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domingo, maio 31, 2009

A FESTA, A LUTA E O LIXO


Já há muito não se ouve a buzina aguda de um camião recolector de lixo ou as toscas acelerações de um tractor agrícola adaptado às crateras periurbanas para o saneamento doméstico.
Quaquer moda não custa pegar e os miúdos dos musseques, cumprindo as orientações paternais e da Tv, em que muita confiaça depositavam, se tinham habituado a deixar o lixo à porta para ao primeiro sinal de presença do carro ou do tractor correrrem de lebre com o balde ou o saco preto à cabeça.
Os dias se foram sucedendo e os homens da câmara ora passavam de manhã, ora à tarde, ora à noite, ora nunca. Depois vieram as semansas e era dia sim, dia não e dias nunca até que o povo desabituou.
Da porta inundada e a pôr vergonha nas visitas de longe, o lixo foi ganhando pernas. Foi sendo levado à rua. À berma, junto ao lancil ou mesmo disputando espaços no passeio ou no pavimento asfático carcomido pelas águas sem esgotos e os Hiaces apressados amassava-o fazendo das estradas lagos de podridão. Homens, ratos e vermes paridos por insectos disputavam soberanias caseiras. E a solução escondida nos gabinetes tardava libertar-se, até que um dia vieram homens.

***
De colectes reflectores, cones ensaguentados, fardas multi-cores e vassouras empunhadas em braços cansados. Sófregos, sedentos e mal-nutridos, andajosos até. Calcanhares ao sol numa rua poeirenta duma cidade já sem nome. Ninguém encontra nela as condições duma capital ou ninguém, com vergonha, o quer pronunciar. À noite olha-se para o céu, claro ou escuro, e logo se descobre na presença ou ausência do astro o nome da cidade. Apenas a empresa em que pertence o mahindra com o atrelado rebentado de lixo e dezelo tem nome. Mas o tractor vai plantando-o pelas ruas em que passa, qual rastilho de cal num alinhado campo de futebol. E assim se dá continuidade fétida, à pódrida Avenida da Brigada. Aquela brigada de varredores tinha tudo menos a missão de higienizar.
E vários dias foram passando aumentando os sacos pretos, à berma, que aumentavan as dificuldades aos pagadores de taxa de circulação. O mahindra repassava hora e hora sem nunca parar. Os homens nele pendurados fingiam-se cegos aos montes que diasputavam os alpes. O mahindra limitava-se a deixar cair outros restos trazidos de cadiengues caseiros. Esferovites, papelões, entulhos e restos de betão inutilizado. Das letras que restavam na memória das crianças apenas se podia descortinar a palavra Solamber que era o nome da empresa.

***
Na madrugada da semana seguinte sacos, papelões e restos de carros vergastados pelo tempo repousam ali. Na rua Sardão Mariano, ao bairro do Soares, espera-se pelos homens das pás e camiões de caixas sanitárias, mas a única vida que se faz presente é uma Hilux de dupla cabina, climatizada e com dois cipaios de luvas sujas. Atiram os possiveis sacos, bem tratados, à carrinha e seguem o seu caminho. O resto repousará aí mais uns dias, senão mesmo semans, até que as larvas fecundem ratos e estes comam gatos.
–Devem ser da fiscalização, admiram-se os moradores. Mas onde estará o grosso da equipa? Interrogam-se ainda. Alguém viu a etiqueta dos que passaram por aqui? Ninguem responde, ninguém viu, apenas as lunetas dum zungueiro benguelense para soletrar na distância.
_ Mano, parece que é Kixiarrasquem. Essa empresa é bué. Até o lixo vai no carro de luxo...
E o que ficou quem o leva? Perguntam-se ainda hoje.
***
Nas Perninhas e na rua do escravo Lino os dias são de disputas renhidas entre ratos famintos e gatos fartos. Gatos que fingem correr com os ratos mas que se abastecem destes. Ao raiar do sol aparecem primeiro os verdinhos empurrando barrigas. Tentam sencibilizar que o local não é para nguendas. Instruem o Zé Pequeno que, de chapéu feito balaio na igreja, recolhe as gorjetas a troca de paz.
Surgem depois os cadetes aos pares e cacetetes. Gato e gata ontam postos ou posições. Agitam os porretos e corre-se sem nexo.
Cai-se. Atropela-se. Cobra-se. Paga-se. Maltrata-se. Cansados, cadetes e verdinhos retiram-se para uma tasca ou taberna escondida e sorvem líquidos multi-efeitos.

