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sexta-feira, novembro 22, 2024

A CHUVA, A AGRICULTURA E O CONDUTO

Bem, o dia amanheceu tristonho para os kimonya¹ das cidades. Até ao meio-dia, "pinguiscou" água dos céus, como gostava de brincar o meu amigo Maninho Sócrates, referindo-se aos aguaceiros.
Não foi chuva que impedisse um agricultor a fazer-se a caminho do "arimo" ou largar a enxada no meio da jornada. Foi um gotejo demorado, mas que brigou com o calor causado pelo exercício físico do trabalho campestre.
E, sob gotejos não muito densos, mas persistentes, aproveitei corrigir um canteiro cujo milho tarda em germinar ou não quer germinar.
Da anterior colheita, havia sobrado umas espigas "kamabwinyi" que podem resultar em resolutas massarocas. Descarocei e levei os grãos à terra. Aproveitei completar a metade do terreno que aguardava por sementes. Quiçá, tenhamos algum milho para divertir os dentes daqui a quatro meses.
O milho é de colheita rápida e, em sistema de regadio, podem acontecer três colheitas anuais em um mesmo campo. Quem tem kibembe grande e puder intercalar o período de sementeira, chega a ter milho durante todo o ano.
Uma gajajeira, seis bananeiras e duas anonáceas foram transplantadas e a elas somadas alguns ramos de batateira, não faltando o bambu para conter a zona junto à vala que é propícia ao enravinamento.
Mas a prosa de hoje, embora associada ao campo, tem a ver com as tarefas que a sociedade rural atribui aos homens e às mulheres e outras que são comuns.
Na mesma manhã viajei para o interior. A uns dez ou menos quilómetros da vila da Kibala, vi rapazes com altas canas que usam para a pesca numa represa agrícola. Era sábado, dia de descanso escolar. Reparei que, tirando poucas, as meninas eram raras nas aldeias e na estrada.
Os rapazes sim. Uns com instrumentos rudimentares de pesca e outros com artefactos de caça. Viajei para os tempos da minha meninice.
_ As mães e as filhas estão na lavra. _ Cogitei.
É tempo de deitar sementas à terra e ou retirar as ervas daninhas que podem prejudicar o crescimento dos produtos. Essa tarefa é comum, todavia, se a mãe e as filhas colhem verduras e levam fuba, mandioca, batata, nhame, lenha (as raparigas) e outros mantimentos, é tarefa do pai e seus filhos cuidarem do conduto. A dieta equilibrada impõe a associação de vegetais e carnes (incluindo peixes e aves).
Um pai kinaña mbala² e filhos que não caçam nem pescam levam a mãe e as irmãs à condição de vegetarianas inconscientes. Por isso, os rapazes, cedo ainda, se esmeram na arte de confeccionar artefactos e técnicas de pesca e caça, começando com pequenos animais roedores, passarinhos e pássaros, estendendo-se aos antílopes, javalis e outros.
Na pesca, começa-se em pequenos rios e represas, sobretudo quando a chuva provoca a turbidez da água e expõe o bagre ou a enguia à isca armadilhada com salalé ou minhoca.
O subir da idade, ao que se acrescem as técnicas aprendidas na escola de iniciação masculina (circuncisão), vão aprimorar a ciência e os desafios.
Resumindo: a pesca e a caça foram confiadas aos homens, assim como desmatar, roçar e plantar bananeiras que exigem maiores esforços.

1- Preguiçosos
2- Que só passa o dia na aldeia.

sexta-feira, novembro 15, 2024

ESCAPARAM COMER KALULU DE GALINHA

Para o conhecimento comum, apodado de outras interpretações fenomenológicas e científicas, o tempo era de chuva e devia chover. Mas, mesmo vistas dos altos céus, as nuvens eram crianças esbranquiçadas a brincar no areal e que correm apressadas atrás da bola de trapos, sem nunca definir previamente o destino. Fazia, por isso, sol de assar castanhas e saudades de chuva e temperos que apenas traziam, na imaginação, o cheiro às narinas.

Mangodinho e Lito encontraram-se de novo.
Primeiro num evento inter-africano, no qual confluíram vários povos. Pessoas amigas e rostos conhecidos em encontros e reencontros internacionais, assim como angolanos que apenas soltam o "olá" quando estão na estranja, onde a vaidade de uns perde rede ante a simplicidade de outros. E diz-se que o angolano é mais solidário fora do país do que dentro das fronteiras. Será?
Bem, Mangodinho é já, pode dizer-se sem errar, homem viajado. Gaba-se ter perdido a conta de passaportes emitidos. E diz mais: "não é apenas por caducidade. É mesmo por ausência de mais folhas por carimbar".
Lito, benguelense ainda jovem, conhece meio mundo. Se calhar mais do que metade. Tratando por "tu" o inglês, língua que domina o mundo do negócio, Lito tornou-se um jovem de primeira linha na empresa que que trabalha. Mas não é só o Shakespearismo dele que o levará "ainda mais longe" como apregoam os que o conhecem por aonde passa. É um jovem que tem sempre livros à mão e que baixa a orelha para ouvir os mais velhos. "Experiência é escola e as universidades e os livros formais não nos dizem tudo", comenta ele, quando abordado sobre a sua "manina" de ouvir os mais velhos como o Mangodinho e outros que nasceram muitos antes de Mangodinho.
Depois do encontro no evento inter-africano, ambos descobriram ainda que estavam alojados no mesmo hotel e andar. Passaram a andar juntos. Passaram a usar o mesmo táxi, a frequentar as mesmas lojas para engordar os olhos e a se sentarem à mesma mesa nas horas escolhidas para as refeições. Quem os visse não teria dúvida. Pelo menos as Joborienses tinham-nos como brothers e, sempre que vissem um a caminhar sozinho, vinha de trás uma pergunta que se tornou típica.
_ Where's you brother?
As quatro semanas foram bem vividas, diga-se, tirando a falta de um bom funji ou pirão que a pepe não substitui. Sumos de gengibre, kitolesa, pomadas de boas safras, águas simples e gaseificadas, abacate e espinafres, carnes tenras de ovelha, stake e t-bone são bons no começo. Quando os dias em falta minguam é a saudade da terra e de suas marcas que invade o viajante. A mente pensante enche-se de imagEns do kalulu, luku, funji ou iputa, kisângwa, lungwila, sakamadeso, mfúmbwa, losaka, xingo, kalembula, matamba, ixi ya mulwiji, entre outras coisas que agradam a boca e enchem o estômago. As conversas, sempre apimentadas e, às vezes, viajando de tema para tema, tomaram como recorrentes os traços da angolanIdade, como os pratos de cada região visitada. Mangodinho e Lito têm outras coincidências internas, daí considerarem-se "amigos como irmãos". Ambos viveram nas distantes Lundas e têm a região ovimbundu como terra incontornável.
Chegou o dia do bye bye South Africa. A companhia era a mesma. Desta vez não havia atrasos nem "overbooking" e o passarão voou à hora prescrita. Assentados na mesma fila, nas cadeiras E e F, respectivamente, Mangodinho e Lito puderam dar azo às conversas postergadas pelo trabalho e sonhar quando o sono se tornou mais forte que o vinho.
_ Mangodinho, acorda é hora do almoço. _ Despertou Lito que cumpria o desafio de ler 50 páginas do seu volumoso livro.
_ Qual é o pitéu, Lito? A senhora já te disse?
_ Acho que é kalulu de galinha.
_ Hum! kalulu no avião? Deve ser com funji!
Os dois entreolharam-se e accionaram as glândulas salivares para transformar o aludido kalulu em bolo alimentar. Para o espanto de ambos, foi-lhes servido caril de galinha que Lito percebera kalulu de galinha.
_ É a saudade da comida que nos falta. _ Rematou Mangodinho, dando um toque no ombro de Lito.
Já muito atrás ficara a grande cidade mergulhada em uma floresta artificial. Lito e Mangodinho comentavam que Johannesburgo não parecia ser apenas uma facilitação da pluviosidade média anual que chega a mais de 780 mm, quando Luanda tem uma média de pluviosidade anual de cerca de 285 mm. É o amor ao verde, o respeito pela vegetação, que fazia tudo influir, "um nível que todos os humanos devem desejar e atingir", segundo últimas palavras de Lito.

