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terça-feira, outubro 28, 2025

PINTURAS RUPESTRES DE NDALAMIRI: ACESSO E FUTURO

No coração do município do Hebo, província do Kwanza-Sul, repousa um dos testemunhos mais silenciosos e eloquentes da ancestralidade angolana: as pinturas rupestres de Ndalamiri. Gravadas sobre rochas que resistem ao tempo e às intempéries, estas expressões gráficas são mais do que arte primitiva — são narrativas visuais de um povo que, mesmo sem escrita formal, soube eternizar a sua cosmovisão, os seus rituais e a sua relação com o território.

A visita ao sítio, como relatado por Bernardete e familiares, "exige preparo físico mínimo. A subida e descida ao local são desafiadoras", o que, paradoxalmente, protege e afasta. Protege, porque o difícil acesso limita a degradação humana; afasta, porque impede que mais angolanos e estrangeiros conheçam e valorizem esse património.
A reflexão impõe-se: que futuro queremos para Ndalambiri? A memória colectiva não se preserva apenas com reverência simbólica, mas com acção concreta. O sítio carece de infra-estrutura básica — trilhos seguros, sinalização, retretes, lavabos, abrigo mínimo para visitantes, barracas de conveniência e, sobretudo, guias locais que dominem a história e a cultura da região. Sem isso, o turismo cultural não se consolida, e a narrativa ancestral corre o risco de se apagar.
Mais grave ainda é o silêncio institucional. A ausência de campanhas mediáticas, de inclusão curricular e de roteiros turísticos estruturados revela uma negligência que fere a dignidade histórica do povo angolano. As pinturas de Ndalamiri não são apenas traços sobre pedra — são testemunhos de uma Angola que existia antes da Angola moderna. Ignorá-las é amputar parte da nossa identidade.
A urgência é dupla: proteger e divulgar. Proteger, com medidas técnicas e legais que garantam a integridade do sítio. Divulgar, com acções educativas, culturais e turísticas que o insiram no imaginário nacional. Porque quando a história morre, como bem alerta Soberano Kanyanga, nós morremos com ela — não fisicamente, mas espiritualmente, culturalmente, colectivamente.
Ndalamiri é mais do que um destino. É um chamado à consciência patrimonial. Que saibamos escutá-lo antes que o tempo o silencie.

quarta-feira, outubro 22, 2025

AMEKO

Quando cheguei a Kilenge (Quilengues), terra do mô kamba Leonel Eduardo Kassana Kassana, perguntaram-me:
- Ó mano, ainda ouvimos que na descida, da bifurcação prá cá, houve lá um acidente. Kenhê que se acidentou?
- Ameko1, respondi.
- Afinal, o mano ainda é mesmo daqui. Mas, fala ainda. Está a vir daonde? - Perguntou uma jovem encostada a uma roulote. Era esbelta para o seu tempo e território.
- Ó, mana, me dá ainda de comer e de beber. Gasosa é quantué e sandes é quantué? - Indaguei, procurando aumentar a empatia que já tinha ganho.
- Gasosa em garrafa é trezentos. Sandes de chouriço e ovos é quinhentos. Se tem já teu pão te faço lá kadesconto.
Sôfrego da longa viagem - Luanda-Huambo-Chipindo-Huambo-Longonjo-Huambo-Menongue-Cutato-Menongue-Lubango-Quilengues, mas, ainda com algum vigor, dei uns passos até à padaria que se achava à frente da mulembeira, cujas folhas lutavam contra o sol, emprestando-nos a sua sombra.
- Mana, meu pão é esse aqui. Para os meus colegas faz mesmo com o teu pão. Eram três a se reerguer ainda na viatura estacionada em frente ao Partido.
- Mas, ó mano, ainda num me contaste lá se és daonde e estás a vir daonde.
- Sou teu cunhado. Minha mulher é biena e vim ver "se encontro mais uma kafeko daqui". Até vou já ligar ao meu amigo Kassana para me indicar onde posso comprar terreno. - Enfeitei a conversa.
- Mulher daqui, ó mano, não vale apena. Vais acordar sozinho. - Alertou a Magrinha, nome que lhe dei sem ela saber.
- Mas, assim fazem quê? E eu que me encantei com o Kilenges, faço como? - Adocei para buscar os comentários dela.
- Vou te dar lá um kaconselho. Se o mano quiser faz, mas também se quiser 'mbora acordar todos os dias sozinho, problema é teu. Faz assim, endireitou o discurso: terreno ou casa, pode comprar. Aqui é bom. Tem água, tem energia, passam muitos carros e muito movimento. Mas isso faz também as kafeko2 ficar com as cabeças no ar. Mulher, mesmo, arranja noutro sítio e lhe traz aqui. Daqui, esquece ainda!
Mesmo a enfeitar a boca, só para não sentir a lentidão do tempo que separava a sandes pachorrenta da minha boca, acenei a cabeça em jeito de aceitação.
- Manos podem já encostar. - Chamou a outra jovem da roulote. Era também magra, mas com algumas picanhas fora do lugar e uma indisposição de grávida recente. Aliás, essa, enquanto a Magrinha dialogava abertamente, contando os novos hábitos d'algumas moças descasadas de Kilenges, ela reprovava com gestos e palavras balbuciadas do tipo "no le conta isso".
Manjamos. E como a cidade de Benguela ainda estava distante e já pronta a receber o sol que para lá se dirigia apressado para mais um esconderijo, decidimos partir, mirando os olhos nas árvores e nas montanhas que corriam apressadas para atrás, ao ritmo dum motor vigoroso que bebia gasóleo com a mesma pressa com que me desfiz do refrigerante.
- Ó manos, vamos partir. Eu voltarei, com certeza, para comprar terreno e viver aqui. Salipo3.
- Ewa. Endipo ciwa4!
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  1. Do Umbundu não fui eu!
  2. Mocitas
  3. Fiquem bem!
  4. Façam boa viagem!

