O acolhimento e a despedida, na "vila ainda com características rurais", mas que se esforça em ser urbe, tinham sido excelentes.
De
Kasonge ao desvio de S. António são perto de 30 quilómetro em estrada
terraplenada e com betonilha à espera de asfalto. Os pontecos aguardam pelas
pontes definitivas.
Do
Santo António ao Uku, as aldeias, vilarejos e a obra da natureza oferecem um
regalo infinito e inenarrável. Só vendo e vivendo!
Cerca
de 40 ou 45 quilómetros a oeste de Kasonge, numa comunidade com muitas casas
"coloniais"[1]
destruídas, um casarão moderno e amarelo se destaca. Abrandei.
-
Bom dia, jovem. O quê aquilo? É escola ou casa de alguém?
-
É casa do tio Santos.
-
Kenhê ele?
-
É o chefe daqui.
Pensei
que pudesse ser a residência do administrador, mas era impensável o responsável
comunal habitar uma casa de tamanho e qualidade sem iguais na sede municipal.
Curioso
avancei, rodando pela EN 245, até encontrar alguém que me retirasse "o
pico da garganta".
-
Mano, bom dia! Que aldeia é essa?
-
É a sede da comuna de Ndumbi.
-
E aquela casa?
-
É de um empresário.
-
Bom que alguém, eventualmente natural, tenha feito fortuna na cidade grande e a
tenha vindo "enterrar" na sua comunidade de origem. - Falei à mulher
que me acompanhava. Era já a segunda abordagem sobre o investimento na terra
natal. Na primeira, falei-lhe sobre a necessidade de se fazer plano de negócio
antes de ir construir loja na aldeia. Se não houver poder de compra e um business continuous plan será jogar água
ralo abaixo. Para o campo é preciso fazer aquilo que o campo está habituado e a
cidade pronta a comparar: agropecuária e comércio de apoio à actividade
empresarial.
Rumámos,
tendo o sol a seguir-nos, em direcção ao mar.
Em
Kapolo, chama a atenção do "explorador" forasteiro um complexo de
naves. Parei. Não dava para ver apenas de soslaio e passar sem saber.
-
Bom dia, mano! - Saudei um senhor, entre os 40 e 50, que se prestava para
montar à sua motorizada.
-
Bom dia. - Respondeu lacônico.
-Bom
dia, mano! Pode dizer se aqui é aonde e aquilo é o quê?
O
adulto que se preparava para montar sobre a motorizada coçou a barba e
respondeu meio tímido.
-
Bom dia, mano. Ndizem é ngalhinhero.
O
outro que se achava ao lado corrigiu.
-
Ó coiso, no é ngalhinhero. É aviário.
Agradeci,
seguindo a marcha que se repletava de regalo até Amboiva (comuna do Uku-Seles,
onde encontrei o General sem Pasta (apresentou-se assim).
Quando
lhe perguntei que aldeia era aquela, foi diligente, num bom português em
explicar que eu estava na melhor das duas comunas do município. Depois
descreveu-as: Amboiva e Botera, explicando também as distâncias entre a sua
comuna e a sede municipal, assim como a saída da sede para Botera e respectiva
distância. Simpático, o General sem Pasta não me deixou partir sem antes pedir
o meu business card[2] ao que dei sem
titubear.
Tomara
que tivéssemos mais cidadãos assim, orgulhosos de suas terras, conhecedores
delas e aptos a situar o viandante.
Ao logo de 170 quilómetros discutimos,
intercaladamente, o que tínhamos visto em Kasonge: AC numa estrutura em campo
aberto. Por perto, estava uma casota que possuía uma minúscula antena
parabólica (recepção de sinal de TV). A estrutura suportante parecia um outdoor
e estava ligada à casota por um condutor de ar ou de energia eléctrica.
E, íamos
cogitando:
- Ar
condicionado para refrescar o descodificador? Para refrescar a rua é que não
pode ser.