sexta-feira, novembro 08, 2024

BEM-VINDO, CAMARADA WELLCOME!

As lojas eram do povo. Os governantes também. Até os malucos tinham donos, os seus parentes que deles cuidavam e com eles se preocupavam. Havia malucos, mas não os víamos desnudados e famintos como agora. Para o acesso ao pão, faziam-se filas nos depósitos, mas os malucos também comiam.

Nas cidades grandes, havia lixeiras e eram muitas. Só que quase não tinham lixo como o de agora. As ruas eram limpas. Manhã cedo, cada mamã ou sua filha mais amada estavam de vassouras nas mãos. As ruas eram varridas de ponta à outra. Cada casa agia à dimensão do comprimento do seu quintal ao eixo da via.

Os gatos miavam noite adentro, brancos pretos e malhados, e comiam ratos. Não eram tidos como bruxos. Vezes havia em que os gatos roubavam peixe na grelha, mas os maninhos ficavam de olho. Um olho no peixe e outro no gato. Não eram os irmãos dos maninhos que roubavam o peixe na grelha, nem a panela de cachupa.
E dizia-se: conselho de uma mãe servia para todos os meninos da rua. Ralhete de um pai, idem. Os desencaminhados eram banidos por todos. Não se viam tias a defenderem parentes larápios e havia tios para repreender e a tropa para os endireitar. Os tropas cumpriam missão. O salário que era "subsídio de suor e sangue" era quando calhasse. Não era salário, nem emprego como se vê nos dias de hoje, não!
Kaxarandanda ficava longe. Longe dos olhos e das pessoas da cidade grande. Tinha pessoas estudadas e aeroporto como noutras capitais e o povo de Kaxarandanda aprendera a respeitar e a bem receber os seus visitantes. Não tinham impressoras nem serigrafias. Escreviam mesmo em rolos de tecido branco, comprado na loja do povo. E era com cartazes, feitos à maneira local, que bem-vindavam os governantes.

A coisa mudou, quando algumas coisas distantes lhes foram impostas. Sim. Impostas mesmo. Mudou suas rotinas. Veja: o aeroporto era de terra batida e tinha manutenções semanais. O novo é asfaltado e cai aos pedaços. A árvore grande geradora de sombra permanente foi derrubada e a casota substituta tem nascente no tecto e mete água por dentro.

Bem, vamos à estória.
Manuel Kwaku Dimoxi era activista político. Perdera a mão numas kitotas sangrentas que tiveram lugar em Kaxarandanda. Dizem que foi no intervalo pequeno entre uma guerra e outra. O dia de sol intermitente, com nuvens que viajavam ora lentas ora apressadas pelo vento, estava no pico. As gentes caloriadas pareciam ter apanhado chuva. Era dia de visita oficial.

O Dimixi havia apenas avisado que Kaxarandanda receberia uma visita importante. Era pessoa mesmo da vila que trabalhava e vivia na capital. Por isso, para as pessoas saberem que Kaxarandanda não era um lugar qualquer, mas gerador de gente que foi longe na administração do Estado, o nome era para descobrir quando o mon'a'bata chegasse e se apresentasse por cima da escada do avião, onde os pioneiros lhe aguardariam com o lenço branco.

Kwaku Dimoxi, nas vestes de secretário para a acção política, era também o instrutor dos pioneiros e fez-se por isso à escada do avião. Os pilotos não tinham ainda aberto a porta. De cima para baixo, Kwaku Dimoxi a querer ver como estava o povo organizado para receber o camarada-conterra-chefe-grande de nome ainda incógnito, olhou para a inscrição pregada sobre a porta da casa que recebe os passageiros desembarcados. Com os conhecimentos sólidos que lhe conferem a sua quarta classe do tempo colonial leu sem soletrar: "Bem-vindo, Wellcome"

_ Porra! _ Soltou a maliciosa interjeição, num som quase inaudível, mas que despertou os dois pioneiros que tinham os lenços nas mãos. _ Nasci aqui. Cresci aqui. Fiz tropa aqui. Esse camarada Wellcome, com esse nome, é daonde? Daqui não pode ser!

sexta-feira, novembro 01, 2024

A CONVERSA QUE NÃO TIVEMOS E O ÚLTIMO PEDIDO

Durante duas décadas e meia de conhecimento mútuo e conversas multi-temáticas algo me terá escapado. Não me lembro termos falado sobre a eventualidade de o Ismael Mateus ter praticado algum desporto, mesmo sabendo que a sua estrutura física era propícia para o basquetebol ou handebol.

Todavia, sabendo que nasceu no Sambizanga, acompanhou o pai à cadeia de São Nicolau (Bentiaba), tendo se feito homem em Luanda, não é de afastar a possibilidade de ter, com os amigos, se entregue à bola para lazer, assim como faziam as crianças, adolescentes e jovens da sua época.
Espero que os seus conterrâneos, como o Manuel Loth e outros, venham debitar doxa a propósito do tema Ismael e a prática de actividades desportivas.