sexta-feira, outubro 17, 2025

OS NOVOS MUNICIPIOS E O CAMINHO QUE AINDA NÃO CHEGOU

Ngungu [Gungo para os "angotugas" e outros apressadamente aculturados] é um dos novos municípios da província do Cuanza-Sul. Por sinal, é o que se encontra mais ao Sul/Sudoeste da província, fazendo fronteira com o também recém-criado município de Egipto Praia, desanexado do Lopito (Lobito).

Partindo da aldeia de Evale Guerra, a sede municipal de Ngungu — outrora comuna homónima — está situada no interior, a cerca de 35 quilómetros da EN100, a principal estrada que liga Sumbe a Benguela. Uma conhecida missão religiosa, chamada Missão do Gungo, estende-se ainda mais para o interior, a aproximadamente 18 quilómetros da sede. Ali, entre colinas e trilhos de terra batida, missionários e comunidades locais mantêm viva uma rede de fé, educação e solidariedade, mesmo diante da ausência de infraestrutura básica.

A Missão do Gungo, pertencente à Igreja Católica, é gerida pela Diocese do Sumbe em parceria com a Diocese de Leiria-Fátima (Portugal), através do grupo missionário Ondjoyetu (a nossa casa, em Umbundu). A missão tornou-se um verdadeiro centro de desenvolvimento comunitário, oferecendo serviços essenciais como moagem comunitária, posto de saúde, capela, cantina solidária, sistema de abastecimento de água por gravidade, produção de blocos de terra comprimida (BTC) e kits solares para geração de energia. A sua sede, Ndonga, foi escolhida por ser um ponto estratégico para alcançar as aldeias mais isoladas do município.

Durante o conflito armado em Angola, o Gungo permaneceu isolado e vulnerável à guerrilha da Unita. A missão só pôde ser estabelecida de forma permanente após o fim da guerra civil, quando as condições de segurança permitiram a presença contínua de religiosos e voluntários. Hoje, atende uma população estimada em 34 mil pessoas, distribuídas por dezenas de aldeias sem rede de telemóvel, sem electricidade pública e sem abastecimento de água canalizada.

Ngungu é mais do que um ponto no mapa. É um símbolo de resistência e esperança. E não está sozinho. Assim como Ngungu, estão muitos outros novos municípios de Angola, a exemplo de Munenga, Kisongo, Keña, Loñe, Pambangala, Kabiri, Lôvwa do Zambeze, Nehone, Xasenge e tantos outros da "Categoria E" que compartilham o mesmo dilema: 

_ Como é que o desenvolvimento chegará lá sem asfalto, sem telecomunicações, sem energia (para todas as aldeias), sem água canalizada, sem saneamento básico e acções preventivas de saúde, sem planos directores para orientar o nascimento e crescimento urbano, sem “n” equipamentos sociais indispensáveis?

A pergunta parece simples, mas carrega o peso de décadas de centralização, promessas por cumprir e políticas públicas que ainda não alcançaram o país profundo. O asfalto, nesse contexto, é mais do que uma camada de betume. É via que facilitadora do acesso, de dignidade, de conexão com o resto da nação e aproximação de pessoas, bens e serviços.

Sem estradas, não há ambulâncias que cheguem a tempo, não há professores e enfermeiros que queiram ficar, não há comércio que floresça. O isolamento físico transforma-se em isolamento social, económico e político. E os municípios recém-criados, embora celebrados com júbilo, continuam à espera do básico: água potável, energia eléctrica, escolas funcionais, centros de saúde equipados e telecomunicações.

Mas há também uma força silenciosa nesses lugares. Uma força que brota da terra vermelha, dos batuques nas noites sem luz, das crianças que caminham horas para estudar, dos líderes comunitários que não desistem. Ngungu e seus irmãos municipais são territórios de luta e de futuro — se houver vontade política, investimento sério e respeito pelas populações que ali vivem.

A crónica termina com a mesma pergunta que a iniciou, agora mais urgente e mais colectiva:  

_ Como é que o desenvolvimento chegará lá sem asfalto?  

E, talvez, com outra:  

_ Será que o país está pronto para ouvir a resposta?

segunda-feira, outubro 13, 2025

AS VOZES DO KWANZA-SUL NO MOSAICO LINGUÍSTICO DE ANGOLA

Por: Soberano Kanyanga*

I. Introdução

A província do Kwanza-Sul ocupa uma posição estratégica no mapa etnolinguístico de Angola, situando-se entre dois grandes polos culturais e linguísticos:

  • Polo Ambundu: Luanda, Bengo, Malanje e Kwanza-Norte, onde predomina o Kimbundu.
  • Polo Ovimbundu: Huambo, Bié e Benguela, com predominância do Umbundu.

