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terça-feira, junho 29, 2010

REENCONTRO


Conhecemo-nos na infância, por volta de 1978. Eu com 4 e ele com 3 anos. Juntos nos ensaiamos na pesca à toqueia no riacho junto à casa do avô João dos Santos para aonde nos fomos acomodar depois de meus pais terem abandonado a fazenda Kitumbulo onde vivíamos. A fazenda Israel, que fora gerida pelo avô João dos Santos, era duma outra civilização. Estava mais próxima da estrada asfaltada E120 e na casa de João dos Santos, um assimilado, só se falava o português, hábito herdado do colono recém-corrido e que ainda fazia lei. Augusto dos Santos era neto directo e sendo eu indirecto, nascido duma sobrinha do patriarca da família. O velho era um homem de vários ofícios. Era enfermeiro, costureiro e agricultor.

Vivendo os seus filhos nas cidades do Dondo e Luanda João dos Santos cuidava com bastante apreço dos netos. O Augusto, o Santos e eu. Depois nasceram outros.

Na iniciação, o Augusto (na foto) fora famoso por ter rejubilado num jogo de batota quando depois de ter apostado 10 Kz recebeu de troco 9 Kz, sendo-lhe descontado 1kz. E o Augusto saltitava de emoção por lhe terem sido devolvidas várias moedas… Estava eu na primeira classe, um ano mais adiantado do que ele. Depois fomos à circuncisão cuja escola frequentamos apenas três pessoas, Augusto, um primo nosso e eu.

A nossa separação deu-se em 1983 quando a guerra civil se acentuou. O avô adoeceu e foi levado para a cidade de Luanda onde viria a falecer dias depois. Como se a perda fosse menor, uma doença estranha apossou-se do Augusto e o rapaz perdeu a audição e parte da fala. Embora o pai, António Infeliz dos Santos, vivesse em Luanda, o Augusto e os dois irmãos mais novos (Santos e Quituxi)permaneceram com a mãe, vivendo uma vida que só eles saberiam contar. Quanto a mim, segui em 1984 para Luanda e lá fiquei radicado até hoje.

Daquela data a esta parte, apenas por mais duas ou três vezes nos tínhamos cruzado de forma muito curta, sem podermos trocar mímicas que nos levassem a recordar o nosso passado comum: as nossas brincadeiras em casa e na escola, os mata-bichos da avó Emília, as pescas com cana improvisada e isca de gafanhotos, o medo das injecções que o avô nos aplicava, as roupas que a tia Santa (madrasta dele) nos dava, as boleias no IFA militar do tio Infeliz (pai dele) e doutras coisas.

Encontrei-o desta vez a viver junto da sua tia Maria Canhanga, na aldeia de Pedra Escrita, e no território que compreende a fazenda Israel herdada do pai, um finado tenente-coronel do exército governamental. O Augusto acompanhou-me à QB*, ajudou-me a plantar duas bananeiras, uma laranjeira e um abacateiro. Emocionou-se a ver o campo que eu tinha cultivado à distância e bateu-me no ombro, como fazia antigamente sempre que o acudisse de algum embaraço. Revezando-nos, carregamos ao ombro um cacho de banana-pão e caíram lágrimas na hora da despedida.

_ Primo, assim já vais? – Questionou-me ao ver-me a entrar no carro.

Apenas acenei a cabeça receoso de provocar um banho de lágrimas. Mas quem chorou fui eu!

domingo, junho 20, 2010

NOVA ESTRELA É KUANZA-SUL EM MINIATURA

Assuntos ligados à narração correcta da História e cultura dos povos que habitam o Kuanza-Sul, de onde sou originário, levaram-me a procurar, mais uma vez, pelo Reverendo Gabriel Vinte e Cinco que pastoreia a Igreja Metodista Unida em Angola, cargo-templo de Nova Estrela, em lUANDA.

Não encontrei o pastor que fora a uma missão religiosa no município de Cazenga, mas fui tratado de forma digna, como sempre o fizeram os metodistas de toda Angola. A saudação em várias línguas nacionais e estrangeiras, os cânticos que me lembraram os meus tempos na I.M.U.A-Moisés, e a excelente pregação sobre as consequências nefastas do imediatismo, fizeram de mim um homem com o dia bem vivivido neste domingo, 20.06.2010.

