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quarta-feira, fevereiro 15, 2023

OS AC E OUTRAS ESTÓRIAS DE KASONGE E SELES

O acolhimento e a despedida, na "vila ainda com características rurais", mas que se esforça em ser urbe, tinham sido excelentes.

De Kasonge ao desvio de S. António são perto de 30 quilómetro em estrada terraplenada e com betonilha à espera de asfalto. Os pontecos aguardam pelas pontes definitivas.

Do Santo António ao Uku, as aldeias, vilarejos e a obra da natureza oferecem um regalo infinito e inenarrável. Só vendo e vivendo!

Cerca de 40 ou 45 quilómetros a oeste de Kasonge, numa comunidade com muitas casas "coloniais"[1] destruídas, um casarão moderno e amarelo se destaca. Abrandei.

- Bom dia, jovem. O quê aquilo? É escola ou casa de alguém?

- É casa do tio Santos.

- Kenhê ele?

- É o chefe daqui.

Pensei que pudesse ser a residência do administrador, mas era impensável o responsável comunal habitar uma casa de tamanho e qualidade sem iguais na sede municipal.

Curioso avancei, rodando pela EN 245, até encontrar alguém que me retirasse "o pico da garganta".

- Mano, bom dia! Que aldeia é essa?

- É a sede da comuna de Ndumbi.

- E aquela casa?

- É de um empresário.

- Bom que alguém, eventualmente natural, tenha feito fortuna na cidade grande e a tenha vindo "enterrar" na sua comunidade de origem. - Falei à mulher que me acompanhava. Era já a segunda abordagem sobre o investimento na terra natal. Na primeira, falei-lhe sobre a necessidade de se fazer plano de negócio antes de ir construir loja na aldeia. Se não houver poder de compra e um business continuous plan será jogar água ralo abaixo. Para o campo é preciso fazer aquilo que o campo está habituado e a cidade pronta a comparar: agropecuária e comércio de apoio à actividade empresarial.

Rumámos, tendo o sol a seguir-nos, em direcção ao mar.

Em Kapolo, chama a atenção do "explorador" forasteiro um complexo de naves. Parei. Não dava para ver apenas de soslaio e passar sem saber.

- Bom dia, mano! - Saudei um senhor, entre os 40 e 50, que se prestava para montar à sua motorizada.

- Bom dia. - Respondeu lacônico.

-Bom dia, mano! Pode dizer se aqui é aonde e aquilo é o quê?

O adulto que se preparava para montar sobre a motorizada coçou a barba e respondeu meio tímido.

 - Bom dia, mano. Ndizem é ngalhinhero.

O outro que se achava ao lado corrigiu.

- Ó coiso, no é ngalhinhero. É aviário.

Agradeci, seguindo a marcha que se repletava de regalo até Amboiva (comuna do Uku-Seles, onde encontrei o General sem Pasta (apresentou-se assim).

Quando lhe perguntei que aldeia era aquela, foi diligente, num bom português em explicar que eu estava na melhor das duas comunas do município. Depois descreveu-as: Amboiva e Botera, explicando também as distâncias entre a sua comuna e a sede municipal, assim como a saída da sede para Botera e respectiva distância. Simpático, o General sem Pasta não me deixou partir sem antes pedir o meu business card[2] ao que dei sem titubear.

Tomara que tivéssemos mais cidadãos assim, orgulhosos de suas terras, conhecedores delas e aptos a situar o viandante.

Ao logo de 170 quilómetros discutimos, intercaladamente, o que tínhamos visto em Kasonge: AC numa estrutura em campo aberto. Por perto, estava uma casota que possuía uma minúscula antena parabólica (recepção de sinal de TV). A estrutura suportante parecia um outdoor e estava ligada à casota por um condutor de ar ou de energia eléctrica.

E, íamos cogitando:

- Ar condicionado para refrescar o descodificador? Para refrescar a rua é que não pode ser.

Entre a vila de Kasonge e a irmã urbe do Seles, a conversa ia e voltava. Até que, na capital do Uku, nos deparamos com um equipamento semelhante. Estavam uns adolescentes no largo.