Esta localização faz do Kwanza-Sul uma zona de transição etnolinguística, onde coexistem variantes do Kimbundu e do Umbundu, além de falares locais que expressam a complexidade histórica, social e identitária dos seus povos.

 II. Zonas de transição etnolinguística: Definição e relevância

As zonas de transição etnolinguística são espaços de contacto entre línguas e culturas, caracterizados por:

  • Multilinguismo funcional
  • Interferência linguística (lexical, fonética, sintática)
  • Identidade linguística fluida
  • Variação dialectal e inovação linguística

Distribuição dos falares por influência dominante:

Grupo de maior influência Ambundu (Kimbundu):

  • Kibala
  • Mussende
  • Kilenda
  • Hebo
  • Lubolu
  • Mbwim (Amboim)
  • Waku

Grupo de maior influência Ovimbundu (Umbundu):

  • Seles
  • Cassongue
  • Sumbe

III. O “Falar” da Kibala: Identidade, resistência e reivindicação

A variante do Kimbundu falada na Kibala e arredores é reconhecida pelos próprios falantes como:

  • Kimbundu
  • Kimbundu ky’Epala
  • Kimbundu kyetu

O termo “ngoya”, usado de forma pejorativa por povos vizinhos, foi indevidamente promovido como designação linguística por meios da comunicação social, sem base científica ou consulta aos verdadeiros detentores do conhecimento ancestral e zeladores da história oral.

Importa sublinhar que a designação de uma língua deve estar em harmonia com o nome do povo que a fala. Assim como se fala da língua portuguesa para o povo português, da língua francesa para os franceses, ou da língua ucokwe para os tucokwe, também se deve respeitar essa lógica no caso da Kibala, onde o povo se identifica como Ambundu e a sua língua como Kimbundu da Kibala.

“Não basta ser soba para confirmar dados históricos. É preciso ter idade e discernimento necessário.”


IV. Quadro comparativo: Povo e Língua

Este quadro serve para ilustrar a coerência entre identidade étnica e designação linguística, desmontando a falácia da chamada “língua ngoya” atribuída ao povo da Kibala:

Povo / Comunidade

Gentílico / Identidade

Designação da Língua

Portugueses

Português

Língua portuguesa

Franceses

Francês

Língua francesa

Tucokwe

Tucokwe

Língua Ucokwe

Bakongo

Bakongo

Língua Kikongo

Ambundu

Ambundu

Língua Kimbundu

Ovimbundu

Ovimbundu

Língua Umbundu

 

V. A Herança colonial e a imposição terminológica

Durante o período colonial, foi imposta uma hierarquia linguística que marginalizou os falares africanos, rotulando-os como “dialectos” ou “línguas menores”. A introdução do termo “ngoya” pela Rádio VORGAN nos anos 80 e pela RNA/Ngola Yetu em 1992 e 2007 não foi precedida por estudos científicos nem por validação de “Agentes Autorizados das Comunidades”.

Em 9 de Junho de 2012, o então governador Serafim do Prado solicitou à Ministra da Comunicação Social, Carolina Cerqueira, a substituição oficial da designação “ngoya” por “Kimbundu Kyetu”, alinhando-se com a resposta popular à pergunta:

_ Eye oji lyahi wondola (Que língua você fala)?

 VI. Estudos, testemunhos e evidência de campo

  • Tomé Grosso: Na sua monografia "O Dialecto Kibala (Kimbundu) e a Problemática do Termo Ngoya como Dialecto", revela bilinguismo funcional e confusão terminológica entre os jovens, influenciados por meios de comunicação.
  • Soberano Kanyanga: Inquérito com 60 participantes mostra rejeição ao termo “ngoya” e afirmação do Kimbundu da Kibala como língua de identidade.
  • Gabriel Vinte e Cinco, Moisés Malumbu, José Redinha: Confirmam a origem Ambundu dos Kibala e não identificam qualquer referência histórica ou etnográfica à existência de um povo ou língua “ngoya”.
  • Em "AS CLASSES NOMINAIS DO KIBALA-NGOYA, UM FALAR BANTU DE ANGOLA NÃO DOCUMENTADO,NA INTERSECÇÃO DOS GRUPOS KIMBUNDU [H20]E UMBUNDU [R10]!", JEAN-PIERRE ANGENOT / NDONGA MFUWA / MICHELA ARAUJO RIBEIRO, pesquisadores da Universidade Federal de Rondônia, Universidade Agostinho Neto, Universidade, consideram “O kibala - ou kibala-ngoya – um falar bantu de Angola não-docu-mentado em uso no centro da província de Kwanza Sul, numa área relativa-mente extensa cujas principais localidades são Kibala, Ebo, Wako Kungo, Assango, Cabela, Condé, Quilenda e Mussende. 

