Nasci no Libolo, aldeia de Bango de Kuteka, mas lá vivi muito pouco. Sem recordações de monta. Lá aprendi a caçar animais de pequeno porte em armadilhas e a pescar nos riachos à volta. Os grandes tarrafeiros (pescadores) eram mesmo aqueles kotas que tinham pés de íman que podiam atravessar o rio Longa nos locais de grande correnteza sem ceder. Mesmo na década de noventa, quando para lá regressei em gozo de ferias forçadas, (tinha sido corrido pela UNITA em Calulo onde estudava) não consegui nada mais do que uns katimbas (peixe miúdo) no rio Longa e os pinos na lagoa do Kambiongo.
Kambiongo: Que saudades!
Na verdade não se trata de uma lagoa. É uma pequena represa natural no riacho que passava tangencialmente junto à antiga adeia de Bango de Kuteca. Alí, os miúdos todos aprendiam a nadar antes de enfrentarem as caudalosas águas do gigante Longa. E como a "lagoa" de Kambiongo era funda, os mais velhos da aldeia tinham colocado uma estaca a assinalar o lugar mais profundo, como chamada de atenção. Ninguém se afogava: todos os miúdos e miúdas da aldeia sabiam nadar. Iniciavam-se pelas ladeiras e só depois é que enfrentavam a profundidade e largura da "lagoa". E faziam-se os desafios...
Os estagiários, como eu, tinham antes de mostrar que estavam aptos ao desafio. Jogávamos algo ao meio da lagoa que tinha de ser resgatado por alguém, dentre o grupo, ou fazíamos desafio colectivo: Quem o apanhasse primeiro era o vencedor da partida.
Prémios: Nenhum. Apenas a satisfação de ter ganho a partida.
As mamãs (todas da aldeia) que lavavam a roupas a juzante colocavam-se em atenção permanente a um suposto grito de socorro dos banhistas. Mas como nunca acontecia mostravam-se descansadas. Os meninos mais hábeis no nado tornavam-se nos bombeiros salvadores.
Praiadas e jogadas
Foi em Luanda, na década de oitenta, que se desenrolou a minha undengice. A praia era o nosso hobbie, apenas disputado pelas partidas de futebol de rua. Havia vezes em qeu íamos jogar na escola 530 também conhecida como do MPLA. Havia ainda muitos largos e a estacção dos caminhos-de-ferro dos musseques era um grande quintalão, sem muros, onde íamos catar gafanhotos. Só para brincar. Amarrá-los a uma linha e pô-los a voar. Ganhava quem o seu "gaffa" voasse mais alto… Outras vezes eram os papagaios de papel. Que lindos tempos de undenge! Muitos putos se perdiam, ao seguir ou procurar por papagaios cujos fios se tinham desprendido. Outros ainda seguindo o Mam-Braz, aquele demente que executava a ngoma como ninguém, ou seguido grupos carnavalescos... E bastava às mamãs, solidárias como sempre, tocar latas e gritando: "nañy wa ngi bongela kamona ka dyaleééé"?!
Mas voltando à vaca fria, às praias. Essas eram motivos de muit porrada às mãos de nossas zelosas mamãs. Salva-vidas eram impensáveis naqueles tempos em que toda as atenções dos makulos estavam virados para a situação politico-militar. Para a vida-kwemba. E nós éramos uns campeões do atrevimento. Fingíamos que íamos ao futebol, depois era só apanhar o comboio do Bungo até à praia, aí junto ao navio encalhado. Outras vezes íamos a pé, atravessando o Sambizanga e descendo as barrocas da lixeira, alí onde até há bem pouco tempo ficava o mercado do Roque Santeiro. Outras vezes acompanhavamos a lonjura do caminho-de-ferro até à predilecta Praia do Bungo. De boa nada tinha, confesso. Era um cheirar a peixe podre, lixo que nós mesmos deixávamos na praia e roubos frequentes de roupas. Tínhamos sempre de enterrar a roupa em algum lugar e sinalizar com um pau ou uma lata. Já uma vez fiquei sem os meus calções.
O azar acontecia quando alguém desse conta do “tesouro” guardado ou por descuido retirava a lata ou o pau que sinalizava o lugar. Acabávamos voltando à casa apenas de cuecas ou vestidos de sacos. E a mão carinhosa da mãe, mas sempre pesada na hora do castigo, lá estava à espera do prevaricador.