Carlos Calongo retoma, numa prosa datada de 04 de Outubro de 2024, Miguel António (contemporâneo de Ismael Mateus, na Rua da Nocal) que afirma que, na sua mocidade, Ismael Mateus tratava a bola de futebol por tu, tendo sido "defesa central irreverente, líder/capitão do Grupo Desportivo da SIGA", empresa de plásticos que se acha(va) perto da cervejeira acima referenciada.

Quanto ao ver outros a jogar, era fervoroso apoiante do seu Progresso Associação do Sambizanga e, em Portugal, apoiava vivamente o Benfica, cujas alegrias e tristeza o afectavam permanentemente.

No último domingo, ganhei coragem e fui ver aquele "poste" que sustenta a placa publicitária que sugou subitamente o Ismael de nós, no fatídico 01 de Outubro/24. Fica junto a um campo multiusos, na Avenida 21 de Janeiro, entre a FAPA e o começo do Bairro Rocha Pinto, onde se acha um túnel que vai dar à Estrada da Samba.

Busquei as experiências do meu Lubolu. Na via Kalulu-Kisongo há um entroncamento onde foi morto, por agentes a soldo do regime pidesco colonial, nos anos sessenta do séc. XX, um fazendeiro cafeicultor que rivalizava com os portugueses e israelitas da região. Tristes, mas desejosos de recordar aos malfeitores o seu acto hediondo, os amigos construíram no entroncamento o túmulo do assassinado. Dai em diante, o local passou a ser chamado de "Phambu y'Anibal (entroncamento do Aníbal). Na Munenga, uma curva que levou à morte um notável por acidente de viação, ganhou também o seu nome. "Curva do Rocha Cruz".

Fiquei a pensar, a conversar com os meus botões, enquanto o carro deslizava a velocidade de caracol. Aquela curva, ou melhor, aquele campo multiusos em que todos os dias, manhã e pôr-do-sol, os jovens cuidam da manutenção física, podia ganhar o nome do Ismael Mateus para perpectuarmos a memória do insigne jornalista, analista e escritor que viveu as últimas quatro décadas do século XX e as duas primeiras do séc. XXI.

Ousei, por isso, em mandar um whatsapp ao meu Camarada Manuel Homem, sugerindo-lhe que o campo fosse designado Ismael Mateus. Colha ou não a sugestão informal feita ao Governador de Luanda, esta é a minha derradeira homenagem ao padrinho de quem guardo doces lembranças.

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terça-feira, outubro 29, 2024

O HOMEM NAS VIDAS DE UMA MULHER

Domingo cinzento de um mês chuvoso. Tudo parecia andar preguiçoso: o cantar madrugador dos galos, o uivar matinal das lobas ciosas, o acordar das gentes cansadas da tonga semanal e o acumular das nuvens do céu ainda acinzentado, sem sol nem fundo azul. Apenas três vozes se ouviam na sanzala.

Registisso, Ignorisso e Esquecisso, contemporâneos desde a mukanda e feitos amigos para a vida, caminham em direcção à area em que fizeram lavras. É lá também onde se produz o Kanyome que afugenta o frio mais intenso de Cyapya Ndalu e transforma os homens reservados e silenciosos em falantes e filósofos momentâneos. Ignorisso é um deles. Sem esse aditivo, contam-se-lhe as palavras proferidas durante uma marcha conversante de hora e meia que abate seis quilómetros.

Naquele dia, a conversa era fiada. Registisso e Esquecisso, os que sempre tomavam a iniciativa, não teinham anunciado nada. Nadinha. Os primeiros duzentos metros, depois do ponto de encontro que foi a Escola do Povo, tinham sido de surdina colectiva. Apenas a respiração barulhenta de Ignorisso os fazia co mpanhia, até que, fazendo recurso à memória, Registisso abriu um dos capítulos de sua vida.

_ O meu pai morreu em 1982, aos 42 anos, de doença natural, cárdio-respiratória. É normal num contexto anormal em que vivíamos no início da década de 80. Talvez pela doença que o apoquentava, desde adolescente, não tinha uma estrutura corporal robusta e atraente. Viam-se-lhe os ossos e vezes há em que se lhe podiam contar as costelas desenhadas no corpo desnudado. Era, todavia, um homem dedicado e esforçado como bom trabalhador agrícola, caçador e pescador nos rios da região em que habitou. Era engenhoso. Criou peixe em um rio que não os possuía. Hábil na caça com cães. O que dele melhor se falava era a sua habilidade em levar carne para casa. Evitava tomar makyakya e não fumava. Já a minha mãe era o inverso na sua mocidade. Fumava em cachimbo (era princesa e atrevida). Como a nossa casota era pequena (redundância propositada), os seus desentendimentos rápidos chegavam aos meus atentos ouvidos. "Feio, pobre, etc." Lembro-me de ouvir estas e outras expressões que ele geria com elegância e muito silêncio. 

Os dois amigos ouviam sem interromper. Algo comovidos. Algo ansiosos em ouvir a próxima nota, até que Esquecisso interrompeu.

_ E nunca os viste a lutar? Teu pai tinha paciência. Eu quando o sangue me ferve não admito abusos...

_ A vias-de-factos, terão chegado apenas uma vez, mas longe de meus olhos. Cheguei a tal conclusão porque ambos estavam arranhados.

_ E que achavas do teu pai, em relação à tia que era mais dada a trafulha? _ Questionou Ignorisso.

_ Aos meus olhos, o meu pai valia pouco perante a minha mãe que se gabava de possuir poder: poderio político, por ser princesa, e poderio económico, por ter parentes em Luanda que sempre a podiam auxiliar financeiramente em caso de alguma necessidade mais premente. Ele, era uma espécie de "cão-de-merda que não tinha onde morrer". Mas, era um bom pai. Carregava-me ao ombro eu para a escola e ele para a tonga. Queria ter um filho professor" que, depois, ensinasse as outras crianças a sair da escuridão. Ele sabia assinar, lia e escrevia as cartas de outros parentes da aldeia. Em contrapartida, a minha mãe, sobretudo depois de viúva, esforçou-se em criar os filhos. Com e sem marido exerceu poder, mas nunca chegou a ser homem. A masculinidade é doação única e divina!

À medida que a prosa de Registisso ganhava profundidade, a cadência do passo aumentava e o destino se encostava mais aos olhos. Nisso de visitar o guarda-memórias,  Esquecisso também visitou as suas e trouxe ao conhecimento dos companheiros uma situação ainda recente.

_ Olhem! Vocês sabem que no mês passado estive na capital onde fomos nos despedir do irmão da minha ndona. Nas poucas vezes em que conversei como amigo com o meu recém-finado cunhado pude saber do sofrimento por que todos passamos em vida. A desvalorização por parte de quem decidimos caminhar juntos, mesmo nos entregando às causas até ao último esforço. O quê que somos aos olhos delas?

