O programa “Piô-Piô”, da Rádio Nacional de Angola (RNA), foi um dos mais emblemáticos espaços dedicados à infância angolana nas décadas de 1970 e 1980. Com forte componente comunitária e educativa, era realizado em diferentes zonas do país, envolvendo os miúdos locais em concursos como dança das cadeiras, lançamento de bola ao cesto, música, anedotas e outras actividades lúdicas. Em cada edição, as crianças cantavam, brincavam e aprendiam, tornando o programa um verdadeiro palco de expressão cultural e formação cívica.
O indicativo oficial do programa — com a letra “Piô-Piô, da Rádio Nacional, é para aprender e para brincar. Ordem, educação, disciplina na nossa diversão...” — foi escrito por Rui de Carvalho, musicado por Henrique, professor de música, e interpretado por Dionísio Rocha. Esta composição tornou-se o hino da infância radiofónica angolana, ecoando nos lares e nas ruas com entusiasmo e afecto.
Mais tarde, Barcelô de Carvalho “Bonga” foi convidado pela RNA a compor uma música dedicada ao programa e às crianças de Angola. Surge então “Kyalumingu Kimenemene”, uma canção que celebra a infância, a oralidade e os afectos comunitários. Bonga lançou a música no Largo do Kinaxixi e voltou a cantá-la no show realizado na Mutamba, reforçando o vínculo entre arte, infância e memória colectiva.
ENTRE ONOMATOPEIA E IDEOLOGIA
O termo “Piô-Piô” carrega múltiplas camadas de significado:
- Por onomatopeia, representa o som dos pintainhos — uma imagem doce e infantil.
- Por referência histórica, “Piô” era também o diminutivo de “pioneiros”, nome dado às crianças no tempo de partido único em Angola, quando a educação e os meios de comunicação tinham forte orientação ideológica.
A escolha da música como indicativo reforça essa ligação entre infância, formação cívica e identidade nacional. Num tempo em que havia apenas uma rádio — a nacional — os programas etários eram seguidos com atenção quase religiosa pelos seus destinatários. Foi o caso de muitos, eu incluído.
ENTRELAÇAMENTO LINGUÍSTICO: PORTUGUÊS E KIMBUNDU
A letra da canção de Bonga é um exemplo vibrante de entrelaçamento entre o português e o Kimbundu, revelando uma Angola urbana, viva e multilingue. Bonga canta:
“Sukula depressa o kisuku / pregozinho no pescoço / matabicho não kanjonja / piô-piô stá te chamar.”
“Kyalumingu kimenemene! Piô-piô. Dondim tem mabute / Mãe foi no Piô-piô...”
Esses versos misturam línguas e códigos culturais, criando uma linguagem híbrida que ressoa com o quotidiano dos ouvintes.
NEOLOGISMOS E GÍRIAS: ORALIDADE CRIATIVA
A canção é rica em termos que emergem da oralidade popular, revelando práticas e hábitos locais:
Palavra/Expressão| Significado em português
Kusukula | Lavar, arrumar Kisuku | Cozinha Matabicho | Pequeno-almoço (neologismo: “matar o bicho”)
Kanjonjar | Comer aos bocados, lentamente Kifwa kya iba | Mau hábito Kyalumingu kimenemene | Aos domingos, de manhã ou manhã cedo
Mabute | Ferida crónica
Essas expressões não apenas enriquecem o vocabulário, mas também funcionam como marcadores culturais e afectivos. São termos que circulam entre gerações, carregando significados que vão além da tradução literal.
MÚSICA COMO DOCUMENTO GERACIONAL
Para quem viveu a infância nos anos 1980, “Piô-Piô” não é apenas uma canção — é um documento sonoro da memória colectiva. A música, ao ser usada como indicativo pela RNA, tornou-se parte da rotina emocional de milhares de crianças, que se reconheciam na linguagem, no ritmo e na melodia.
Mais tarde, para alguns, essa escuta atenta evoluiu para uma relação profissional com a rádio, como foi o meu caso, tornando-me radialista na LAC. A música, portanto, não apenas marca uma época — ela forma e transforma.