Entre a vila de
Kasonge e a irmã urbe do Seles, a conversa ia e voltava. Até que, na capital do
Uku, nos deparamos com um equipamento semelhante. Estavam uns adolescentes no
largo.
- Meninos, boa
tarde. Vivem aqui?
- Não, pai,
vivo no bairro. Só vim brincar. - Respondeu o mais espevitado.
- Sabes o quê
isso?
Apontei para a
estrutura, alta, que possuía um aparelho de AC montado na parte traseira.
- É fiRmi que andam apresentá. - Respondeu o teeneger[3].
Posicionei-me à
frente do equipamento e verifiquei que era um dispositivo electrónico para a
exibição de conteúdos fílmicos.
Corri à mulher,
que estava no carro, de olhos mirados ao que fora o Hotel Cota, para
explicar-lhe quão inglória tinha sido a nossa discussão. Se calhar, tivesse ela
já uma crónica (jucosa) na calha e um título do jeito "qualê a coisa qualê
ela, em Kasonge montaram AC na rua para diminuir o calor!"
Kasonge tem
também a IECA que constrói escolas, farmácias e centros de artes e ofícios,
ajudando e aperfeiçoando crianças, jovens e adultos. A IECA é como a Metodista
Unida:
- Uma igreja
sem escola é como um casal sem filhos! - Li num dos cinco tomos "Agostinho
Neto e a luta pela independência" e voltei a ouvir numa visita ao Nâmbwa,
baluarte da luta pela autodeterminação de Angola e terra do Metodismo.
Aliás, Kasongue
Seles e Konda são os três municípios Kwanza-Sulinos aonde a Metodista ainda não
chegou, sendo, entre outras, a IECA que mais se desdobra em acções sociais.
Chegámos à Vila
Nova de Seles numa altura em que tínhamos o sol por
cima de nós, o que tornava tudo visível. Os religiosos domingueiros já tinham
voltado a suas casas e actividades pós-culto/missa.
A
urbe é que continuava com a vida de sempre: poucos andando pelas ruas da vila,
poucos no parque/jardim, poucos carros circulando, muita gente nas kitandas e
casas de venda de kapuka e muito poucos turistas forasteiros.
Sem
pressa, percorremos a vila de Seles (que tinha de tudo para ser cidade) pelas
quatro extremidades (pontos cardeais). A rua asfaltada (recente) que vai para
sul foi transformada em kitanda, dificultando a circulação automóvel. Pior do
que isso, é a acumulação de montes de lixo no eixo da via. Para mim foi a nódoa
em pano branco e vigem.
Notei
também que, a par da Kibala, Seles terá sido a vila mais destruída pelos
ataques da guerrilha nos anos que se seguiram à nossa independência (1975). As
marcas estão visíveis nos edifícios dinamitados, alguns tombados e outros
suspensos pelas ferraduras, e que reclamam por implosão, para que não continuem
a se constituir em perigo permanente aos transeuntes e aos que buscam por
sombra, quando acossados pelo sol intenso na região.
As
ruas da parte urbana apresentam-se limpas e estendem-se longas e largas,
denunciando um projecto de cidade na sua génese.
Seles
fica a 75 quilómetros do Sumbe e 29 da Konda. A comuna ukwense de Amboiva
acha-se a 58 quilómetros, na EN 145.
Saindo
para o Sumbe ou Konda, a circulação faz-se por estradas implantadas sobre
serras com grandes declives e curvas apertadíssimas que demandam destreza,
atenção e experiência ao volante. Sem esses acidentes naturais está a EN 245
que junta Seles a Kasonge, sentido sul. Reza a História que Seles, capital do
município do Uku, província do Kwanza-Sul, foi elevada à categoria de vila em
1914.
[1] O senso comum designa todas as habitações de
construção definitiva existentes até 1975 por "casas de colonos".
[2] Cartão de negócios também conhecido como cartão de visita.
3- Adolescente
=
Texto publicado no Jornal de Angola de 22.01.2023