_ Somos meros "cão-de-merda", recebidos com reclamações, resmungos e bafos, atirando-nos ao "rosto" os nossos insucessos, mesmo nunca deixando de tentar o melhor. _ Responderam Registisso e Ignorisso que, desta vez, interagia como nunca.

Empolgado, Esquecisso continuou com as indagações.

_ Para que valemos mesmo? Vocês sabem? 

_ Pra nada! _ Respondeu Registisso, complementando o amigo.

_ O que eu assisto é que os filhos já existem e alguns são grandes. A sexualidade abranda. Algumas vezes (quase sempre), na hora do "vamos ver", o indivíduo é recebido com reclamações, quando não são ataques e ou dislates. Que fazer?

_ Nada! _ Respondeu desta vez Ignorisso.

_ Volto à estória sobre os meus pais. _ Atirou Registisso. A minha mãe foi viúva por três vezes. Um individuo que morreu sem deixar história, o meu pai que morreu aos quarenta e dois anos, deixando quatro filhos e o sucedâneo de quem a minha mãe teve um filho. Amo a minha mãe como ninguém. Todavia, me pergunto até hoje:

O que faz os homens morrerem antes das mulheres, vocês sabem? _ Atirou provocante, sem, no entanto, dar tempo a respostas.

_ Nos dias que correm, a minha mãe não pára de elogiar o bom homem que foi o meu pai. Já lá se foram 42 anos. É a imagem que lega aos netos e às minhas irmãs mais novas que tiveram menos convívio com o papá. Fez a sua parte. Engoliu os sapos e sorveu igualmente a água do charco. Morreu herói. Talvez, um dia, sejamos também lembrados assim, como herói que foi vilão! Se calhar, tal como o meu pai, o teu finado cunhado tenha já sido transformado em querido e saudoso herói e nós, quiçá, no post-morten, venhamos a sê-lo também. Que acham?

Ignorisso e Esquecisso que o ladeavam estenderam os braços e o envolveram num abraço. Estavam já prestes a chegar ao alambique do Ensinisso, irmão mais novo de Ignorisso que estava a destilar kanyome para o seu alambamento.

_ Olha, mano Registisso, quem deve ouvir novamente a nossa conversa é esse miúdo que quer ter mulher, apontou o irmão mais velho, antes mesmo do kwata-kwata.

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Publicado pelo Jornal de Angola de 27.10.24

quinta-feira, outubro 24, 2024

AS TCHETCHÉNIAS DE NOSSAS VIDAS

 A Tchetchénia entrou no nosso quotidiano luandense através da guerra travada naquela República Russa entre 1994-1996. Era presidente da Rússia Boris Ieltsin e da independentista Tchetchénia Dzokhar Dudaiev morto em um ataque aéreo russo e substituído por Alan Makhadov dois anos depois.

As notícias, más, que nos chegavam, via media, reportavam batalhas tão intensas, na capital tchetchéna, Grozni, entre os contendores. 

Como os luandenses são bons imitadores e com elevadas doses de criatividade, os nossos "makongo" familiares também passaram a ser designados por Tchetchénia.

Igual ou pior que a guerra na Tchetchénia terá sido o conflito entre o Irão e Iraque, no início da década de 80 (1980_88) e que também ficou popularizado no nosso linguajar luandense de então.

_ Esse wi está à procura de Irão-Iraque e vai ter! _ Dizia-se em alusão a quem estivesse à "procura" de brogodjó.

Voltemos à Tchetchénia. Lembro-me de uma minha sobrinha, hoje bem formada e casada, que, por ter nascido no tempo da primeira guerra da Tchetchénia e por a relação entre os pais ter sido tensa, foi apelidada, pelos tios (todos nós adolescentes e jovens de primeira caminhada), de Tchetchénia. É o nome pelo qual ainda a tratamos carinhosamente. 

Uns nem sabem que ela tem um nome bem-sonante ao que juntou o apelido do esposo.

Bem, a Tchetchénia surge aqui (nesse texto) para ilustrar que no lugar em que se acha o edifício (na foto) à esquerda existiu um inacabado que fora assaltado por oportunistas e ou homeless person. Um meu primo, já finado, tinha um quarto em um dos 14 andares do antigo prédio da Tchetchénia. Era assim designado por ser um "paraíso de confusão".

Os "tchetchenos" foram desalojados e realojados, tendo o edifício sido demolido. Deu lugar ao que se vê na foto (à esquerda).

terça-feira, outubro 15, 2024

VISITA GUIADA A MASSANGANO

Massangano chama-te!

Uma das razões dos fins-de-semana prolongados ou pontes, quando o dia de feriado calha quinta ou terça-feira é fomentar o turismo interno. Dezassete de Setembro, Dia do Herói Nacional, calhou numa terça-feira e, por isso, as famílias tiveram os dias de sábado, domingo, segunda e terça-feira para descansar e desfrutar.

Para quem trafega no sentido Luanda-Dondo, EN 230, a antiga vila de Massangano fica no lado direito, faltando 25 quilómetros para se chegar à velha cidade do Dongo. Do desvio (ainda em terra batida, todavia já devidamente terraplenada) são apenas 25 quilómetros até se chegar à margem do majestoso Rio Kwanza que se espreguiça na sua calma viagem ao Atlântico. Aqui, numa elevação atalaia, chegou Paulo Dias de Novais, no séc. XVI, estabelecendo a primeira Câmara Municipal do Primeiro Governo Português em Terras Angolanas. Um dos empecilhos ao turismo interno é (ainda) a falta de serviços associados como restaurantes, acomodação, guias turísticos competentes e comprometidos e lojas de conveniência onde se possa adquirir lembranças.

Massangano tem recebido alguns turistas nacionais e internacionais com destaque para família Tucker dos UA (cuja origem é angolana) que, depois de alimentarem os olhos e a mente com conhecimentos sobre os primórdios da presença portuguesa em Angola e o tráfico de escravos, acabam por se retirar por falta de serviços de apoio ao turista.

Tino Cardona, um jovem forasteiro (benguelense) quer que "os turistas venham e permaneçam", está a erguer, bloco a bloco, assim como "grão a grão a galinha enche o papo", um resort que vai impulsionar o turismo no futuro município.
"Já faltou mais e o Resort está a ser equipado com bungalows, quartos normais, esplanada e restaurante", diz, confiante, Tino Cardona, que conheceu Massangano por via do escutismo e turismo religioso.
A partir de Janeiro de 2025, a comuna de Massangano passa a município, desmembrando-se de Kambambe e, ao chegar à sede, quem o vai receber (daqui a alguns meses) será a instalação turístico-hoteleira do Tino. 

