - Vão mazé, seus sacanas de
merda, e tenham juízo
nas vossas cabeças de gafanhoto, pá! - Concluiu resmungante Maria.
- É isso, Maria. Isso é pão de cada hora. É isso
que alimenta os esqueletos metálicos na via. Alguns camionistas só se dão conta disso depois de entrar em
prantos, envolvidos
num sinistro, ou quando tripulando um veículo menor se depara com semelhante corneada. É
essa a luta desigual que mais me preocupa. - Falou- lhe filosófico o amo antes de ser parado para
uma fiscalização
preventiva dos homens do apito laranja.
- Donde vem, senhor condutor? -
Atirou o agente de farda verde e colete laranja.
- Do nordeste, senhor agente. –
Respondeu o soba, já com a papelada da Maria e a sua em mãos.
Conferida a papelada, acto que se
repetiu outras nove vezes ao longo do trajecto, o agente, caprichosamente
aprumado com gravata e luvas, devolveu os documentos e fez o sinal de partida.
Aliás, não faltaram
as perguntas do costume: como vai a viagem e que notas de realce nos reporta,
senhor automobilista?
Não havendo acidentes ou
incidentes graves ao longo de tudo quanto tinha percorrido, preferiu soltar um
NADA CONSTA e seguir viagem até à cidade erguida sobre a encosta da montanha
das cobras Ndala onde tomou a primeira refeição do dia que se acrescentaria ao meio
litro de café que tomara ao longo das oito horas de estrada. Maria também reclamava
pela segunda refeição, o que lhe foi servida sem hesitação. Havia ainda perto de
duas centenas e meia de quilómetros pela frente. O sol despedia-se a caminho do
grande Kalunga-Lwiji, ao ocidente. Sábado da batida e da Ngwenda na capital e
arredores, na Catedral do amor católico, bem nas barbas do Kwanza que dá vida e
dinheiro aos akwaxi, as devotas pediam dinheiro, maridos, felicidade e
tristezas para as concorrentes. À espera de uns incautos desconhecedores das
regras de trânsito ou das leis estariam outros akwaxi. É a lei da vida urbana e
da selva. É a lei dos opostos. Maria que ouvira até aí os desabafos do seu amo
voltou a questionar.
- Mas por que pedem algumas
pessoas a morte de rivais, Soba?
- É a lei dos opostos, filha. O
que te faz bem pode não me fazer bem. O que pedes pode ser o oposto do meu
desejo. Já vi duas rivais a rezarem para que a consorte desaparecesse do mapa. –
Troçou o amo.
- Ai é? Então leva-me à Muxima. Pretendo
pedir que nessa estrada, da Capital aos Kwanzas, passes a andar somente com o
António (nome de outra viatura), pois há muito que ando com a coluna sôfrega.
Entre curvas e lombas, sol poente,
sombras e penumbra, seguiram seu caminho até à próxima paragem...
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