O porreto volta a falar a sua língua predilecta. Os aflitos obedecem correndo, deixando para trás os seus pertences e o jantar dos ratinhos desprovidos do matabicho, mas não tarda reúnem-se à volta dos gatinhos, também eles desinteressados no filme.
De repende desponta um homem gordo, de casaco preto, se calhar conseguido numa zunga ou numa cobarde rusga e transportado num Prado de favor côr de cinza. O homem exibe ares de chefia e pergunta autoritário aos dois gatinhos azulados:
- Estão a dar rebuçados?
_Não chefe! Respondeu o que se achava mais atrevido ou menos constrangido à pergunta do chefe à paisana.
-E então? Voltou a questionar o homem exibindo um grosso fio de ouro no braço direito e os dentes amarfinados.
_Chefe de cada vez que enxotamos parece que estão a vir mais outras.
Fingindo não ouvir a resposta o inspector acenou ao chauffer para seguir a marcha em velocidade lenta. E foi vendo a cena coçando a barbicha algodoada de muitas ordens acolhidas ao vento.

E o povo vê no retrovisor do Prado a contínua luta entre os ratos famintos e os gatos desinteressados.
=
Depois do anoitecer, são dezanove e cinquenta e nove. Na nacional toca o ti-rim-rim, rim-rim-rim-rim! Dentro de segundos será o pioc-pioc-pioc. Carlitos Vasculhães vai pegar no comunicado superior e começar as kuribotas do dia. Hoje o povo está atento porque já andou ao adivinho todo mês para lhes dizer quem entra e quem sai na nguvulação. Desta vez querem gente que sabe trabalhar. Gente que vive nos bairros e que sabe como é viver na mesma cama com o mosquito da lama do tubo rebentado, com o rato do lixo não recolhido, com a barata da fossa entupida e com a constipação da poeira da obra suspensa... Esses sim, merecem a nossa comemoração.
E o povo está atento ao noticiário enquanto outros estão na internet do português magalhães. E a lista começa. Sua excelência o comandante de tropa e sobra grande usando da faculdade que lhe é conferida nos termos da alínea X do artigo Y da lei K... e o locutor avança na contextualização da jurisprudência perante a impaciência da Tia Zefa e clientela da barraca.
_ Possas, mas sempre os da mesma faculdade já ninguém mais que estudou aqui no IMEK ou no Makarenko?
Mas o radialista não liga à crítica, até porque não os houve. Mantém-se atento à ordem do papel e atira: Dr. Nza Kutimbe para o cargo de administrador do Kilamba Kiaxi. No cabrité vizinho umas palmas e entornam-se goles de Primus pela sorte do conterra e a possibilidade de mais umas facilidades. Na barraca da tia Zefa uns muxoxos e dores de cotovelo. _Mas esse então mora aonde. Faz o quiê? Sempre a se puxarem sacanas de merda...
O rádio vomita outros nomes e o povo reage quase de forma combinada. Estalidos bocais e assombros nuns, palmas e assobios noutros locais.
Engenheiro Francisco Mala Grande para admisnitrador do Rangel... Para Viana foi nomeado o camarada Povo Mulato...
Já tonto de nomes desconhecidos o povo reclama:
_Sempre os mesmos. Cipaios de onteontem, chimbas de ontem e fiscais de hoje. Nada mais sabem fazer do que correr com as nossas mamãs no Tira Cuecas e no Bota Larga, quando os empregos que surgem, mesmo nas obras, são apenas para os filhos e afilhados deles e as bancadas das praças do povo para as amantes e outras rabujentas... Tia Zefa, dá-me uma Soba Catumbela que vou festejar a desgraça do lixo que está sempre a subir!
***
E a festa continua. Uma cratera, um cabrité. Brotam moradias, brotam mercados. Novas estradas, novos charcos. Mais convivas se juntam à festa, vindos de distâncias incontaveis.