- Meninos, boa tarde. Vivem aqui?

- Não, pai, vivo no bairro. Só vim brincar. - Respondeu o mais espevitado.

- Sabes o quê isso? 

Apontei para a estrutura, alta, que possuía um aparelho de AC montado na parte traseira.

- É fiRmi que andam apresentá. - Respondeu o teeneger[3].

Posicionei-me à frente do equipamento e verifiquei que era um dispositivo electrónico para a exibição de conteúdos fílmicos.

Corri à mulher, que estava no carro, de olhos mirados ao que fora o Hotel Cota, para explicar-lhe quão inglória tinha sido a nossa discussão. Se calhar, tivesse ela já uma crónica (jucosa) na calha e um título do jeito "qualê a coisa qualê ela, em Kasonge montaram AC na rua para diminuir o calor!"

Kasonge tem também a IECA que constrói escolas, farmácias e centros de artes e ofícios, ajudando e aperfeiçoando crianças, jovens e adultos. A IECA é como a Metodista Unida: 

- Uma igreja sem escola é como um casal sem filhos! - Li num dos cinco tomos "Agostinho Neto e a luta pela independência" e voltei a ouvir numa visita ao Nâmbwa, baluarte da luta pela autodeterminação de Angola e terra do Metodismo.

Aliás, Kasongue Seles e Konda são os três municípios Kwanza-Sulinos aonde a Metodista ainda não chegou, sendo, entre outras, a IECA que mais se desdobra em acções sociais.

 

Chegámos à Vila Nova de Seles numa altura em que tínhamos o sol por cima de nós, o que tornava tudo visível. Os religiosos domingueiros já tinham voltado a suas casas e actividades pós-culto/missa.

A urbe é que continuava com a vida de sempre: poucos andando pelas ruas da vila, poucos no parque/jardim, poucos carros circulando, muita gente nas kitandas e casas de venda de kapuka e muito poucos turistas forasteiros.

Sem pressa, percorremos a vila de Seles (que tinha de tudo para ser cidade) pelas quatro extremidades (pontos cardeais). A rua asfaltada (recente) que vai para sul foi transformada em kitanda, dificultando a circulação automóvel. Pior do que isso, é a acumulação de montes de lixo no eixo da via. Para mim foi a nódoa em pano branco e vigem.

Notei também que, a par da Kibala, Seles terá sido a vila mais destruída pelos ataques da guerrilha nos anos que se seguiram à nossa independência (1975). As marcas estão visíveis nos edifícios dinamitados, alguns tombados e outros suspensos pelas ferraduras, e que reclamam por implosão, para que não continuem a se constituir em perigo permanente aos transeuntes e aos que buscam por sombra, quando acossados pelo sol intenso na região.

As ruas da parte urbana apresentam-se limpas e estendem-se longas e largas, denunciando um projecto de cidade na sua génese.

Seles fica a 75 quilómetros do Sumbe e 29 da Konda. A comuna ukwense de Amboiva acha-se a 58 quilómetros, na EN 145.

Saindo para o Sumbe ou Konda, a circulação faz-se por estradas implantadas sobre serras com grandes declives e curvas apertadíssimas que demandam destreza, atenção e experiência ao volante. Sem esses acidentes naturais está a EN 245 que junta Seles a Kasonge, sentido sul. Reza a História que Seles, capital do município do Uku, província do Kwanza-Sul, foi elevada à categoria de vila em 1914.



[1] O senso comum designa todas as habitações de construção definitiva existentes até 1975 por "casas de colonos".

[2] Cartão de negócios também conhecido como cartão de visita.

3- Adolescente

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Texto publicado no Jornal de Angola de 22.01.2023



quarta-feira, fevereiro 08, 2023

A AGONIA DO FIM-DE-MANDATO

Agonia é "o momento que antecede o fim". É sofrimento. 