Acrescentam que “É propositalmente que recorremos à denominação ‘falar’ ao referir-mos ao kibala na medida em que paira alguma incerteza sobre a questão desaber se é uma variante dialetal assaz distante da língua kimbundu [H21], uma língua autônoma dentro do grupo kimbundu [H20] ou – a priori porque não – do grupo umbundu [R10], ou se se trata de um falar híbrido detransição entre as zonas tipológicas H e R do domínio bantu. O kibala é também – e sobretudo – conhecido como ngoya, um termo pejorativo de origem umbundu com o significado de “bárbaro”, “selvagem”,“imprestável”. ... Contudo, constata-se, notadamente no círculo dos inte-lectuais e políticos oriundos da comunidade, uma reação de repúdio dessa denominação, com proposta de sua substituição oficial por “kibala”, um ter-mo cujo uso até há pouco estava restrito ao meio acadêmico luandense sem real penetração no seio da comunidade dos locutores para os quais a palavra diz somente respeito à principal cidade da região que se chama Kibala e cujos habitantes são chamados “kibalistas”. Recentemente o Instituto de Línguas Nacionais promoveu em Sumbe, capital provinciana do Kwanza Sul, um vasto debate acadêmico-político sobre a realidade sociolinguística da região esobre a adoção da denominação mais adequada entre as denominações concorrentes “ngoya” e “kibala”. De acordo com uma comunicação pessoal do bantuista Vatomene Kukanda, diretor do ILN e decano da Faculdade de Letras da UAN, foi “kibala” que foi recomendado pelos participantes do seminário, entre os quais foram consultados importantes chefes tradicionais”, in PAIA 21(2), p. 253-266, 2011. ISSN 0103-941. 

VII. Propostas para a valorização dos falares locais

  • Educação: Inclusão dos falares locais nos currículos escolares.
  • Cultura: Estímulo à produção artística e literária nas línguas locais.
  • Investigação: Criação de centros provinciais de estudo linguístico.
  • Media: Uso responsável das designações linguísticas, com base em investigação científica e memória histórica comunitária.

 VIII. Conclusão

A valorização dos falares locais é essencial para a preservação da identidade cultural do Kwanza-Sul. Os “falares do Norte e Centro do Kwanza-Sul” são variantes legítimas do Kimbundu e devem ser reconhecidos como tal, com base em evidência histórica, linguística e comunitária.

“Toda a ciência que envolva a antropologia, história e etnografia deve sempre ter o campo como ponto de partida.” — Soberano Kanyanga

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 Leia mais em: "MESU MAJIKUKA": Resultados da pesquisa para Ngoya 

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*Formado em Didáctica de História e investigador social.


terça-feira, outubro 07, 2025

O KIMBUNDU E UMBUNDU – LÍNGUAS NACIONAIS CODIFICADAS – E O CASO DO KIBALA OU NGOYA

1. INTRODUÇÃO

Angola é um país de grande diversidade linguística, onde coexistem o português — língua oficial — e várias línguas nacionais de origem bantu. Entre estas, destacam-se o Kimbundu e o Umbundu, línguas com tradição oral, produção literária emergente e crescente reconhecimento institucional. O Kibala (ou Ngoya), por sua vez, representa um caso singular de debate linguístico e identitário, situado entre a variante dialectal e a possível língua autónoma.

2. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA E DISTRIBUIÇÃO DAS LÍNGUAS

2.1. Kimbundu

Falado predominantemente nas províncias de Luanda, Bengo, Cuanza Norte, Malanje e partes do Cuanza Sul e Uige, o Kimbundu é a língua do grupo Ambundu. Com mais de 3 milhões de falantes, apresenta estrutura tonal, sistema de classes nominais e forte prefixação verbal e nominal. É uma das línguas bantu mais estudadas em Angola, com influência lexical no português angolano e brasileiro.

2.2. Umbundu

Predomina nas províncias do Huambo, Bié, Benguela, partes da Huila, Namibe e Cuanza Sul, sendo a língua do grupo Ovimbundu. É a língua nacional mais falada em Angola, com forte presença na educação, cultura e comunicação social. A sua estrutura gramatical e riqueza lexical têm sido objeto de estudos linguísticos e etnográficos.

2.3. Kibala (ou Ngoya)

Falado na região da Kibala, abrangendo localidades como Hebo, Kilenda, Lubolu, Mbwim e Waku, é considerado por alguns estudiosos como uma variante do Kimbundu, enquanto outros defendem a sua autonomia linguística. O termo “Ngoya” é exógeno, usado por comunidades vizinhas, enquanto os falantes se referem à sua língua como “Kimbundu da Kibala” ou "Nosso Kimbundu".


3. INSTRUMENTOS NECESSÁRIOS PARA A AUTONOMIZAÇÃO DE UMA LÍNGUA

A autonomização de uma língua — ou seja, o processo pelo qual uma variante dialectal passa a ser reconhecida como língua independente — é um fenómeno linguístico, político, social e cultural. Não há uma única autoridade que o define, mas sim um conjunto de actores e etapas que contribuem para essa legitimação.

3.1. Codificação e Normalização

Gramática própria: Regras definidas de morfologia, sintaxe e fonologia.

Ortografia padronizada: Sistema de escrita consensual e estável.

Dicionário: Repertório lexical que legitima o vocabulário da língua.

3.2. Produção Escrita e Literária

Textos literários, científicos e jornalísticos.

Traduções para e a partir da língua, demonstrando sua capacidade de comunicação universal.

3.3. Reconhecimento Institucional

Inclusão em currículos escolares, exames e documentos oficiais.

Políticas linguísticas de promoção e preservação.

3.4. Uso Social Alargado

Comunidade de falantes nativos e fluentes.

Presença nos media: rádio, televisão, internet, redes sociais.

3.5. Autonomia Identitária

Sentimento de pertença.

Distinção funcional em relação a outras variantes.


4. QUEM DEFINE A AUTONOMIZAÇÃO DE UMA LÍNGUA?

Comunidade de falantes: O reconhecimento começa internamente, com o sentimento de identidade linguística.