A praça das Corridas ou do Tunga-Ngós, como a chamam agora, é mesmo aí na paragem do comboio. Muitas vizinhas que íam às compras viam-nos ou a ir ao Bungo ou a voltar e a notícia chegava mais cedo à casa do que nós esperavamos. E o curioso era que arranjavamos sempre uma maneira de iludir as mamãs. Depois da praiada ou íamos às obras da cidadela apanhar um bom banho de água doce ou finjiamos um trumuno (futebol) para chegarmos sujos à casa… mas elas tinham sempre as conversas em dia. Também não faziam nada mais senão falar sobre as nossas trambiquices e sobre as desgraças dos seus manos e maridos que iam à vida-militar ou que de lá regressavam estropiados. Naqueles tempos poucas eram as senhoras do Ranmgel que trabalhavam na baixa. As senhoras (brancas que em tempos contravam lavadeiras) já se tinham ido embora no Puto e o comunismo nascente ou decadente não motivava essas mordomias. Eram mais os papás que "jardinavam" ou cozinhavam. E, lembro-me agora do senhor chouriço que era cozinheiro do BNA. O nome dele verdadeiro era senhor Maurício. Desconheço com que artimanhas conseguia sempre trazer chouriços para vender em rodelas "pequeninas" à porta de casa. Era o único que fazia tal negócio. E os seis filhos eram “os putos do senhor chouriço”.
Para confirmarem o que já era quase certeza as mamãs passavam-nos todos a uma revista apertada. Qualquer uma das vizinhas podia fazê-lo, independentemente de ser a mãe biológica ou não, família ou não. A educação era comunitária e todas eram responsáveis por todos nós que apenas víamos vantagens naquilo nas boas coisas e nunca na hora da porrada. Com a ponta da língua, procuravam por indícios de sal nos mais impensáveis recantos do corpo. E como os nossos banhos eram sempre apressados ou de faz-de conta, as mamãs encontravam sempre alguém que acabava por descobrir com quem foi. Aló começava a “festa” geral. Mas uma porrada, ainda que bem dada, era apenas só mais uma. No dia seguinte estávemos todos novamente prontos a alinhar. Mais tarde, descobrimos que o Bungo era damasiadamente perigoso devido aos bandidos e a facilidade com que as mamãs descobriam as nossas traquinices. Passamos a ir à Chicala. Alí junto à pionte que liga à Ilha de Luanda. O autocarro 33 que partia do Nzamba 1 (ao Cazenga) ao (largo do) Baleizão facilitava. Pena eram as grandes bichas (filas) que deixavam-nos sempre moídos, dada a força dos dikotas. Mas lá estávamos nós a enfrentar aquele empurra-empurra. Éramos também vacinados em engolir e ripostar às ameaças dos kotas bandiús. Xé kota xtás e ver aquele mano das fapla? É mô’rmão, vou te queixar, seu refractário!!!! Eram palavões que também ouvíamos nos discursos dos mais velhos.
A Praia da Chicala tinha a vantagem de ter o autocarro 33 ou o 34 que se apanhava na Mutamba e os gelados (sorvetes) no Baleizão. Até o cone feito de baumilha era também tragado goela adentro. Mas não era tudo. Dava-nos a possibilidade de tirar um trumuno na escola 14 da(s) Cáritas ou descer na paragem da Cidadela (Estádio da Cidadela que estava em construção), apanhar umas tábuias para o fabrico de trotes (trotinetas) e ainda desfazermo-nos do sal com um banho de chuveiro. Aqui conseguíamos escapar algumas vezes, mas as “velhotas” foram também aperfeiçoando as técnicas de detecção e depois começámos a “mamar” novamente.
Veio, infelizmente, a adolescência. As praias rareavam ou eram planificadas, com ou sem acompanhamento. O medo das mamãs tinha diminuído e nós estávamos cacimbados (baptizados) naquilo. Incrementámos a frequência aos cinemas, começaram os namoricos. “Epá! Ouvi dizer, que o fulano, namora, com a cicrana”!
A degradação dos cines (Ngola, São Domingo, São Paulo, Atlântico, etc.) trouxe as casas de vídeo que exibiam os filmes de "estica cabo" aos menores e adultos de forma indiscriminada. A moral ganhou um lugar de destaque: o lixo!
Depois surgiu a venda de fino (cerveja em copos) que era servido de forma também indiscriminada. Crianças ou adultos o que mais valia era o dinheiro. Moral, Ética, Valores… – Quem os via e quem para eles acenava?- Ninguém!
Aos sábados os jogos de futebol eram quase obrigatórios. E sempre que chovesse o desafio era correr debaixo da chuva do Rangel ao Largo do Baleizão ou ao Nzamba 1, ao Cazenga. Era o teste de resistência que muito agradava as meninas verem-nos partir em grupo compacto e a chegar um por um.
No fim, quase perto do fim… uns metidos na kangonha, outros na bebedice, outros juntando as duas coisas, outros ainda (poucos) aplicados nos estudos. Havia ainda os que tinham mudado de bairro mas que faziam, dada a idade, as mesmas coisas daquele tempo...
E, lá se foram os tempos de undenge...