_ As obras decorrem bem e já há cinco quartos prontos" de muitos outros por concluir. _ Explicou o investidor.

Uma vez confirmado o estatuto de município, Massangano (que, ao ganhar novo estatuto, devia ter o topónimo ajustado à sua etimologia e semântica) poderá ter uma câmara municipal e um edil, numa situação de termos autarquias.

Metros à frente, começa o conjunto de escombros que guardam a história de Massangano. 

_ À direita, está o que foi tribunal e casa de reclusão. Se viras novamente à direita, encontras as ruínas do que foi a cadeia. Tinha celas subterrâneas. _ Desta vez o narrador é o administrador comunal adjunto de Massangano.

Ao lado esquerdo (a entrar), está o edifício que foi a casa do governador Paulo Dias de Novais. "Mais tarde, serviu de casa dos sipaios", explica Carlos Ângelo Cacoba, administrador comunal adjunto. Depois, está a esquadra da polícia e a sede da administração comunal que vai ser elevada a municipal, já em Janeiro de 2025. As ruínas da antiga Câmara Municipal, século XVI, ficam depois da actual administração. Apar da igreja são os únicos edifícios com utilidade diária e permanente. A antiga Câmara Municipal fica antes da Fortaleza. Mais adiante vê-se a igreja católica e, trezentos metros à frente, seguindo o caminho do Kwanza em direcção ao Atlântico, está o que foi a Praça de Escravos

"Aqui eram avaliados e comercializados como objectos. Os aptos para qualquer transação eram, depois, baptizados na igreja onde recebiam um nome e embarcados, rio abaixo, até ao que é hoje o Museu da Escravatura, seguindo para as Américas e outros destinos". Mas, sobre Massangano não é tudo. O nosso cicerone conta que havia um forno e mostrou o caminho.

"Nele eram jogados os indivíduos sem valor comercial, doentes, inválidos, deficientes, etc. Estes eram jogados no forno como se de leitões se tratassem", conta Carlos Cacoba, possuído de comoção pelos infelizes.

As ruas de Massangano eram iluminadas a candeeiros. Os postes construídos emmpedra onde eram afixados os candeeiros a azeite torcida mantêm-se hirtos e gritam aos ventos e aos que passam a história sobre o seu desempenho e serventia.

Outros espaços que continham casas do tempo áureo da localidade estão em desaparição, podendo ser vistos poucos outros escombros e ou bases "escondidas" entre os casebres dos actuais moradores, feitos a base de pau-a-pique, barreadas e cobertas de chapas de zinco ou folhas de palmeiras. Outras casotas são de adobe (tijolo de terra bruta sem cozimento em forno). Há, porém, um detalhe: todas as casotas de Massangano têm energia eléctrica e podem ser vistos também alguns fontanários. 

Tendo conhecimento de edifícios seculares reabilitados na Europa e notado o estado de depreciação avançada que apresentam os sobrados de Massangano e outras ruínas históricas espalhadas pelo país, uma pergunta me persegue: existirá alguma disposição legal que impeça a reconstrução de ruínas históricas como as de Massangano?

Ora, reza a história que Massangano foi, na verdade, a primeira Câmara Municipal, a primeira sede de governo portuga no território Ngola que evoluiu para Angola. Paulo Dias de Novais foi o primeiro governador português a chegar a Angola e tinha como principais acções explorar os recursos naturais e promover o tráfico negreiro (escravatura), formando um mercado exclusivo de escravos.

Novais obteve do rei D. Sebastião (1568-1578) uma Carta de Doação (1571), que lhe dava o título de "Governador e Capitão-Mor, conquistador e povoador do Reino de Sebaste na Conquista da Etiópia ou Guiné Inferior", nome pelo qual a região de Angola era então conhecida, ou simplesmente Capitão-Governador Donatário. Partiu de Lisboa em 23 de Outubro de 1574 e desembarcou na chamada Ilha das Cabras (actual Ilha de Luanda) a 11 de Fevereiro de 1575. Na ilha já existiam cerca de sete povoados e Novais encontrou sete embarcações fundeadas e cerca de quarenta portugueses estabelecidos, enriquecidos com o comércio negreiro, ali refugiados dos Jagas. Acredita-se que já estivessem ali estabelecidos há alguns anos, uma vez que na ilha também existia uma igreja e um padre.

Estabelecendo-se na Ilha das Cabras, Novais recebeu uma embaixada do rei Ngola Kilwanje Kya Samba (29 de Junho de 1576), recebendo a permissão deste para se mudar para terra firme, para o antigo morro de São Paulo, onde fundou a povoação de São Paulo de Loanda.

Pelos termos da Carta de Doação recebida, Novais deveria expandir o território para Norte até às margens do rio Dande (Bengo), para o Sul, e para o interior ao longo do curso do rio Kwanza. Tinha ainda a obrigação de construir uma igreja, fortalezas e de doar sesmarias, para assentamento dos colonos. Partiu em direção às terras do Ndongo, em busca das lendárias minas de prata de Kambambe, avançando pelo vale do Kwanza até à sua confluência com o rio Lukala, onde (perto dela num terreno alteado que permitia visualizar qualquer embarcação que circulasse nos dois sentidos do rio) fundou a vila de Nossa Senhora da Vitória de Massangano, em 1583.

Novais faleceu em Massangano, em 1589, aos   79 anos, e lá foi sepultado, defronte da Igreja de Nossa Senhora da Vitória, em túmulo de pedra. As suas cinzas foram mais tarde transladadas para a Igreja dos Jesuítas em Luanda, pelo Governador Bento Banha Cardoso, em 1609.

Terminando como começámos esta "visita descritiva", a primeira Câmara Municipal de Angola pode ser restaurada, depois de 2025.

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Texto publicado pelo Jornal de Angola de 22.09.2024

terça-feira, outubro 08, 2024

AS CHALADICES DO CHICO "PÉ DE MULETA"

Nasceu magro como palito de vassoura e muito mexido, daqueles a quem a ciência actual chama hiperactivo. A vida dele foi, entretanto, marcada por um incidente que lhe "comeu" metade do pé, sendo a extremidade do pé esquerdo uma ponta que deixa uma marca parecida à de uma muleta no chão arenoso ou húmido em tempo chuvoso.