Linguistas e académicos: Estudam, descrevem e codificam a variante.

Instituições políticas e educativas: Oficializam a língua e promovem sua inclusão nos sistemas de ensino.

Organismos internacionais: Como a UNESCO e o ISO, que atribuem códigos linguísticos.


5. COMO SE PROCESSA A AUTONOMIZAÇÃO?

Codificação linguística: Elaboração de gramática, ortografia e dicionário.

Produção cultural: Literatura, música, teatro, imprensa.

Mobilização social: Movimentos culturais e comunitários.

Reconhecimento oficial: Declaração como língua nacional, regional ou co-oficial.


6. COMO SE DEFINE O NOME DE UMA LÍNGUA?

O nome pode derivar de:

Autodenominação dos falantes (ex.: Umbundu).

Topónimo ou região (ex.: Catalão).

Grupo étnico ou cultural (ex.: Zulu).

Termo histórico ou tradicional (ex.: Latim, Tétum).

Em alguns casos, o nome é disputado ou evolui com o tempo, conforme o reconhecimento político ou académico.


7. O CASO DO NGOYA: LÍNGUA OU VARIANTE?

Kibala (ou Ngoya) representa um exemplo paradigmático do debate sobre a sua designação e autonomização linguística. Estudos como os de Tomé Grosso, Ndonga Mfwa, Gabriel Vinte e Cinco e Soberano Kanyanga apontam para uma variante do Kimbundu com identidade própria, falada na região da Kibala. A sua autonomização depende da aplicação dos instrumentos descritos, bem como do reconhecimento da sua identidade linguística pelos falantes e pelas instituições.


8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Angenot, Jean-Pierre; Mfuwa, Ndonga; Ribeiro, Michela Araújo – As classes nominais do Kibala-Ngoya.

Araújo, Paulo Jeferson Pilar; Petter, Margarida – O quimbundo e o português do Libolo.

Canhanga, Luciano (Soberano Kanyanga) – A língua dos Kibala – Kimbundu ou Ngoya?

Cobbinah, Alexander – Lubolo-Ngoya | Endangered Languages Archive.

Grosso, Tomé – Monografia sobre o Dialecto Kibala e o termo Ngoya.

Jordan, Linda; Manuel, Isata – Sociolinguistic Survey of Kwanza Sul Province.

Kitumba, Evaristo – Problemática linguística da província do Kwanza-Sul.

Mfwa, Ndonga – Estudos sobre variantes do Kimbundu e o caso Ngoya.

Ndombele, Eduardo David – Reflexão sobre as línguas nacionais no sistema de educação em Angola.

O Pais – Colectânea “Letras sobre as Línguas de Angola”.

Pinto, Hermenegildo – Umbundu: caminhos para a sua preservação.

Ramos, Rui – A Língua Kimbundu.

Sacalembe, Júlio – Políticas linguísticas em Angola.

SIL International – Sociolinguistic Survey of Kwanza Sul Province.

Wikipedia – Ngoya language.

quarta-feira, outubro 01, 2025

A ESCOLA QUE ERA O ISMAEL

Estávamos no ano de 2002. Lembro-me bem, pois eu tinha acabado de comprar o meu primeiro carro. Entre os jornalistas juniores da LAC ninguém mais tinha.

Naquele tempo, as estradas ainda pareciam largas, pois contavam-se os que possuíam carros próprios. O da Redacção ainda recolhia e distribuía.

1 ano sem ti

O Ismael Mateus tinha deixado o seu carro na estação de serviço (eram poucas ainda). No final do turno, chamou-me.

_ Cidadão, conduzes, não é?

_ Sim, chefe!

_ Tens carta?

_ Sim! _ Menti-lhe.

_ Então vem comigo.

Fomos à estação de serviço, perto da RNA, pegar o carro que fora higienizado. Ele estava a conduzir um outro emprestado. O trajecto era do Alvalade às proximidades do Vila Clotilde (Rua da Liga). Passámos perpendicularmente pela Sagrada Família, não entrei pela F. Weliwítschia. Eu à frente e ele atrás. Buzinou-me. Transpirei. Peguei a rua seguinte e segui até à casa em que ele vivia.

_ Cidadão, não basta saber acelerar e travar. É preciso conhecer a cidade. As rotas mais curtas. Percebes?

_ Sim, chefe!

Com seu braço longo, pousou sua mão sobre meu ombro. Senti o apreço. E era sem preço.

Lembro-me também dos cursos que me mandavas fazer, mesmo sem "pocket money".
Fui à Bélgica com USD 300 para uma semana (ACP-UE). Fui a Portugal com USD 100, só para exemplificar. Alguns colegas de redacção reclamavam que "os chefes aproveitavam as formações com ajudas de custos e mandavam os juniores às formações que não tivessem dinheiro". E dizias:

_ Vai só, seu matuense. Tarde ou cedo verás os resultados.

Não é que "o meu avião" descolou rápido e deixou para trás os demais?!

Foste um gajo fixe e visionário, padrinho Ismael Mateus!

segunda-feira, setembro 29, 2025

A LAVRA DE NINGUÉM

Na aldeia de Rimbe, onde o rio Kazondo se insinuava como veia ancestral entre dois domínios, o das mulheres ao norte e o dos homens ao sul, o tempo não corria: meditava. Ali, o presente era uma sombra alongada do que fora sonhado, mas jamais plenamente alcançado.