Senti-me na Igreja de Moisés e ao mesmo tempo no Kuanza-Sul.

terça-feira, junho 15, 2010

O MUNDIAL E A "SECRETARIA" DOS GRANDES

Servindo-me do exercício do silêncio, que pode resultar em grandes vozeirões, remeti-me a uma pausa na escrita destas prosas. Assediado porém pela realização do primeiro mundial de futebol no continente africano não me contive e sou "forçado" a debitar ideias sobre o grande acontecimento da Àfrica do Sul.

E tudo começou na sala de serviço com o Elias (meu assistente) que trouxe a conversa da secretaria. A secretaria é nas grandes empresas pouco burocratizadas o local onde todos vão em busca de formulários, foto-cópias, outros impressos e encadernações. O Elias trouxe a analogia da secretaria para se referir às equipas onde as demais vão, por força do poderio, buscar pontos. A análise recaiu ao grupo em que estão alinhados Brasil, Portugal, Correia do Norte e Costa do Marfim.

Tirando a desconhecida Coreia, a maioria dos angolanos conhece ou já ouviu falar do Brasil e Portugal, países com quem partilhamos história e língua, como também conhecem e têm afinidades pela Costa do Marfim, país que representa o orgulho e a esperança africanas neste mundial. Por isso, muitos angolanos como eu estão divididos e acham mesmo a Coreia como a "secretaria do grupo".

E o Elias começou por dizer que "tendo Portugal empatado com a Costa do Marfim e sendo o Brasil o papão do grupo, restava a Portugal e Costa do Marfim ganharem por a Coreia e perder por poucos golos no jogo frente aos penta campeões (brasil)". Seguindo a na lógica do Elias qual seria o caminho para se encontrar o segundo classificado já que todos iriam à secretaria buscar pontos, tendo Portugal e Costa do Marfim empatado no jogo entre si...

O meu assistente continuou que "vai à segunda fase quem mais golos entalar à secretaria (Coreia do Norte)" . Mas o Elias foi mais ousado e colocou uma questão nova. Nova porque nunca foi debatida de forma aberta por ser quase improvável o cenário desenhado: Perguntava-me ele: "_Chefe, e se todas as equipas terminarem empatadas sem golo e com três pontos, fruto de três empates".

No momento em que escrevo esta prosa o triplo empate está fora de questão, mas a secretaria deu mostras de que "não oferecerá nenhum modelo nem impresso" a Portugal e Costa do Marfim, como não o fez em relação ao tout puissant Brasil que se viu e desejou para vencer a partida por 2-1.

domingo, junho 06, 2010

COMO CONTER O RECURSO AO CARRO PRÓPRIO?

As estatísticas mais optimistas apontam para cerca de dez mil veículos automóveis que dão entrada todos os meses na capital angolana, contando-se, entre elas, viaturas novas e de “segunda-mão”.

Com os seus quatro milhões de habitantes, Luanda possui neste momento mais viaturas do que a população inicialmente projectada para a cidade, que era de 500 mil habitantes, inferindo negativamente na distribuição de espaços para circulação e estacionamento. Daí que, olhar de forma atenta e crítica ao crescimento desenfreado do número de veículos automóveis na capital do país não seja um exercício em vão.

Qualquer observador atento rapidamente concluirá que o débil sistema de transportes públicos urbanos (autocarros, comboios e ferryboats) está na origem do recurso, quase que obrigatório, ao carro próprio.

É certo que durante os 27 anos que antecederam a paz definitiva nenhum olhar atento esteve direccionado à reparação de vias de comunicação, quer terrestres, aeroportuárias, marítimas e ferroviárias, esforço que apenas agora começa a ser desenvolvido neste grande segmento.

Por outro lado, apesar de terem sido importados inúmeros autocarros pelo Governo e agentes privados, a degradação das vias urbanas e a inexistência delas em muitas das extensões da cidade capital fazem com que o serviço prestado pelas operadoras deste serviço esteja sempre abaixo do desejável e, mais uma vez, os ditos “candongueros e kupapatas”, mesmo com a sua onda de desordens, são tidos como os grande facilitadores das populações.

Bastará contar quantas estradas paralelas, em condições, existem em direcção a Viana, Cacuaco, Samba e outros destinos. Qualquer acidente ou impedimento na Deolinda Rodrigues será suficiente para bloquear o acesso àquele município, dando-se o mesmo em relação aos demais destinos que contam apenas com uma ou duas rotas viáveis.