A aldeia toda apelidou-o de Lufeñeno (palito). Diz-se que a progenitora de Lufeñeno (palito) era consumidora dedicada e a tempo inteiro de destilados, desde tenra mocidade.
Numa noite de kixobo, Kamone, já endiabrada com doses elevadíssimas de makyakya a correr-lhe no sangue, meteu-se à dança de kilata. Quase à hora de os galos iniciarem o canto, a poeira e o álcool juntaram-se ao sono e cansaço. Lufeñeno ainda não balbuciava palavras. Talvez, também embriagado pelos gases alcoolizados soltos pela mãe, nem tempo para choro teve. Ou melhor, a aldeia não foi a tempo de o ouvir a clamar por socorro.
Kamone dormitava desavisada junto à fogueira. Era a guardiã, apesar da bebedice, da fogueira comunitária, onde todas as manhãs se alimentavam os fogos de todas as casas. Num gesto inexplicado, um dos pés de Lufeñeno foi parar ao lume. O resto, só vendo o resultado que faz os jovens mais atrevidos e lyambados deste tempo tratarem o senhor, quase cinquentão, por kota Chico Pé de Muleta. O nome dele de Lufeñeno quase que não se ouve mais na aldeia de Kimbilima.
Bem, estávamos num óbito. Lufeñeno e eu temos irmãos comuns. Eu pelo lado paterno e ele pelo materno. É assim quando as relações se desfazem e cada ex-integrante forma outro par. Lá em Kimbilima e no Kuteka tratamo-nos como manos.
Os cientistas dizem que a formação da consciência do homem demanda duas heranças: a biológica e a social. As percentagens que me passaram do in ao id estão nos livros e no telefone com internet. Voltemos ao Lufuñeno que herdou a copofonia da falecida mãe. A propósito, a kasule do meu pai, vendo Lufeñeno, com aquela sua perna de pé cortado a beber como se o amanhã não existisse mais, teve de soltar um desabafo malicioso.
_ O papá mesmo não tinha sorte de arranjar mulher!
Pena é que o sô António Chico pereceu em 1982 e não temos como tirar-lhe explicações.
_ Coitado. E ele não bebia nem fumava. _ Respondeu Kasola a irmã mais velha da Kethanga, a primeira a sentir pena do pai.
E o Lufeñeno começou as suas chaladices convocando os sobrinhos:
_ António, vem prá cá. Domingos, ó sô Lumingu, vem também. O Manuel num fica atrás vêm juntos.
_ É o que então, ti Chico? _ Interrogaram-se algo revoltados, arrastando outras reclamações enquanto se aproximavam a passo de lesma.
_ Esse ti Chico também quando fica xonê é chatinho. _ Atirou o Domingos.
Mas, Lufeñeno tinha uma agenda para aquela noite. Temendo usar da agressão que, às vezes, quando demasiadamente encopado, lhe era característica, os adolescentes ficaram a metro e meio, evitando abeirar-se do tio que começou as perguntas:
_ Aqui, onde estamos, é aonde? Me respondem ainda se vocês são mesmo espertos.
_ É na vila, ti Chico. _ Respondeu o Manuel.
_ E ali, onde estão aquelas luzes?
_ É também na vila, ti Chico. _ Respondeu o António, mantendo-se calado o Domingos.
_ Vocês são burros. Vê lá se ainda não conhecem a cidade. Essas casas de adobes, todas embrulhadas, sem ruas nem quintais, é que estão a dizer que é vila de Kibala? Vocês, quando voltarem à aldeia, não vale apenas se gabarem que foram à sede do município. Na Kibala de verdade ainda não chegaram. Estão a ver aquelas luzes, nê? É ali. Entre Kakungulu e Kibala-Sede ainda tem uma baixa e um rio pelo meio. Ouviram? _ Atirou Chico Pé de Muleta, quase a gritar, fazendo-se ouvir por curiosos e transeuntes.
Os moços lançaram demoradamente os olhos à elevação que libertava luzes e terão posto as cabeças a pensar no que Chico Lufeñeno lhes dissera.
_ Está bem, ti Chico. Já podemos ir?

_ Vão, mas escrevem o que vos disse, seus analfabetos. Vila é lá. Aqui é Kakungulu. Se querem se gabar que estiveram na vila é melhor amanhã pegarem mota e chegarem lá. Estão aqui os vossos tios que vieram da capital. Pedem já. Mota é só cem!

sábado, outubro 05, 2024

ATÉ JÁ, ISMAEL MATEUS!

(Espero que a leves esta carta como meu recado ao chefe que te chama a ir ter com ele, em vez de vir ressuscitado e instalar o seu reino)

Perguntaste-me, certa vez, "se eu era remunerado para escrever tanto para 4 títulos de uma mesma empresa jornalística".

Respondi que "não!". Expliquei-te que a escrita, arte a que me "empurraste", se tinha transformado em escapatória para divertir o jornalista que mora dentro de mim, visto que as funções que exercemos inibem-nos de fazer jornalismo". 

Abanaste a cabeça e soltaste um "se corres por gosto, coragem". Senti a tua mão longa e paternal no meu ombro e mais não disseste, nem com aquele teu sarcasmo. Dias a fio, fiquei a pensar, a pensar no tema que não tínhamos esgotado, mas os assuntos trabalhistas vieram à baila e era a camisola do trabalho que mais se metia à frente.

Ontem mesmo, 30 de Setembro, fiquei a pensar na carta a remeter à tal empresa a que mando crónicas desde 2017. O título seria até já!

 Até já porque nunca me despeço definitivamente de pessoas que posso voltar a ver (nessa ou noutra vida), assim como empregadores (no caso deles) que me possam vir a acolher em caso de necessidades um dia. Durante toda a madrugada, em cada despertar, depois de um sono e sonho mal conseguido, vinha-me à cabeça o até já!

Manhã cedo, levei a tua afilhada ao aeroporto e disse-lhe até já! na despedida. 

Não demorou, a Rádio Nacional, a tua primeira casa jornalística, ligou-me a perguntar se eu sabia do acidente que te subtraiu de nós e se podia negar ou confirmar. Bem gostaria de negar até agora. No mínimo fosse fake new e não te estaria a escrever essa carta.

Que dirás ao Pedro Menezes e aos que se adiantaram neste caminho doloroso, mas irreversível? Que contarei aos mais novos sobre ti?

Ligou-me o Paulo Sérgio, jornalista, a pedir que fale sobre ti Ismael Mateus Sebastião. Disse-lhe que me tinhas encontrado há 26 anos na LAC. Tu, um respeitado e já veterano, com folha feita e livros. Tuas crónicas, "Bue de Bocas", chegavam-me desde rapaz no Toshiba do meu pai, ainda no Lubolu. Depois que vim para Luanda, e na Luanda Antena Comercial, passei ouvir os "Recados para o teu chefe". Longe de te conhecer ainda caralmente, um dia, nem passares a meu mestre, mentor e padrinho. 

Tinha eu dois anos de LAC, em 1999, quando me descobriste de entre muitos. Nunca me disseste porquê, tirando os elogios de coisas bem feitas e a negação, quando te dizia, já adulto, que "tudo o que sou profissionalmente muito se deveu a ti". E dizias: "cala a boca, matuense. Foi tudo por teu esforço e obra". 

