Tenho-me guiado na coragem do
Reverendo Gabriel Vinte e Cinco que tenho como guia espiritual neste “reencontrar origens” e procuro dedicar-me à causa que é "trazer a verdade sobre os Ambundu do Kuanza Sul".
E tento hoje abordar de forma vivencial a circuncisão entre os Ambundu do Kuanza-sul (Lubolo, Kipala, Kissama*, Haco e Sende)1.
Ao contrário dos Bakongo que por norma efectuam a circuncisão à nascença, os povos do Libolo e Kibala mandam os rapazes para a "casa de água" (onzo-y-mema)2 na adolescência ou na segunda infância, aí entre os seis ou sete aos quatorze anos de idade.
O acto, a circuncisão, chama-se Ù-tina. Consiste no corte do prepúcio. Se nas sociedades modernas tal cirurgia é efectuada por um médico ou para-médico, nas comunidades tradicionalistas é chamado um "mestre" (mesene) para o fazer. Normalmente, o "mestre" fá-lo à sangue-frio. Aconteceu comigo em 1982.
Aos olhos dos garotos, o "mestre" é tido como um individuo de olhos ensanguentados, talvez devido à enorme quantidade de sangue que fez derramar e que seus olhos já viram. É um individuo muito temido pelos rapazes incircuncisos que se apavoram à sua passagem, sendo igualmente respeitado pelos pais. A enfrenta-lo ficam apenas aqueles que não têm outra saída senão este desafio de vida ou morte e que lhes dará um novo estatuto social na comunidade.
A operação acontece, normalmente, junto a um ribeiro e bastante isolado da aldeia, para que estranhos não visitem os circuncidados, tão pouco haja contacto entre mulheres gestantes e os cadetes . O makiakia ou kaporroto 3 serve de esterilizante da navalha do "mestre" depois de cada operação cirúrgica.
Um ajudante ou um parente próximo dos mancebos ajuda o mestre, agarrando as mãos e prendendo igualmente as pernas do “paciente”, imobilizado-o.
Terminada a operação, o cadete senta-se em uma pedra ou um tronco onde deixa escorrer o sangue da cirurgia e lhe são colocados alguns “milongos” à base de folhas medicinais . Durante os curativos são ainda usados medicamentos como o mercuriocromo, tintura de yodo e a penicilina.
O período que demora a cicatrização é também de aprendizagem de várias artes e ofícios, como: caçar e pescar e são também transmitidas aos noviços noções sobre a sexualidade, vida familiar e social, bem como a feitura de armadilhas e utensílios.
Njine é a designação atribuída ao pénis circuncidado, ao contrário de Kifutu (incircunciso). Um homem que tenha “passado pela faca” ganha na sociedade um novo estatuto. Torna-se um homem maduro. Por isso, a própria sociedade condena determinadas acções como: tomar banho desnudado e em público, pois o individuo circuncidado é tido como um homem que deve ser respeitado e diferente dos outros rapazes, ainda que da sua idade, que não tenham passado pela “casa de água”.
A alimentação dos cadetes é feita de forma cuidada e selectiva. Não se alimentam de ervas e só pessoas que não mantenham relações sexuais durante o “aquartelamento” podem cuidar quer da alimentação, quer da guarda, dos circuncidados. Ovos e sal (por excesso) estão fora da dieta. Dizia-se no meu tempo que não se comia do bem e melhor do que no acampamento dos circunciso.
Só depois de curado o último mancebos é que o grupo regressa à casa, mas antes, os "novos homens" da comunidade procuram encontrar uma bananeira, em cujo caule fazem uma perfuração em que enfiam a "pontinha" do membro (diz/ia-se que era para escurecer a cicatriz). Em zonas com existência de imbondeiros o orifício é/era feito no caule desta árvore (a lenda atesta que tal acto dá grandeza ao órgão reprodutor.)
No fim de tudo, quando cumpridos todos os passos e rituais, uma zagaia (arco) e uma flecha (honji li musongo) são entregues a cada um dos cadetes que perfilam e caminham até à aldeia... Cada mancebo exercita disparando a flecha contra a porta de casa (podem ser várias casas indicadas) e são-lhe dadas algumas oferendas.
É ponto assente que ao longo dos anos muitos cadetes não resistiram a hemorragias e sucumbiram, o que tem levado as comunidades a encontrar um meio termo entre o moderno e o tradicional. Um enfermeiro, em vez de um artesão; lâminas individuais em vez de uma faca colectiva; anestesia em vez de à sangue-frio; entre outras inovações de que sou apologista, mas sem que desvirtue ma vertente social e educativa da circuncisão.
Não há, nesta região, registos orais sobre ocorrência, mesmo em períodos muito recuados, de incisão genital feminina, tão pouco de acampamentos de iniciação de raparigas que entretanto se casam muito cedo, comparativamente aos centros urbanos. A sociedade rural Libolense e Kibalense é permissiva à poligamia, condenando, porém, veementemente o adultério feminino e a poliandia que são sancionados com avultadas multas pecuniárias ao homem infractor, bem como de castigos físicos.
O Soba, entidade administrativa da aldeia, também administra a aplicação da justiça comunitária com base no direito consuetudinário.
Os tempos modernos são de busca de combinação entre o moderno e o tradicional, encontrando-se já os sobas a trabalhar lado a lado com os secretários de aldeias, os administradores comunais e os chefes das esquadras policiais mais próximas, buscando um equilíbrio entre o direito positivo e o costumeiro.
*Kissama foi até à criação da província do Bengo foi território sob jurisdição da província do Kuanza Sul. Foi igualmente, tal qual o Libolo e outras, regiões ambundu, dependência do Rei Ngola. 1- VINTE E CINCO, Gabriel: Jornal de Angola, 28/12/2008
2- Local da circuncisão.
3- Bebida alcoólica destilada à base de cana, banana, milho e outros produtos fermentados.
Luciano Canhanga