Rimbe emergira do êxodo dos migrantes de Kuteka e de Katoto, almas errantes que, fugindo da pólvora e da ignorância, carregavam nos ossos o esboço de um município utópico, a Munenga, cuja concretização tardaria quarenta e cinco anos, quando os fundadores já não mais existissem: mortos, dispersos ou tragados pelo esquecimento.
Ao norte, onde o Kazondo se entregava ao Riaha, rio maior, as mulheres, sobretudo as raparigas, lavavam louça, purificavam o corpo e desenhavam sonhos com a água. Era o território da higiene, da subsistência e da esperança doméstica.
Ao sul, onde o rio contemplava a nascente guardada por uma montanha perene em verdor, os homens — valentes, inválidos, infantes, mancebos e anciãos — encontravam abrigo, silêncio e vício. Era o domínio da introspecção, da força e da fuga.
Foi nesse sul que os mizangala, jovens de espírito inquieto e engenho improvisado, começaram a se envolver com a Kangonya, erva de leve combustão e vasto alcance. Para uns, era estímulo ao labor braçal; para outros, altivez compensatória diante da ausência de coragem ou eloquência. Mas havia os que, tragados pela erva, se afundavam no ócio absoluto. Não se avivavam para nada e tombavam como pintainhos em poça de água. Pareciam-se com sombras de si mesmos. Eram os “molhados”.
Com o aumento exponencial dos adeptos e os efeitos deletérios da planta, a administração municipal, respaldada pela força policial, passou a fiscalizar lavras e hortas ribeirinhas. Repreendia, e por vezes conduzia os infratores ao tribunal da municipalidade, onde se lhes impunha dias de reclusão e trabalhos sociais. As plantas eram arrancadas e incineradas ao sabor dos ventos montanhosos, como oferendas à ordem pública.
O primeiro a ser colhido pela repressão foi Obaid, surpreendido em flagrante inspiração sob a árvore que sombreava uma planta de lyamba. Alegava que ali pensava melhor, que o mundo lhe surgia mais claro quando o fumo ascendia.
Depois veio Ojna, cuja lavra, batizada de Chaleira, não apenas produzia, mas abastecia a comunidade e cercanias. Visitantes vinham de longe e os amigos o apelidaram de “o farmacêutico da montanha”. Mas também ele foi alcançado pela repreensão policial. Condenado a trabalhos sociais, ouviu sermões que não curavam.
Etnerc, mais discreto, cultivava o que chamava de horta da lucidez. Mas nem a lucidez o livrou da punição. A aldeia começava a se fechar sobre si mesma e os homens sentiam que a terra lhes fugia assim como o Rimbe fugira aos seus fundadores.
Foi então que Ueta, mais avisado e igualmente apreciador da Kangonya, convocou os amigos sob a mesma árvore que abrigara os devaneios de Obaid. Propôs-lhes uma solução inédita:
— Abramos uma lavra de ninguém.
— Lavra de ninguém? Como assim? — indagaram os demais, entre risos e perplexidade.
— Uma lavra que não pertença a Obaid, nem a Ojna, nem a Etnerc, nem a mim. Uma lavra que seja de todos e de ninguém. Se vierem fiscalizar, não encontrarão dono. Se perguntarem, diremos: é da aldeia.
Lavra de Luciano Canhanga
A ideia germinou como a própria lyamba. Decidiram abrir o campo junto à nascente do Kazondo, onde o matagal era cerrado e o caminho, quase invisível. Cortaram apenas o necessário, deixando a natureza como cúmplice. A horta passou a chamar-se CHA — Cooperativa dos Homens da Aldeia.
Para que nenhum homem singular fosse responsabilizado, pregaram numa árvore visível a todos uma placa com três letras: CHA. E ali, entre o verde que nunca secava e o silêncio que guardava segredos, os mizangala reinventaram a pertença.
Rimbe, que um dia fugira dos seus, voltava a ser deles, mesmo que fosse só por entre fumaça, folhas e alucinações.

segunda-feira, setembro 22, 2025

SACHA

Acordei ao pregão de um mendigo que, de casa em casa, pede, manhã cedo, as "sobras da janta". 

- Não leva ao lixo a comida que sobrou. Dá "no" pobre. - Cantarolava, desafiando os passarinhos alojados nas copas das minhas árvores. 

De imediato, veio-me à cabeça a experiência do milho trazido do Kwanza-Sul e que empresta a sua cor ao descampado. Hoje não me dei ao trabalho mínimo de conferir se é mesmo "sacha" a limpeza de ervas daninhas que crescem entre o milheiral.

Cresci, com o milho, a vê-lo e a "sachar". Desde pequeno no Limbe.

- Filho pequeno não trabalha porque não come muito. - Dizia eu a reclamar do sol, suor e ardor.

Durante algum tempo, fora apelidado de "Filho Pequeno".

Dizem também que "é mais fácil retirar alguém do campo do que o campo dele". Essa máxima deve combinar comigo.

Em Fevereiro, fomos ao Ebo e pedi à Dina Martins uma espiga de milho.

- Mano, podes tirar quantas quiseres.

Abaixei e retirei uma espiga pequena e desdentada, ou seja, a que tinha várias falhas de grãos.

- Essa, mano?! Porquê? Tira, ao menos, uma grande e boa. - Insistiu a Dina.