Tal agonia invade alguns "políticos" em fim de mandato, sobretudo, quando se cumprem períodos irrenováveis, pois colocam-se em uma situação em que não sabem o que lhes vai acontecer:

- Se seu partido ganha ou perde;

- Se,  ganhando, será repescado pelo novo chefe (já que o anterior findou o último mandato);

- Se o seu partido perde (pior cenário);

- Se pode ser compulsivamente levado às "boxes" ou à cadeia;

- Se entra em estado de indigência, etc.

Esse estado de agonia leva muitos detentores de cargos políticos e ou de gestão (organizações empresariais) a meterem a mão no que é alheio (por via directa ou de estrategemas e expedientes impróbeis).

Consequência: tornam-se candidatos à prisão e/ou a epítetos correspondentes, antes e ou depois do fim de mandato.

Quem, porém, tem as mãos-limpas não teme e dorme seu sono tranquilo!

quarta-feira, fevereiro 01, 2023

O 1° ENSAIO

Tinham nos dado pão e mais nada. A água era mesmo bruta da torneira. Os mais velhos é que tinham bebido um pouco de maluvu doce para que o Camarada comissário não os encontrasse 'akodiwa'.

A pré-kabunga, como chamávamos a classe de iniciação escolar, tinha começa do no "Ano da Formação de Quadros". Lembro-me ainda, como um neófito da OPA, ter sobreposto à minha camisola uma tira de pano preto, prendida por um alfinete, junto ao símbolo da organização.
No ano seguinte, já período de sol e chuva, o Comissário Provincial tinha decidido visitar o Libolo e integrado no roteiro a Fazenda Tabango que fica a escassos quilómetros da sede comunal de Munenga.

Os pioneiros todos - éramos todos da OPA- foram receber o nguvulu grande, recolhidos, manhã cedo, por um tractor agrícola da Fazenda Hoji ya Henda (Israel).

Antes do agrupamento que juntou os dispersos pela guerra dos anos 80 e 90 junto à pedra grande (Pedra Escrita), o maior ajuntamento era na Fazenda Israel (rebatizada depois de 1975 por Hoji ya Henda). É lá que se concentravam os antigos serviçais mbalundu e outros nativos de aldeias próximas que viam na proximidade do asfalto uma forma de desvendar os filhos. A escola, as cidades, os enfermeiros, os géneros alimentares, a ECODIPA, A EDIMBI e outros bens e serviços eram atingíveis com maior facilidade perfilando ao pé da estrada. O Kuteka originário dos meus pais dista 35 quilómetros.

O número de alunos levados a saudar o comissário vindo de Ngunza Kabolo atrapalha-se na progressão do tempo. Porém, mais de uma dúzia ou mesmo dezenas. Era norma e prazeroso irmos ensardinhados numa carroça de tractor agrícola, o mesmo tractor em cuja carroça nos "magoelávamos" ao sair das aulas para chegar cedo à lavra.

Transcorridos os 30 quilómetros (de Israel a Tabango), chegámos molhados pelo suor, sede e calor e foi-nos imposto o ensaio da música que nunca tínhamos cantado.
- Armá
- Armando Ndembo
- Comissá
- Comissário yetu
- Ya Kwá
- Ya Kwanza-sulu
- Ya Kwá
- Ya Kwanza-sulu!

Duas passagens foram bastantes para procurar a sombra ou conhecer, pela primeira vez, o que eram peruas e galinhas enclausurada que, aos nossos olhos, largavam um ovo em cada piscar de olho.
Foi o melhor da recepção ao Comissário que, quando pensávamos que nos dirigisse palavras e nos tocasse um a um, desceu do carro, fez um aceno e foi reunir com os camaradas mais velhos.
- E nós que chegámos cedo, cantámos de hora em hora para não esquecer, ficámos roucos, enfileirados lado a lado enfrentámos o sol, nada?

Nisso de opas, sucedâneas ou subsequentes, de abaixo e vivas, de sois, chuvas e intempéries há muito que andámos na estrada. O ensaio foi com Armando Fandanga Ndembo, em 1980. Era tempo de chuva e fazia sol.