A história faz-se com vários retalhos verdadeiros que são as narrações conforme vivenciado pelos participantes. Em Março de 2002, depois da morte "em combate" do líder da rebelião angolana, Jonas Savimbi, fui enviado em reportagem ao Luena (Moxico).
Viviam-se tempos de grande apreensão e carências na cidade do Luena. Angola inteira estava aprensiva quanto ao desfecho do que se acabara de ouvir/ver/ler. Muitos ainda não tinham acreditado no que a comunicação social veiculava. Os populares afectos à Unita e aqueles que eram resgatados das matas anteriormente controladas pela rebelião nem sequer se lhes passava pela cabeça o que acabavam de ouvir e assistir. "A Paz tinha chegado e Savimbi tinha sido morto". Outros receiavam outro recrudesceimento das hostilidades, caso houvesse vingaça dos "maninhos" pela morte do seu chefe. Eram dias de "ver para crer".
De Luanda ao Luena viajei num beachcraft do Programa Alimentar Mundial e na antiga cidade do Luso acomodei-me em casa de uns "amigos de ocasião", na rua do Instituto Médio Normal de Educação. As vitoriosas Forças Armadas Angolanas tinham um Estado Maior avançado onde decorriam as "negociações" e os "rendidos" chefes militares da Unita estavam uns hospedados na pensão Horizonte e outros num hotel.
As conferências de imprensa eram dadas na sede do Governo Provincial para onde eram chamados os jornalistas que cobriam para o país e o mundo os últimos desenvolvimentos das negociações para a paz selada oficialmente a 04.04.2002 (em Luanda).
Numa tarde de Março, ao passar pela pensão Horizonte, decidi tomar uma cerveja e comer algumas moelas. Era o que mais aparecia. Comida havia pouca para as grandes multidões que todos os dias chegavam, transportadas em carros militares e helicópteros, procedentes das matas... No interior do bar da pensão encontrei os generais Uambo Kalunga, Chiwale e outros militares a quem "atrevidamente" pedi uma entrevista. Os homens da Unita tinham um elevado gosto em falar para a média privada e estrangeira. Diziam que era segura, pois não deturpava as informações prestadas. A conversa ficou agendada para as seis horas do dia seguinte, uma sexta-feira (?) de muito frio e medo à mistura.
No primeiro andar da PH fui recebido por militares magros, mal uniformizados e de meter medo. Era tamanho o medo que se nutria pelos homens da Unita que meses antes tinham atacado um comboio na ferrovia de Luanda/Dondo, provocado muitas mortes e feridas ainda não saradas. O responsável pela operação rebelde, o general Apolo, estava também no Luena... Os "guardas"depois de anunciar a minha presença aos "mais-velhos"(assim se tratavam) encaminharam-me a um quarto-caserna onde estavam os generais acima citados. bebiam whisky ao gargalo, manhã cedo, e estavam igualmente mal aprumados, mas desejosos de nunca mais voltarem às matas. Esta mensagem era facilmente legível nos seus rostos. Cansados, entretanto aliviados. Uambo Kalunga e Chiwale falaram demoradamente comigo antes de acederem à gravação do "discurso oficial".
Disseram que as conversações eram sérias, que não se tinham rendido, mas apenas revisto a estratégia e reconhecido as vantagens de uma paz e reconciliação definitivas. O discurso oficial ou o permitido era o de transmitir segurança às populações e fazer com que aqueles que estivessem ainda nos "maquis" regressassem às cidades, onde seriam assistidos e cadastrados para posterior realojamento dos civis e acantonamento dos milicianos.
Tinha sido uma conversa de muito sucesso para a Luanda Antena Comercial, minha antiga patoa, que levava do Luena para os radiouvintes da capital angolana relatos, em discurso directo, de homens que estiveram com/ou próximo de Savimbi nos derradeiros dias da sua vida.
Uambo Kalunga e José Chiwale também estavam contentes por terem podido falar de forma aberta e informal, pois as únicas vezes em que tinham podido falar tinha sido no Comando Avançado ou no local das conferências de imprensa acima citado.
No Hotel Luena (ex hotel Luso na imagem) estavam os políticos e os militares de topo: Chitombe, Lucas Kananai, Vinama, Mário Vatuva, Marcial Dachala, Lukamba Gato, Alcides Sakala, Apolo e Kamorteiro. A execepção de Apolo, que era o "chefe da frente Norte", estavam todos desnutridos e gastos pela guerra e pelas carências vividas na selva e falavam à comunicação social apenas depois das jornadas de conversações. Outros porém, os civis, estavam piores: excassos de tudo. No edifício inacabado, que fica próximo da diocese, que albergava os "provenientes", senti mesmo tanta pena de um jovem professor das matas que me desfiz da camisa e voltei à casa apenas com a camisola interior. Era o dia-a-dia em todas as visitas que fazíamos aos campos onde estavam "provenientes" das matas.
Não se esquecerá das suas palavras o general Lukamba Gato, quando na altura dizia para a Comunicação Social (24/03/2002) que o momento que viviam, ao voltar à cidade, era de "muita emoção", mas o que importava era "perceber a dimensão humana deste processo".
Uma semana depois foi aprovada pelo parlamento multi-partidário a lei da amnistia para os militares da UNITA (02.04.2002) e assinada, a 04.04.2002, a "paz do Kamorteiro" (na foto à direita de Gato), pelos então Chefes de Estado Maior (das Forças Armadas Angolanas e Forças Militares da Unita), na presença do Presidente da República, Eduardo dos Santos, Ministros, parlamentares, representantes diplomáticos e outros convidados. Angola, sem intervenção directa de terceiros acabou por legar à história uma das suas páginas mais negras. A Paz era/é um facto construído sobre fortes alicerces. O culpado-maior pela guerra foi retirado do cenário a 22.02.2002...
São já passados oito anos.