- Irmã, é só para brincar e recordar os tempos de camponês. Não tenho lavra. Vou pôr no quintal ou no canteiro e depois os meninos vão arrancar. Não adianta levar o que sei que não terá serventia. - Expliquei, deixando-a mais cômoda.

A espiga andou esquecida no carro, até que, um dia, ao retirar umas tralhas que me "feriam os olhos" dei conta dela. Calhou que tinha "pinguiscado" umas gotículas de chuva. Descarocei e levei os grãos, dois a dois, ao solo firme do canteiro e do descampado que se acha contíguo à minha casa.

Os cabritos e os meninos desgovernados que pululam o bairro destruíram a maioria. Deixei que os sobreviventes ficassem camuflados no capim que cresce apressado com a vinda da chuva.

- É chegado agora o tempo da sacha. - Falei para mim mesmo.

Não tendo enxada, a pá fez a vez, removendo o capim e envolvendo os milheiros de mais terra.

Tal como dissera à Dina, de uma espiga "desdentada" podemos ter cinco ou muito mais espigas ou mesmo quilos de grãos que podem, depois, ser replicadas e multiplicadas. Isso é crescimento. 

Já imaginou quem tem um descampado à volta de casa fazer igual? Pouparia uns Kwanzas, cumpriria o papel decorativo verde e atenderia ao ambiente e ao estômago.

São conversas "milhonárias" que podem render.

segunda-feira, setembro 15, 2025

O PILÃO DA TIA KAMBANDU

[Baseado em narrativa do Castro Albano e vista de constatação]

Há objectos que não se gastam com o tempo.
Gastam o tempo. O pilão que "vive" na casa da tia Kambandu não é apenas um tronco esculpido: é memória compactada. É gesto que resiste. Foi talhado por Albano Kyuma, com mãos que sabiam conversar com o mundo vegetal.
— Veio visitar-me, quando comecei a engatinhar — contou o Castro, baseado em relatos de sua mãe, Kambandu ka Luxandi, que tem um olhar que mistura lembrança e saudade.
O velho Kyuma chegou como quem traz mais que presença: trouxe da mata um tronco grosso escolhido a detalhe, silêncio respeitado e uma intenção que não se explica. Só se sente.
O pilão nasceu ali, entre paus, escopro, martelo, conversas e pausas. Não foi apenas um presente. Foi um pacto. E logo serviu para esmagar cana-de-açúcar, cujo suco serviu para confecionar a saborosa e sempre presente walwa ou kisângwa, bebida que o patriarca saboreava como quem escuta os que há muito partiram. Ele dizia que o gosto da cana moída naquele pilão era diferente, como se a madeira tivesse memória própria.
— Esse pilão já viu mais caminhos que muitos homens. Acompanhou-nos de Mbango a Munenga, de Munenga ao Lususu, do Lususu ao Mbango de Kuteka - incluindo a lavra junto à vala da Senhora Kasenda_ e do Mbango à aldeia de Pedra Escrita — narrou a tia Kambandu.
Várias foram as viagens, as epopeias, sempre com ele à cabeça construindo novas estórias. Ficou na casota da lavra, voltou para a casa da aldeia e nunca reclamou. É como se soubesse que a sua missão não era apenas moer. É lembrar.
Hoje, quando a velha Kambandu o usa, na aldeia de Pedra Escrita, não é só o som do pilador contra o pilão que se ouve. É a voz de Kyuma, é o riso da velha Kambandu, é o cheiro da infância misturado ao suco doce da cana, e da fome afugentada pelo milho e bombô triturados naquele pilão. E o Castro Albano, filho de Kambandu ka Luxandi e neto de Kyuma, sabe que enquanto esse pilão existir, nenhum esquecimento será completo.
Na tradição bantu, o pilão é muito mais do que um utensílio doméstico. Ele é símbolo de continuidade e herança. Passado de geração em geração, o pilão carrega a memória dos que vieram antes. Cada marca na madeira é uma história, cada uso é um rito de ligação com os ancestrais.
É também centro da vida comunitária. Em muitas aldeias, o som do pilão marca o início do dia. É um som que une, que convoca, que anuncia o preparo da refeição e o pulsar da vida.
O pilão é ainda um instrumento de iniciação e aprendizagem. Crianças aprendem a pilar com os mais velhos, num gesto que é ao mesmo tempo físico e simbólico — aprender a transformar, a sustentar, a respeitar o alimento.
Confecionado por homens da aldeia, o pilão é elemento feminino e sagrado. Tradicionalmente manuseado por mulheres, o pilão representa o poder de nutrir, de transformar o cru em cozido, o bruto em alimento. É também símbolo de fertilidade e de força silenciosa.
É ainda tido com objecto de rituais e cerimónias. Em algumas comunidades, o pilão é usado em ritos de passagem, como casamentos ou funerais, sendo considerado um elo entre o mundo dos vivos e o dos ancestrais.
Assim, o pilão da tia Kambandu, confecionado pelo seu sogro Albano Kyuma, não é apenas madeira. É tronco de memória, tronco de identidade, tronco de pertença. É por isso que resiste ao tempo. Já lá se foram perto de cinquenta anos!

segunda-feira, setembro 08, 2025

A "PASSADEIRA" DE KAPAYO

O dia estava agitado, como o vento frio que soprava impiedoso, parido e empurrado pela corrente gélida de Benguela. No vasto espaço ao redor do Estádio de Ombaka, agora metamorfoseado em ruelas e vielas por construções temporárias de stands, homens e mulheres se acotovelavam para passar, levantar ou pousar imbambas de toda sorte. O recinto fervilhava com a azáfama de feirantes vindos de todos os cantos de Angola: lá estavam 21 províncias e 326 municípios que representavam o povo, suas identidades culturais e as idiossincrasias de mais de 378 comunas.