Quando se julgava que o comboio, de Baia ao Bungo, viesse a resolver parte do problema, fomos brindados com apenas uma linha, o que impossibilita a circulação simultânea de várias composições como acontece em outros países.

Sem transportes públicos rodoviários eficazes e sem comboios de minuto a minuto, a utilização do transporte marítimo, através de ferryboats ao longo da costa, ligando a Samba e Cacuaco à cidade baixa, podia ser parte da solução, mas mais uma vez os potenciais investidores e empreendedores tardam em reagir, estando o Governo, também a braços com as inúmeros encargos financeiros e empreitadas, a "assistir" o povo a marchar e a cidade cada dia mais cheia de carros privados e em condições técnicas muitas vezes duvidosas.

Que soluções para os nossos congestionamentos, falta de transportes públicos e recurso ao carro próprio?

_ Como leigo aponto apenas:
1-Urbanizar a periferia e levar os autocarros aos musseques;
2- Criar vias alternativas às estradas principais;
3- Construir mais passagens superiores, inferiors e túneis para tornar o trânsito automóvel mais expedito;
4-Desenvolver imediatamente o transporte marítimo de passageiros;
5- Modernizar e expandir o transporte ferroviário até aonde seja possível.

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(Re)publicado parcialmente pelo Semanário Económico de 10 Junho de 2010

terça-feira, junho 01, 2010

O ÚLTIMO PASSEIO

=Homenagem ao Pedro Menezes=

Tentei ao longo dos 5 anos, completados hoje, não falar, nem escrever sobre os meus últimos momentos com o finado amigo Pedro Menezes. Foi por força da grande dor e vazio que deixou em mim. Porém, por nos terem atribuído acções inverídicas, trago à luz os nossos derradeiros momentos.

À hora da mudança de turnos (13horas) cruzámos no pátio. Polaco Pedro, Pedro Menezes, Lito Costa e eu.
_ Comué, hoje há? - perguntou o Pedro ao Polaco ao que ele acenou afirmativamente.

- Yá, então logo a concentração é aqui. - Continuou o Pedro, desta vez olhando para o Lito Costa. Próximo da cabine estava o Adilson Santos que é colega de Lito, sendo eu e o Pedro Menezes funcionários da mesma área. O Polaco é amigo comum, pois tem um programa independente na LAC e lida quer com jornalistas, quer com os técnicos (sonoplastas).

Lito e Adilson combinaram, à parte, a hora da largada. Cada um tinha o seu carro e não precisavam de favores. Pedro e eu combinamos na redacção, depois de termos, antes, reclamado das impertinências da Amélia de Aguiar sobre os estacionamentos do Pedro Menezes.

Momentos antes a Amélia abordara o Pedro sobre a sua manobra que, a seu ver, revelava inexperiência de condução automóvel. E tudo aí morreu.

_ Comué Canha, vais hoje ao colégio (ISPRA)? - indagou-me.

_ Não. Só na sexta-feira é que vou entregar o pedido para a confirmação da matrícula,  - respondi-lhe.

Estávamos no dia 31 de Maio. Tinha eu chegado havia dez dias de Lisboa e era o nosso primeiro momento de conversa.
_ Então, já ouviste a conversa do pátio... o teu carro está bom? - voltou a questionar-me o Pedro.
_ Ainda, mas... é melhor ir no teu...
_ Yá, então pede já a Elsa e depois confirmas.
_ Não tem maka, - respondi. Estou a me comportar pra caramba!

Assim nos separamos às 15h10. O destino seria a vila de Viana, à noite. À casa do Polaco ou à discoteca Múkua. Era a terceira vez que Menezes e eu iríamos procurar os amigos de Viana, o Polaco Pedro, O Zé Assis e o Zé do Múkua.

Posto em casa, pedi à mulher para me ausentar à noite. Ela não colocou entraves, pois sairia com alguém por quem tinha confiança. O Pedro não fazia uso de bebidas alcoólicas nem qualquer substância psicotrópica. Aguardei por ele e apareceu sozinho, às 22 horas, vestindo um terno preto, o que motivou a Elsa a aconselhar-me a usar um casaco preto que tinha trazido de Lisboa, devido ao frio. Minutos depois partimos. Era da LAC que sairíamos em coluna. Antes, aos congolenses apanhamos o Mateus Gaspar.