Luciano Canhanga

segunda-feira, maio 25, 2009

PALAVRA MINHA

Hoje apago velas. Aos cinco anos ingressei na OPA. Era um ingresso directo que coincidia com a entrada na pré-escolar ou iniciação. Foi em 1981 na aldeia de Calombo, que distava sete quilómetros da fazenda Israel onde meus pais residiam e trabalhavam que tomei o primeiro contacto com um professor.
Depois mudamo-nos para o Rimbe. Terra nova, pouco habitada e sem escola. O percurso para fazer a primeira classe era de aproximadamente 4 quilómetros, pois a aldeia/fazenda de Israel tinha ganho um professor que trabalhava num antigo estábulo bovino improvisado de sala de aulas que acolhia pioneiros da pré à quarta classe. Era nosso guia o Zé Borracha.
Depois mudou-se o professor e o local da sala de aulas. Sempre uma para cinco classes. Estávamos no ano de 1983 e era professor Jorge Manuel Carlos "Caconda", também ele meu primo, tal como o Zé que fora marido duma prima minha, a Rosa Manuel. Estudávamos na mesma fazenda, mas noutro acampamento, junto ao campo de aviação. Quem conhece a Pedra Escrita conhece os locais. Em 1984 ainda com o professor Jorge a escola mudou-se para um descampado que intermediava a aldeia de João Salomão e do Velho Azevedo. Frequentava eu a terceira classe. Foi o melhor ano do ponto de vista do aproveitamento, mas o pior em termos de estabilidade miliotar. E começava a compreender as tantas vezes que o professor se escondia e furtava-se à missão de nos ensinar o que ele dizia ter vointade de transmitir. Queriam-no para as matas e ele negava-se curvar-se. Mantinha a verticalidade e sofriamos todos. Várias noites foram de regadio chuvoso, nas matas. Muitos quilómetros, à pé. Deslocamentos e refúgios até que fomos a Luanda, ainda em 1984, carregados nas traseiras de um Ural militar...
Quem vive ou for a Luanda se perguntar a alguém que esteja acima dos trinta anos o que é/foi sabão "cocó", certamente encontrá alguém que lhe explique.
Sabão cocó eram restos industriais da fábrica de óleos e sabões Induve, em Luanda que os populares apanhavam, acrescentavam mais água e soda e desta mistura obtinham uma espécie de detergente líquido, mas bastante agressivo para a pele. Este produto eu comprei e vendi com os meus 10/11 anos.
Eram tempos difíceis, tal como retratam as peripécias vividas pela "Maria Coragem". Baptizado nas vivências de Luanda durante 3 anos, fui, contra vontade, enviado a Calulo onde a diferença social me transformariam no "jovem ideal" e vivi com um primo alfaiate (Gonçalves Carlos) tendo com ele aprendido a arte de talhar tecidos e costurar. A alfaiataria marcou os anos de 1987/90.

A guerra, porém, e o desejo de transpor a sexta classe fizeram-me viajar, mais uma vez para Luanda, tendo feito continuidade à alfaiataria com outro tio, Ramos Ngunza, e feito um curso de electricidade de baixào tensão. Transcorriam os anos de 1991/92. Luanda vivia a euforia dos acordos de Bissesse que puzeram fim à guerra entre MPLA/Governo e UNITA.
O povo fartava-se de rir, pelo menos em Luanda quando no interior o medo tomava conta daqueles que se tinha abstido das matas e das rapinas. De repente os militares de farda verde, e comandos castrados tomaram conta dos hoteís onde bangozamente viviam vidas nunca ensaiadas em solo pátrio. Os comités pilotos substituíram o trabalho da polícia e uma simples queixa podia resultar em morte sumária. Da televisão e radiofusão ecoavam ameaças de somalizar ou incendear...
Em 1992 fiz a minha estreia como educador primário. Primeiro dando aulas de superação (explicação) e depois no ensino público. Da minha improvisada escola de superação nasceram empregos para amigos.