Entre os muitos stands, um em particular chamava atenção — o do Úkwa, antiga comuna perto de Kakwaku da minha infância escolar. Ali, repousava a réplica de uma caçadeira esculpida em madeira, que parecia guardar memórias ancestrais.
— Chefe, estão a vender arma! — exclamou a jovem Suzana, talvez tomada pelo medo ou pela curiosidade pueril.
— Arma? De guerra ou de caça? — perguntei, aproximando-me.
O objecto, embora inofensivo, fez-me recuar quarenta e cinco anos no tempo. A memória trouxe-me a imagem da “passadeira” do tio Kapayo. Era assim que chamávamos a sua pequena caçadeira, usada para espantar os pássaros que desenterravam o milho recém-semeado. Os atrevidos que esvaziavam os mamões ainda nos mamoeiros tinham o mesmo destino — sobretudo os mais corpulentos, que, abatidos, viravam conduto em tardes de sol abrasado e fome de leão.
Às vezes, a "passadeira" do tio Kapayo, na nossa Munenga, também servia para afugentar macacos teimosos ou abater lebres quando a sorte sorria. Mas ninguém, além dele, ousava usá-la. Era dono de uma pontaria que gerava inveja e admiração.
— Quando eu crescer como o tio Kapayo, também quero ter uma igual — sonhávamos, primeiro com a chance de segurá-la, depois com o desejo de possuir uma que nos desse liberdade de disparar e levar o produto às mamães, que se alegravam quando nossas armadilhas traziam conduto para casa.
— Chefe, não sai tiro? — voltou a perguntar a Suzana, inquieta ao ver-me ensaiar uma posição de tiro.
— É de madeira. A verdadeira não pode ser exposta. Lá na nossa zona, as caçadeiras têm grande valor. Homem de verdade tem de ter uma, no mínimo. As pequenas são para abater aves que prejudicam o milho. Também servem para afugentar os macacos que destroem a banana, o milho e outras culturas. As grandes, essas só os mais velhos usam. São eles que se embrenham na floresta densa à procura de veados, corsas, porcos-espinhos, javalis, pacaças e outros animais.
Enquanto eu e a senhora do Úkwa desfiávamos rosários de lembranças, a Suzana balançava a cabeça em aprovação, acompanhando cada detalhe de uma história desconhecida e absorvendo o conhecimento como quem bebe água fresca em dia de calor.
Foi então que se aproximou um homem de porte firme, chapéu de palha e olhar sereno. Chamava-se Mário, artesão e contador de histórias da comuna da Munenga. Trazia consigo um pequeno tambor e uma sacola com diversas sementes.
— Essa caçadeira aí tem alma — disse ele, com voz grave. — Foi feita à imagem da que o Augusto Kapayo usava. Eu mesmo vi ele abater um porco-espinho com um só disparo, sem ferir a carne.
— Conheceu o tio Kapayo? — perguntei, surpreso.
— Conheci. Estudámos Dormimos juntos e passamos várias noite na mata, em tempos de caçadas. Ele dizia que a arma não era só para matar, mas para proteger o milho, a honra e os sonhos dos meninos da Munenga. As nossas caçadeiras atendiam a diversão e o imperativo de levar carne para casa. Lembro que o velho João, pai do Kapayo, trabalhou quase um ano a juntar o dinheiro para comprar a caçadeira que ofereceu de presente ao filho, quando esse completou a quarta classe do tempo colonial que era igual à vossa universidade de hoje.
A Suzana arregalou os olhos.
— Tio Mário, e vocês nunca tiveram medo de dormir na mata?
— Medo? Medo é como sombra: só aparece quando o sol está forte. À noite, quem tem caçadeira não tem medo. O caçador aprende a andar com ela sem tropeçar.
Nesse momento, juntou-se ao grupo uma menina de tranças apertadas e olhos curiosos. Chamava-se Lúcia, filha da senhora do stand. Trazia um cesto com frutas e uma pequena estatueta de madeira.
— Esta é a minha primeira escultura — disse ela, oferecendo-me. — É um macaco a fugir da lavra.
Sorri. A arte, ali, era memória viva. Já tinha visto tantos a fugir da lavra com uma espiga de milho na boca.
— Tia, e os homens do Úkwa não sentem medo dos animais na floresta? — insistiu Suzana.
— Filha, tudo se treina e aprende. Medo é para pessoa kawiso. Mas a vida é cíclica. Muitos dias têm sido de alegria para os caçadores, mas também já houve acidentes na mata em que o caçador virou presa.
Ensaiada a posição de tiro, aquele sonho de infância nunca realizado voltou a pulsar em mim. Mas havia outros afazeres. Parti, deixando a Suzana, a Lúcia e o velho Mário trocando saberes sobre a vida nas aldeias do Úkwa e da Munenga e sobre um país que, ali, se mostrava inteiro aos olhos de todos.
E a caçadeira, brilhante e silenciosa, continuava a contar histórias a quem soubesse escutá-la.