Será?!

Tornei-me no jornalista que as pessoas dizem que sou por tua descoberta, pressão, correcção e instrução permanente. Achavas que da "laranja seca" que encontraste naquela redacção podia nascer sumo". Quando te tornaste Secretário-Geral do Sindicato dos Jornalistas Angolanos, fui a voto e tornei-me delegado sindical na LAC. Depois, implementaste o Conselho de Redacção em que eu era "conselheiro", enquanto editor. 

Por tua sugestão fui à assessoria de imprensa em Catoca. Fazias questão de apelar ao esforço, ao mérito e sugerias pessoas que não te envergonhassem.

Quando criaste a TamodaEditora, inaugurámo-la com o meu "Manongo-Nongo". Em Maio, tentámos o "Lubolu & Arredores" que dizias "vai ser a 'reposição da legalidade'".

Depois de me teres apadrinhado esse tempo todo, informalmente, em várias esferas da vida, testemunhaste ao mundo como meu padrinho de casamento e me dizias: já não és miúdo. Se me chamaste é para teres juízo!

Faltou-me juízo para te deixar partir?

P'ra quê mais "bué de bocas" e tantos parágrafos neste "recado a Zezus", se nem mais te consigo contar um ka-segredo de filho para pai?

Até já, Ismael Mateus!


Post scriptum: 

Iniciei-me como colunista no teu "Cruzeiro do Sul", na primeira década deste século.

Há dois anos, quando lançaste a segunda edição de "Sobras da guerra", exigiste que eu fizesse o prefácio que tive de esboçar durante uma viagem à Espanha e entregue a faltarem minutos para o deadline. Como foste tão exigente e tão bom comigo, Ismael?!

terça-feira, outubro 01, 2024

KIHUTU vs MBUNDI

Quem viaja pela EN120, sentido Ndondo-Kibala-Wambu, encontra, depois do Rio Longa, pessoas a venderem raízes de uma planta que os ambundu chamam "muxili" e os ovimbundu "mbundi".


A seiva desta raiz (não é tubérculo) possui propriedades adoçantes e fermentadoras, sendo usada para a fabricação de garapa, também conhecida como "wala" ou "kis(s)ângwa", e ainda para fermentar o composto destilável de que resulta a "makyakya" ou kaporroto.


Os aldeões põem-se no sertão em buca do arbusto e escavam as suas raízes que usam no seu dia a dia ou para comercializar aos que, tendo abandonado as zonas rurais, não se desfizeram dos hábitos alimentares e das memórias do seu tempo.

Surgem aqui os menos atentos que podem confundir o arbusto cujas raízes é o conhecido "mbundi" ou "muxili" e o "kihutu", possuindo, ambas, folhagens muito parecidas.

O "kihutu" não é mais do que "feijão-maluco" que, quando as folhas secam, pode dar uma dolorosa comichão a quem nelas se encoste.

O "kihutu" foi nossa tortura involuntária nos tempos de infância, sempre que fôssemos à caça de "kambwiji", lebres e pequenos antílopes. A pressa em vigiar e apanhar os animais que fugiam das queimadas, o fumo do capim acabado de arder e a desatenção faziam com que algumas vezes passássemos em território "minado" por este vegetal, resultando em uma comichão e coceira de caçar pulgas.

Se estiveres à procura de "mbundi" ou "muxili", raízes cuja seiva se adiciona ao rolão ou outros componentes para a produção da saborosa kisângwa, tome cuidado! Pode pôr a mão em "kihutu", o feijão-maluco, e sair daí endoidecido de dor. Procure sempre por um mais velho residente permanente e conhecedor da planta. Nunca vá sozinho à mata à procura de qualquer coisa que seja.

Umona akwambila s'ovita! ¹
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1- Uma criança deve acatar conselhos!

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Texto publicado no JE&F de 13 de Setembro 2024

sábado, setembro 28, 2024

O (H)EBO E A HISTÓRIA POR DESVENDAR

O (H)Ebo tem nome inscrito na luta e resistência das nossas FAPLA contra as incursões das forças armadas do regime segregacionista sul-africano, mancomunado com a Unita, que pretendiam impedir a independência de Angola a 11 de novembro de 1975.


O (H)Ebo é uma vila e município do interland kwanza-sulino, "encravado" entre Kibala, Waku Kungu (Sela), Konda, Amboim e Kilenda.
Desde que conheci o (H)Ebo, têm sido frequentes as visitas à vila sede. Nas conversas, os populares têm reclamado o asfalto em direcção ao Waku e Ngabela para aumentar o movimento.
_ O alcatrão parte do Kondé até à vila e não avança. Aqui, quem entra tem que sair pelo mesmo caminho. Não avança. _ Precisam os moradores.
_ A luz passa, mas não pára. _ Acrescentam os munícipes que dizem usar ainda candeeiros a petróleo.
Contam ainda os munícipes que "Hebo foi a vila que mais sofreu às mãos da Unita" que fazia dela sua logística alimentar.
_ Como aqui é nos matuku¹ e o reforço das tropas vindas do Sumbe ou Sétima Região Militar (Benguela) demorava, por falta de estrada asfaltada e minas que metiam nas picadas, eles quase moravam aqui e tudo que a população produzia acabava nas mãos deles. _ Narra Fernando Almeida, 68 anos, acrescentando que "levavam os cabritos, milho, batata, mandioca e até frutas nas árvores, sem pensar se o dono sente fome".
O (H)Ebo tem muitas estórias e história ainda por desvendar e registar.
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1- Esconderijo, entrada sem saída.

domingo, setembro 22, 2024

O HOTEL CUNHA E OUTRAS HISTÓRIAS KIBALENSES POR DESVENDAR

O meu dia (24.08.24) foi marcado por entrevistas exploratórias a jovens e adultos da vila e cercanias de Kibala.