Em 1997, terminado o médio de jornalismo, comecei a trabalhar como jornalista na LAC e hoje já são tantas as publicações em que tenho impressão digital ou vocal. Hoje estou aqui como responsável da área de comunicação institucional de uma grade empresa (risos), pelo caminho fui estudando e parando, mas sempre pensando no avanço. Parar é morrer!

Tenho duas licenciaturas por defender; uma no ISCED e outra na UPRA mas se houver vida uma delas conseguirei.

Tal como muitos sofredores e vencedores desta Angola, sempre defendi que filho de pobre tem apenas duas saídas: aprender profissão/ões e aumentar o nível técnico/académico.

Deus e o meu esforço permitiram com que homens de boa vontade me pudessem ajudar (mantendo=me empregado), mas tal como diz um ditado popular da nossa região, "quem se afoga deve ajudar o socorrista".
Um abraço.

Luciano Canhanga

sábado, maio 23, 2009

FOTO PARA MINHA GENTE

Uma aldeia em Foto. Um povo que reconstroi tudo partindo do nada. Uma vida que se reergue... Quem viaja encontra:
Pedra Escrita (entre o desvio da Munenga e Lussusso, EN 120)

Comuna da Munenga

Município do Libolo

Província do Kuanza Sul



Autor: Luciano Canhanga

domingo, maio 17, 2009

BARATOS & INFERNAIS


Se tivesse de viajar num azul-e-branco teria de gastar, ao fim do percurso que separa o Aeroporto 4 de Fevereiro ao Bairro Vila Nova, Akz. 400,00 divididos em 4 trechos de igual valor. Foi a pobreza momentânea que o forçou, naquele dia último da tolerância, a optar pelo transporte colectivo urbano.

Há muito não fazia tais enfrentamentos. Contava o seu calendário dois anos e meio desde que propositadamente fez o percurso Rangel/Viana para registar os cânticos anónimos. Mas de lá para cá muita coisa mudou. Pelo menos, dizia-se nos jornais,Rádio e Tv que muita coisa havia evoluído. Apregoaram-se autocarros limpos, equipados com AC, cômodos e silenciosos, com mais jornais em leitura do que falas soltas.

O primeiro machimbombo que por ele passou tinha as iniciais Segura a Gola d’Outro e estava apinhado de gente. Tudo quanto ouvira levaram-no e pensar que se tratasse de um funeral e não desistiu da espera. O segundo, da companhia Tira o Colete e Ultima a Luta, também rebentava pelas chaparias.Desesperado tentou enfiar-se por um espaço que restava entre pernas mal colocadas na pequena escadaria do pesasdo, mas sem sucesso. Desistiu.

Pagou os primeio Akz.100,00 para um percurso aproximado de 2km. Encontrou uma agência bancária com multi-caixa e tentou a longa fila. Os Kuanzas acabaram e a reposição tardava com a mesma persistência com que o sol atingia o epicentro.

À saida da agência, colocou a mala sobre o lancil, à sobra duma velha acácia húmida de mijo. Riu de forma aberta, espantou os nervos e caminhou mais um trecho. Agora sem dinheiro e sem força nas pernas, Kambuta limpa a mala, esconde os óculos que o identificam com facilidade e mistura-se num aglomerado que aguarda pelos autocarros. Estava perante o último recurso.
_ Nao há escolha! introspectou.

Ao primeiro, da companhia Tira a Ultima Risada e Anda, atrasou-se e faltou-lhe fprça [para a peleja da entrada, mas ao segundo machimbombo, da Nossopaistral, não titubeou e nem mesmo os passageiros à boca da porta o fizeram desistir. Estava já há duas horas na capital, tempo superior ao da viagem aérea em que transpôs mil kilómetros.

_ Tomara que seja mesmo climatizado, falou aos botões.
Já dentro, os empurrões e os cheiros desencontrados davam-lhe as boas vindas. Gelados de múcua, kikuanga, makayabo, kapuka madrugador, vômitos mal lavados e outras náuseas imundas fazia o coktail fedorento.
-Moço, mi disculpa paizinho! toca à frente! ordenou a cobradora.
Num lugar não distante da porta frontal, que servia de entrada, uma jovem nos seus virginais 15 aninhos reclamava:
_Possas! até cheiro de liamba? Para quê que não vão mbora à pé? Alguém tem de ver isso, disse desesperada.