No local da concentração, no largo da LAC, onde o Adilson e um irmão mais novo nos aguardavam, decidiu-se que iríamos ao Cassenda visitar o Mário Inácio que fazia anos naquela noite. Assim foi. Uma hora e meia foi quanto gastamos em casa do Marito Perez Inácio. De saída, numa rua próxima do terminal de cargas da TAAG, uma festa tinha sido interrompida pela ausência de energia eléctrica. Dela saiam muitos jovens estarrecidos. Entre eles uma colega, Rosemary Vieira, acompanhada de irmã, Ana Vieira e uma prima.

Depois de se informarem do nosso destino as duas irmãs decidiram connosco seguir a Viana e passar o resto da noite, ao que acedemos. Rosemary e a irmã seguiram no carro do Menezes e o Mateus Gaspar passou para o carro do Adilson. Era a primeira vez que víamos a Ana Vieira que ao longo do percurso se mostrou indisposta queixando-se de uma dor de cabeça. Quase não conversou.

O destino era a discoteca Múkua. Lá estavam os nossos amigos. Foi uma noite muito animada, pois cairia num feriado, 1º de Junho. O Menezes procurava por motivos de reportagem cultural. Eu queria apenas distrair-me e tomei uns copos. Depois dos anos 90 em que frequentei "dancings" na Precol, nunca mais tinha tido noite semelhante.

Às três da manhã decidimos partir de volta a Luanda. Decidimos partir em coluna, tal e qual na ida. Ordenei que o Pedro seguisse em frente, devido à sua lenta condução que desencorajaria os demais colegas a acelerarem em demasia, e que os que seguissem atrás o não ultrapassassem. Ordenei ainda para que o Pedro não fosse para além dos 80km horários. Todos os condutores concordaram e assim foi até nas próximidades da FTU onde o Adilson ultrapassou o Pedro.

A estrada estava vazia. O Kia Avela inundava-se de frio e a música era suave, ao gosto do Pedro. A Rosemary, que sabíamos era namorada de um colega nosso, estava no banco da frente. A irmã, Ana, adoentada, estava no de trás comigo. Falava-se de coisas vãs, sem memória.

O instante final do percurso foi junto ao monumento ao camionista, à Avenida Deolinda Rodrigues, junto ao cemitério da Sant'Ana. A roda dianteira esquerda do carro transpôs o lancil. O Pedro despertou e puxou o volante à esquerda, mas em demasia e o carro subiu o lancil contrário. O exercício acontecia em fracções de segundos e nem tempo tivemos para palavras. Assisti lúcido aos acontecimentos. A terceira tentativa de pôr o carro no eixo da via foi a fatal. Uma árvore, à esquerda, acolheu-nos. A Ana e a Rosemary choravam. Eu as encorajava sem saber das lesões internas contraídas. O Pedro expelia o último fôlego da vida. Sem esperanças contive-me em assisti-lo partir...

Momentos depois, o Victor Hugo Mendes reportava para a Rádio Luanda o sucedido. Foi quem tudo fez para que houvesse socorro. Surgiu primeiro um carro patrulheiro da polícia e depois os bombeiros que tentavam, a custo, retirar-nos da viatura que abraçara a árvore. Primeiro arrombaram as portas, depois o tejadilho e nada conseguiam. O carro estava encolhido. Com a voz que me restava ainda aconselhei esticarem o carro, o que fizeram com sucesso.

Já mais de duas horas se tinham passado desde o acidente. Esticado o carro, levaram primeiro ao hospital o Pedro que já era cadáver. Seguiu-se-lhe a Rosemary e depois a Ana. Fui o último transportado numa carrinha de patrulha policial. Em vão, ainda pedi aos polícias que me levassem ao Hospital Militar.

No Josina Machel, jogados ao cimento, a Rosemary Vieira ainda chorava a sua dor e a perda do Pedro que estava inanimado. A Ana recebia os primeiros cuidados. E eu, aí na cadeira de rodas ou maca, sentindo as dores que me derrubavam a coragem.

Depois da cirurgia, e ainda sob os efeitos da anestesia, soube, pela Televisão Pública de Angola, que a Rosemary também tinha morrido. Da Ana nunca mais ouvi falar apenas os dizeres acusadores do povo sobre uma cumplicidade que nunca houve...

Luciano Canhanga