_ Já ouviu falar do Hotel Cunha?
_ E hotel império?
ouviu falar com comandante Kandimba?
As respostas foram nulas. Nem sobre os hotéis que foram apagados da toponímia, nem do lendário Comandante que muitos admiram até hoje.
As instalações que as fotos documentam eram de um hotel que, nas décadas de 40 e 50, era considerado "um dos melhores do Império Português".
O seu proprietário era o patrono da família Cunha, por sinal, avô de José Carlos Cunha "Oca". Há uns dois anos, visitei o Senhor "Oca" na sua fazenda em Kambaw, Kis(s)ongo, Lubolu, e falou-me sobre o hotel que seu avô, de origem portuguesa, erguera na Kibala.
Sendo eu "vasculhador e amante de estórias", meti-me no terreno para saber dos moradores com que fui cruzando, incluindo os ocupantes dos escombros do Hotel Cunha, "o que foram as instalações e que serventia deram à vila?"
Dentre os jovens indagados, ninguém sabia onde ficava o Hotel Cunha, nem do Hotel Império. Uns apenas se lembram das instalações da ETIM¹, também gravemente atingidas em 1984 e em outros ataques subsequentes.
Não há registos na blogosfera e os livros que façam referência aos imóveis supra-mencionados devem ser raros.
Segundo Ana Viana Dos Santos, natural da Kibala, diz que "o Hotel Cunha e o Hotel Império (este último ficava onde estão hoje as antes de telecomunicações) foram destruídos em 1984, 12 de Junho, quando se deu o 1° ataque da Unita à Kibala".
É importante que a história não se apague por completo. Procurei pelo Presidente da ANAKIBALA, Francisco Santos, para conformar as informações prévias.
_ Aqui era o Hotel Cunha, o maior que havia na Kibala. Mais a baixo, onde se acham as antenas, estava o Hotel Império e do outro lado a ETIM.
Francisco Santos levou-me à casa do irmão do Comandante Kandimba e à do "homem de confiança que recuperou a pasta dele, depois de ter tombado em combate". O Pastor Santos, como também é conhecido, levou-me, inclusive, ao que sobra do "tanque de guerra" em que o comandante tombou heroicamente a 13 de Fevereiro de 1993. Ainda perguntei aos jovens das cercanias, se conheciam ou tinham ouvido falar sobre o Comandante Kandimba. O único Kandimba que conhecem é o restaurante que fica na Alameda (rua principal), num edifício estropiado, cujos donos homenagearam o comandante, mas são oriundos do Moxico. Assim vai a nossa história!

Quanto ao futuro do que resta dos escombros do antigo Hotel Cunha, José Carlos Cunha "Oca", diz que "de momento, faltam forças para investir nele". Vi que algumas famílias encontraram nele abrigo, sem que saibam de quem foi, o que foram aquelas minúsculas sobras e quem são os seus herdeiros.

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1- Empresa de Transportes Intermunicipais.

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Publicado pelo Jornal de Angola a 15.09.2024

domingo, setembro 15, 2024

OS OLHOS DA MÃE E A PAIXÃO DO MEU AMIGO

 Passei pela aldeia de Pedra Escrita para ver a mãe Alcinda (24.08.24).

Nas nossas brincadeiras de mãe e filho, ela disse-me que "estava a ver pouco".
_ Mãe, experimenta ainda os meus óculos. _ Disse-lhe.
Depois fizemos uma selfie.
Sinto sempre uma paz interior, uma alegria indescritível quando a visito. É algo como o que deve acontecer aos devotos quando vão ao santuário renovar energias.
Depois, passei pela casa do Faria, meu amigo de infância, que anda muito "apaixonado" pela "água do chefe". Maria, a esposa, quando me viu a vestir-lhe um colete, disse de soslaio:
_ O amigo gosta muito dele. Sempre que passa, entra na aldeia e deixa-lhe uma lembrança. Ele é quem não se gosta e quer entregar a alma ao senhor!

domingo, setembro 08, 2024

O TANQUE DO COMANDANTE KANDIMBA

 Junto à entrada à EN140, que nos leva da Kibala ao Mus(s)ende, há uma rotunda. Olhando para a esquerda, estão dois terrenos devolutos que guardam segredos de uma História ainda por escrever.

A rodovia que liga as localidades de Kibala-Karyangu-Mus(s)ende foi asfaltada na segunda década deste século (XX). Até 2010, era uma sofrível picada de terra batida que nos dirigia à Oeste de Kibala, empestada de minas pessoais e anti-carros implantadas pela Unita.
Na rotunda, as casas e casebres abeiraram-se da rodovia, restando os dois terrenos ainda devolutos em que se acham dois artefactos militares, ou seja, dois tanques de guerra que, para contar a história das agruras por que Kibala passou de 1984 a 2002, se juntam aos edifícios totalmente desaparecidos (a exemplo do Hotel Império), aos escombros dos que foram totalmente dinamitados e destruídos (Hotel Cunha) aos que sofreram destruição parcial ou outros ligeiramente estropiados. Não há edifício que não tenha sofrido nos diversos ataques infligidos à Kibala desde o fatídico 12 de Junho de 1984, data do primeiro ataque da Unita, a 2002, ano da proclamação da paz que vivemos até hoje.
Francisco Pinto, 65 anos feitos em Agosto de 2024, conta que em 1992, depois da desmobilização das FAPLA e criação do que era chamado de "Exército Nacional Único", as FAA, o Batalhão 722 chefiado pelo comandante Kandimba havia sido extinto e o comandante desmobilizado.
"Quando entrámos para as eleições, era comandante da região, pelas FAA, o Cara Podre que não havia sido desmobilizado".
O antigo Oficial Operativo no Batalhão 722 e no "Exército Único" saído dos Acordos de Bicesse, avança que até Novembro de 1992, militantes do MPLA e da Unita ainda coabitavam na vila da Kibala e até diziam que as escaramuças de Luanda não deviam ser replicadas na Kibala. Porém, conta, surpreendentemente a UNITA se retirou para Katofe e começou a bombardear a vila, matando várias pessoas como o professor Smith e sua mãe.
"Eu era amigo pessoal de kandimba. Ainda o aconselhei a ir a Luanda, depois de desmobilizado, mas ele me respondeu que aguentaria mais um pouco".
Tendo em conta a situação criada pela Unita, prossegue Francisco Pinto, o Comandante Kandimba teve de organizar os antigos militares desmobilizados para defender a vilar, só que não conseguiu obter o número desejado, tendo em conta a dispersão e a desmotivação de alguns para uma nova guerra.
"Em Finais de Janeiro de 1993 a Kibala recebeu reforço de tropas vindas do Waku Kungu. Como nem todos se conheciam (os da Kibala e os vindos do Waku) a Unita aproveitou infiltrar-se entre as forças e tomou a Vila, concentrando todo o seu fogo sobre os tanques que já não se movimentavam. O comandante Kandimba estava no primeiro que, embora ainda disparasse, não tinha mobilidade".
Pinto narra ainda que quando foi atingido o tanque tinha esgotado as "salvas" e jura que "Kandimba não foi capturado nem enterrado pelos familiares, pois ele se retirou do local e terá morrido em local incerto".
Um dos dois tanques que se acham na rotunda possui ainda a parte cimeira e o cano. O outro, desintegrado, que conserva apenas o esqueleto central e as esteiras locomotivas é nesse em que, na madrugada do dia 09 de Fevereiro de 1993, segundo Francisco Filipe tombou em combate o comandante Pedro Manuel Biano "Kandimba".