Entre reencontros provocados pelas travagens repentinas e contorsões da viatura que soluçava ao encontro dos enormes buracos deixados pela chuva abrilena na estrada repavimentada, os passageiros iam tomando contactos mais íntimos. Corpo a corpo e suor no suor, qual molhados de fogo da paixão.

Não longe da porta de saída, uma velha, nos seus mabelas azuis, gritava apavorada: Mano, me meteram kibiona! É bandido. Motorista vai na polícia.
Aflito, o infractor tenta escapar pela janela gradeada do machimbombo, mas é agarrado pelas pernas e castigado conforme a lei mosaica e jogado ao longo da avenida Cristina Rodrigues.

Mais se parava, mais se falava e mais se ia trocando salivas das falas dispersas, deixando fervilhar no ar um perfume de aromas desconhecidos. E tudo mudava.

Os penteados desfeitos pareciam noites intermináveis de amor da puberdade, ao passo que outros cabelos, industriais ou herdados de indianas, jazziam também sapato abaixo, naquele chão, evocando aos fios o sofrimento que é uma viagem nos machimbombos de Luanda.

Foi nesse clima que Kambuta reencontrou a capital, a horas da declaração da Tolerância Zero aos desmandos dos automobilistas. Os cintos de segurança, os porta-bebés, os macacos, os colectes reflectores, as chaves de rodas e outros apetrechos passam a ser obrigagórios e as penalizações vão até ao tecto de 2 anos de salário mínimo.

Na ruas as más línguas apregoam para o Primeiro de Maio um parlatório candongueiro no largo que acolheu a missa campal de Bento XVI na sua peregrinação por Luanda, à Cimangola, para reclamar das vindouras multas policiais.

As boas línguas, porém, reforçam na media que ninguém mais abortará a aplicação da Mudança. Apregoa-se também, nos altifalentes públicos e privados de vocação pública, a inundação da cidade de novos autocarros. Políticos, empresários e pseudo-empresários revezam-se nas promessas e a “Revolução Viária” se torna palavra de ordem. A mesma ordem que ainda se confunde com a “gasosa” das multas adiadas em conversas de cavalheiros.

Já em casa, Kambuta, maltratado pela viagem, é recebido apenas por uma das filhas que o reconhece pelas rugas no rosto.
_ Como foi a viagem papá?
_ Terrível filha, terrivel! Os autocarros são baratos mas bastante infernais, respondeu aborrecido.

Luciano Canhanga

quarta-feira, maio 13, 2009

AKUKU MAKAYA YA TEMA!

À mesa um despertador, à corda, barulhava no seu tic-tac-tic-tac a cada segundo que passava. No fundo ele era também um relógio destinado a marcar apenas a hora do almoço.

Os meus conhecimentos, aos 4 anos, se limitavam à hora treze. Era naquele momento em que ele gritava furiosamente, como um comboio descarilado.

_Trimmmmmmmmmmmmmm! vibrava ensurdecedor, às vezes, que a avó Kikumbo, já no limiar da sua maioridade, chegava a não perceber o mundo à volta.

_Nde no Ka muasene*, vociferava a velha aflita.

O almoço, este, estava sempre pronto antes daquela sineta que nos punha voluntariamnte de pé e a correr, rumo à baixa, ao riacho inseminado de peixe de água doce que meu pai se gabava de ter sido o obreiro.

Estávamos na Fazenda Kitumbulo do meu avô Fernando Dambi ou Ngana Muriango onde se diz me terem encomendado para nascer, no ango de Kuteca, no óbito doutro meu avô, o materno, Canhanga Massaca ou Ngana Ñunji que era soba grande da Banza de Kuteka.

É pena que as minhas vivências com o avô Dambi tenham sido na primeira infância e o meu "saco" do passado carregar muito pouca informação, mas escreverei, um dia, sobre o toque de chamada daquele velho empenhado em trabalhos campestres ou consulta de adivinhação".

Primeiro tocava o despertador a que chamávamos de relógio de mesa, depois alguém tinha que pregar um enorme berro, à distância, com o código secreto:
_Akukuééééé, o makaya ya teméééé!'**

E lá vinha ele, meio satisfeito por poder matar o bicho, meio aborrecido por não ter terminado a empreitada. E todos, filhos, netos e visitantes que eram frequentes, sentávamo-nos à mesa para o repasto seguido de makiakia para os mais-velhos.
A tarde, normalmente, era passada em conjunto no terreiro*** ou no corte de ngando (papiro) material para a confecção de esteiras e outros objectos de cestaria.

Enquato aos sábados e domingos os homens adultos (sempre o avô, o pai, o tio César e outros visitantes) iam à caça com arcos, flexas e cães, nós, os miúdos, acompanhávamos as nosssas mães à pesca com cestos ou aproveitavamos a ausência dos pais para as nossas aulas práticas de armadilhar perdizes, pacas, macacos, pássaros e pescarias com nassas e anzóis carregados de salalé e minhoca.

O Atenção, cão pastor alemão que meu pai tinha conseguido do patrão da Fazenda Roussel, era o que mais caçava e por isso o mais querido da comunidade. Mas havia ainda o Tigre, o Tunga Laó, o Kelula e outros de cujas façanhas me lembro pouco. O meu querido Atenção, que teve durante a minha infância muitos charás, foi morto por uma onça depois de renhida peleja que deixou ambos em estado crítico. Tanto o meu pai o curou que não resistiu aos ferimentos. Teve funeral humano com uma caixa e campa em reconhecimento dos seus feitos. Do lado oposto, os caçadores da comunidade encontraram-na esqueléctica debaixo duma árvore, onde ventualmente tentava, também, curar-se das mordeduras do Atenção.

Às noites, à volta da fogueira, os adultos eram autênticas bibliotecas de secular saber. Contavam-se adivinhas, estórias de animais e histórias de factos ocorridos num tempo de ouvir dizer. Da escrita pouca importância se dava, mas a oralitura era obrigatória. Saber desvendar a genealogia era uma perícia apenas dos bons filhos. Eram esses os interpretes nas conversas adultas e nas longas viagens. Os mais velhos deixavam os monitores começarem com as perguntas e respostas dos mais novos... Uma aprendizagem que se processava por meio da repetição diária de um rosário costumeiro a que os anciãos acrescentavam novos elementos. Novos contos, novas fábulas e novas experiências que complementavam os já absorvidos pelos noviços... E havia pedagogia!


* Vão chamá-lo!

** Avô, o tabaco à beira do lume quase que queima!
*** Local onde se secava e ensacava o café

Luciano Canhanga

terça-feira, maio 05, 2009

A FRONTEIRA E O NADA


Quem ouve com regularidade relatos radiofónicos de jogos de futebol do nosso Girabola entra em contacto com novas expressões e com novos significados. Eis alguns:

1- O estádio do Inter Clube de Angola que fica entre a fronteira do Rocha Pinto e Morro da Luz...
2- O jogador não fez dada...

No primeiro caso deveremos estar perante uma nova geografia. Se fronteira é o limiar/limite entre dois espaços, estar entre a fronteira de dois espaços distimntos deve ser muito complicado.
O dicionário livre wikipédia define fronteira nos seguintes termos: é o limite entre duas partes distintas, por exemplo, dois países, dois estados, dois municípios, etc.

O correcto seria: O campo do Inter Club fica entre o Rocha Pinto e o Morro da Luz. Ou o campo serve de fronteira entre o Morro da Luz e o Rocha Pinto.


No segundo caso estamos perante a negação de negação que em filosofia equivale à afirmação em vez de negação. Mesmo nas ciências exactas, menos com menos é igual a mais.
A Wikipédia define o nada como: um signo, uma representação linguística do que se pensa ser a ausência de tudo.


O Correcto seria: O jogador fez nada... ou nada fez...
"Não fez nada" significa, filosoficamente falando, que "fez algo".

Luciano Canhanga